domingo, 1 de dezembro de 2024

Lepa Svetozara Radic - a abrir dezembro


Lepa Svetozara Radic foi executada em fevereiro de 1943, aos 17 anos, por disparar sobre tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial.[1] Enquanto seus captores amarravam o laço da forca em volta do seu pescoço, ofereceram-lhe a comutação da pena se ela revelasse as identidades de seus camaradas e líderes. Radić respondeu que não era uma traidora e que eles se revelariam quando vingassem a sua morte.

Lindas são as mulheres que lutam.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

... quase feliz

autorretrato 
É bem possível que à hora a que folheia este jornal eu esteja a apresentar, na EBI da Maia, o livro “O Silêncio da Paixão”, uma novela póstuma de Helena Chrystello, editada, este ano, pela Letras Lavadas. E é sobre este livro, escrito na década de 70 e que foi guardado numa gaveta até à morte da autora, em janeiro deste ano. Não conheço os motivos da decisão da autora, sei, isso sim, que o seu companheiro, o Chrys Chrystello, sabia da existência de alguns escritos da Helena, mas ela nunca lhe permitiu o acesso, aliás como ele próprio refere na nota editorial que precede a novela, mas, como dizia, é sobre este livro que vou partilhar alguns apontamentos que fui preparando para o texto da apresentação formal. 

“O Silêncio da Paixão” foi concluído a 4 de fevereiro de 1976, ou seja, a Helena ainda não tinha concluído o seu 21.º aniversário natalício. Refiro este facto pois, quando lerem esta novela vão mergulhar numa narrativa densa e estruturada, diria mesmo que esta novela é literariamente adulta e, sendo a autora uma jovem mulher, esta contextualização, não é de somenos valor, e, a relevância que lhe estou a dar pretende acrescentar mérito à obra pois, a construção literária revela uma maturidade e até erudição que, nem sempre, os jovens escritores possuem.

Os livros são, antes e depois de tudo, obras literárias, mas são-no também obras gráficas. A encadernação, o papel utilizado e os grafismos da capa valorizam a obra no seu conjunto. Assim, e antes de tecer algumas considerações, necessariamente breves, sobre a novela referencio alguns elementos da capa que, salvo melhor e douta opinião, é uma brilhante síntese da estória que nos é contada. 

foto de Aníbal C. Pires
A tonalidade vermelha, como sabemos, capta de imediato a atenção, não é por acaso que alguns sinais de trânsito utilizam esta cor, e induz sentimentos fortes como sejam: paixão, amor, energia ou perigo. O olhar distante da mulher retratada, a própria autora, pode ser entendido como de contemplação e introspeção, mas também de tristeza, perda e pode indiciar um estado emocional complexo. Por fim a escolha do título da obra: “O Silêncio da Paixão”.  Silêncio e paixão cruzam-se e entrecruzam-se na trama urdida pela Helena para nos conduzir pela recordações e arrebatamentos de uma mulher que se afastou do mundo, no qual viveu intensamente, e se abriga numa casa à beira-mar, em Joinville, na península de Contentin, no norte de França.

A novela “O Silêncio da Paixão” não é um relato linear, ou seja, a narrativa é densa e intrincada, desde logo, pelas personagens, pela omnipresença do mar, pelo tempo atmosférico, pela música e as cidades, onde Clara, foi quase feliz. 

As leituras desta obra podem ser diversas o que nem sempre agrada a quem lê maquinalmente, mas deixar espaço para os leitores conjeturarem sobre o capítulo seguinte ou o desfecho da estória e, ainda assim, conseguir que a leitura seja apelativa e a vontade de voltar a página permaneça até às últimas palavras, não é de fácil concretização, mas enquanto leitor agrada-me que estes sejam alguns dos atributos desta invulgar peça literária. E é disso que falo quando me refiro a esta novela póstuma, falo da qualidade literária de “O Silêncio da Paixão”, da erudição e maturidade que a Helena Chrystello cedo deixou transparecer e que não mais voltou a demonstrar.

A estória que nos é narrada tem como personagem central Clara Viel, aclamada cantora lírica que se afastou dos palcos e se refugiou, com já referi, numa casa à beira-mar. O jovem Gilles testemunha as suas quimeras, acompanha e ama esta mulher a quem já apareceram uns fios de cabelo branco. Clara não se consegue libertar de antigas paixões que se perpetuam e a fazem sofrer, nem atende a outros amores, seja Gilles o jovem que também procurou abrigo em Joinville para escrever, seja alguém de um passado vivido em Praga onde, como escreve a autora: “Durante muito tempo, Clara foi dominada por esta imagem, ela que fora quase feliz em Praga, um ano antes da primavera.”   

