sábado, 3 de outubro de 2009

Tóxicos presidenciais e outros

Algo vai mal lá para os lados de Belém e ao contrário da opinião generalizada dos habitantes deste país julgo que existem razões de preocupação, desde logo porque Cavaco Silva não é um cidadão qualquer, Cavaco Silva é o Presidente da República Portuguesa e isso confere-lhe um estatuto que o coloca acima das meras querelas político-partidárias em tempo de eleições ou, em qualquer outro tempo político. Do Presidente da República esperamos, a todo o tempo, uma actuação imparcial e de arbitragem institucional, no restrito cumprimento das suas competências constitucionais.
A toxidade introduzida na campanha eleitoral das legislativas pelo denominado caso da “escutas” à Presidência da República, o silêncio presidencial que durou até ao início da campanha para as autárquicas, os “timings” dos vetos e promulgações presidenciais são tudo menos rotinas de calendário ou ingenuidades de Cavaco Silva. Mas nem só a Presidência da República poluiu o espaço público nacional, outros protagonistas e outros poderes contaminaram a pré e a campanha eleitoral com “produtos tóxicos” que, não tendo todos o mesmo impacto e dimensão, tinham em comum o objectivo de afastar a atenção dos cidadãos. Os politólogos, analistas e comentadores foram alimentando e empolando o acessório, assim como uma espécie de especuladores bolsistas, deixando de fora da discussão e da análise as questões que verdadeiramente estavam à discussão.
Os resultados eleitorais aí estão a dar conta de quem nem tudo correu bem aos estrategas e assessores de marketing. O povo penalizou o que tinha de ser penalizado e derrotou o que tinha de ser derrotado demonstrando, aos mais cépticos, que a sabedoria dos eleitores vai muito para lá da erudição dos politólogos e respectivos sucedâneos que agora centram as suas análises na preocupação das condições de governabilidade face às maiorias aritméticas pondo de lado, uma vez mais, o essencial – a construção de plataformas de entendimento parlamentar com base em projectos políticos que correspondam à vontade expressa nas urnas pela maioria dos eleitores.
A governabilidade depende das opções políticas que vierem a ser traduzidas no programa do futuro governo. Programa que fruto dos resultados eleitorais não pode ser o decalque do programa eleitoral do PS. A maioria dos eleitores votou à esquerda mas é à direita que os apelos lineares da aritmética poderão ser mais fortes e simplificadores. As qualidades e opções políticas de José Sócrates, e deste PS, estão à prova agora que o diálogo tem de dar lugar à arrogância e a democracia pode funcionar em toda a sua plenitude se a vontade maioritária dos eleitores for respeitada. Se assim for a governabilidade está assegurada, se assim não for aprofunda-se o descrédito dos cidadãos e é a própria democracia que sai empobrecida.
O Presidente da República falou ao país. Se antes das palavras clarificadoras e elucidativas de Cavaco Silva o assunto configurava alguma gravidade e gerava muita expectativa agora, depois do cabal esclarecimento dos factos, a “coisa” eleva-se a nível de importância de assunto de Estado, embora a expectativa dos portugueses tenha baixado para um patamar que se pode situar entre o nada e a coisa nenhuma.
Como afirmei no primeiro parágrafo julgo existirem sérios motivos de apreensão na actuação presidencial e espero que do Palácio de Belém não continuem a emanar “produtos tóxicos” que contaminam a essência do sistema político, que é parlamentar, e prejudicam a democracia.
Ao Presidente da República cabe-lhe a arbitragem institucional e a defesa da Constituição. É dentro da fronteira constitucional que Cavaco Silva se deve ficar.
Aníbal C. Pires, Lisboa, IN A UNIÃO, 02 de Outubro de 2009, Angra do Heroísmo

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