A autora, com mestria, explora, por um lado a mutabilidade dos momentos de felicidade e, por outro a importância e o poder da memória. Ser "quase feliz" pode ser ainda mais marcante, do que ter sido plenamente feliz. Foi algo que não se concretizou e fica para sempre como um vazio. A frase situa o evento no tempo pois, a alusão à primavera não se refere à chegada da estação do ano, mas sim a um acontecimento político de 1968 e que ficou conhecido como a “Primavera de Praga”, isto é, a narrativa remete-nos para o ano de 1967.

Sobre a trama e a forma como a estória se desenrola, a ação da protagonista e das personagens que a acompanham, sejam as das memórias do passado, sejam do presente não adiantarei mais pois, julgo ser mais avisado deixar que façam a leitura deste livro sem que a minha visão possa vir a influenciar a vossa e, esta novela permite, como julgo já ter referido, várias leituras e todas elas legítimas.

imagem retirada da internet
Há, porém, dois elementos narrativos que não posso deixar de aludir pois, modelam e marcam presença, quase permanente, na construção literária desta novela: a música e o mar.

A música, quiçá pela principal personagem ter sido cantora lírica, e como nos diz Anabela Freitas na apresentação que fez desta obra, no passado mês de outubro, em Vila do Porto, durante a realização do 39.º Colóquio da Lusofonia: “Mas, obviamente que a música, muito embora já não faça parte da vida atual de Clara, por vontade própria, porque abandonou a carreira, está presente ao longo de toda a novela. Durante a leitura nunca perdemos de vista o facto de a protagonista ser cantora lírica. Falar da música torna-se óbvio e contribui para a criação de um ambiente onírico muito sugestivo. A sua presença é poderosíssima no texto.”

foto de Aníbal C. Pires
Mas também o mar acompanha toda a narrativa do tempo presente, e socorro-me novamente das palavras de Anabela Freitas para que, com clareza, se perceba a relevância do mar na construção desta estória. “É esse mar que preenche todas as horas de Clara. É dele que agora ela se alimenta. Todos os seus sentidos são bombardeados pela presença dele: a visão, o olfato, o tato, o paladar e também a audição. Pois embora a música seja uma referência constante, desde logo porque Clara era cantora lírica, essa mesma música que preencheu a sua vida, acabou por ser abandonada e substituída pelo mar, como confessa a uma amiga…”

“O Silêncio da Paixão” é uma estória de amores, desamores e solidão alicerçada na complexidade das relações humanas e das emoções que moldam as nossas vidas.

A Helena dedicou a sua vida a divulgar autores de língua portuguesa e, em particular, autores dos Açores, aqui nascidos, ou açorianos por opção própria e que a vida ilhanizou, grupo onde a Helena se pode incluir. Não sei, nem isso é importante para mim, das razões que levaram a Helena a encerrar esta novela numa gaveta e, também, não sei das razões que a fizeram parar por ali. Sei, contudo, depois de ter lido a novela “O Silêncio da Paixão”, que Helena poderia ter construído uma carreira literária ímpar.

Ponta Delgada, 26 de novembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 27 de novembro de 2024

terça-feira, 26 de novembro de 2024

amores, desamores e solidão

foto de Aníbal C. Pires

Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.



“O Silêncio da Paixão” é uma estória de amores, desamores e solidão alicerçada na complexidade das relações humanas e das emoções que moldam as nossas vidas.

A Helena dedicou a sua vida a divulgar autores de língua portuguesa e, em particular, autores dos Açores, aqui nascidos, ou açorianos por opção própria e que a vida ilhanizou, grupo onde a Helena se pode incluir. Não sei, nem isso é importante para mim, das razões que levaram a Helena a encerrar esta novela numa gaveta e, também, não sei das razões que a fizeram parar por ali. Sei, contudo, depois de ter lido a novela “O Silêncio da Paixão”, que Helena poderia ter construído uma carreira literária ímpar.


quinta-feira, 21 de novembro de 2024

poesia da Palestina (4)

imagem retirada da internet
Eu todo povo


Naquela noite
Sem lua
Sequestrado
Amarrado
Vendado os olhos
Espancado
Torturado
Jogado nu ao frio
De uma cela
Solitária.

Ao ouvir os sons da noite
Sorri…
Nunca estou só
Em mim
Todo meu povo.

Yasser Jamil Fayad

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

poesia da Palestina (3)

As tonalidades da ira

Deixem-me falar na minha língua árabe
antes que também ocupem minha língua.
Deixem-me falar na minha língua materna
antes que também colonizem sua memória.
Sou uma mulher árabe de cor
e viemos em todas as tonalidades da ira.
Tudo o que meu avô sempre quis fazer
foi levantar-se ao alvorecer e observar
a avó prostrar-se a rezar
numa aldeia escondida entre Jafa e Haifa.

Minha mãe nasceu sob uma oliveira
num chão que, dizem, já não é meu;
mas vou cruzar as barreiras, o checkpoint,
os muros loucos do apartheid e voltarei para casa.

Sou uma mulher árabe de cor
e viemos em todas as tonalidades da ira.
Ouviram ontem os gritos da minha irmã,
quando dava à luz num checkpoint
com soldados israelitas olhando entre as suas pernas a próxima ameaça demográfica?
à filha nascida chamou-lhe, Jenin.
E ouviram alguém gritar
«estamos de voltando à Palestina!»
atrás das grades da prisão,
enquanto disparavam gás lacrimogéneo para a cela?
Eu sou uma mulher árabe de cor
e viemos em todas as tonalidades da ira.

Mas dizes-me que esta mulher que há dentro de mim
só te trará o teu próximo terrorista:
barbudo, armado, lenço na cabeça, negro.
dizes-me que mando os meus filhos para morrer?
mas esses são os teus helicópteros,
os teus F-16 no nosso céu.

E falemos um pouco sobre esta questão do terrorismo...
Não foi a CIA que matou Allende e Lumumba?
E quem primeiro treinou Osama?
Meus avós não corriam em círculo, como palhaços,
com capas e capuzes brancos na cabeça
linchando negros.

Eu sou uma mulher árabe de cor
e viemos em todas as tonalidades da ira.
«Quem é essa mulher morena gritando na
manifestação?»
Desculpe. Não deveria gritar?
Esqueci de ser todos os teus sonhos orientais?
O génio da garrafa,
bailarina da dança do ventre,
mulher do harém,
voz suave,
mulher árabe,
Sim, senhor.
Não, senhor.
Obrigado pelas sandwiches de amendoim
que nos atiras dos teus f-16, gosto.

Sim, os meus libertadores estão aqui para matar os meus filhos
chamando-lhe «dano colateral.»

Eu sou uma mulher árabe de cor
e viemos em todas as tonalidades da ira.
Assim, deixa-me dizer-te, que esta mulher que há dentro de mim
só te trará teu próximo rebelde.
Terá uma pedra numa mão e uma bandeira palestina na outra,
Sou uma mulher árabe de cor...
Tem cuidado, tem cuidado,
com a minha ira.

Rafeef Ziadah



sábado, 16 de novembro de 2024

poesia da Palestina (2)

imagem retirada da internet

O DILÚVIO E A ÁRVORE

Quando a tempestade satânica chegou e se espalhou
No dia do dilúvio negro lançado
Sobre a boa terra verdejante
“Eles” contemplaram.
Os céus ocidentais ressoaram com explicações de regozijo:
“A Árvore caiu!
O grande tronco está esmagado! O dilúvio deixou a Árvore sem vida!”

Caiu realmente a Árvore?
Nunca! Nem com os nossos rios vermelhos correndo para sempre,
Nem enquanto o vinho dos nossos membros despedaçados
Saciar nossas raízes sequiosas
Raízes árabes vivas
Penetrando profundamente na terra.

Quando a Árvore se erguer, os ramos
Vão florir verdes e viçosos ao sol
O riso da Árvore desfolhará
Debaixo do sol
E os pássaros voltarão
Sim, os pássaros voltarão com certeza
Voltarão.

FADWA TUQAN

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Cadernos de Estudos Açorianos #42


A Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia (AICL) tem vindo a divulgar, através dos Cadernos de Estudos Açorianos, autores açorianos, aqui nascidos ou que por aqui residem e trabalham.

O Caderno de Estudos Açorianos #42 foi-me dedicado, o que muito me honra. (para aceder cliquem aqui)

Ao editor dos Cadernos  Chrys Chrystello e à coordenadora Professora Susana Antunes, Portuguese Program Coordinator and Associate Professor of Portuguese, University of Wisconsin, Milwaukee, agradeço a atenção e o trabalho de edição, compilação e organização dos conteúdos.

Bem hajam Chrys Chrystello e Susana Antunes! 


Celeste Caeiro (1933-2024)

Celeste Caeiro - ilustração de Marta Nunes

Celeste Caeiro.

A sua história é conhecida por todos, mas pouco reconhecida pelos poderes públicos.

Sem Celeste Caeiro a Revolução de Abril não teria cravos, cravos vermelhos de Abril, cravos que esta mulher do povo ofereceu aos soldados naquela madrugada libertadora.

Celeste Caeiro era minha camarada, o nosso Partido emitiu uma nota de condolências que pode ser lida aqui.

Até sempre camarada!

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

poesia da Palestina (1)

 

Oh crianças malcriadas de Gaza





Oh crianças malcriadas de Gaza.
Vocês que me perturbavam o tempo todo
com seus gritos debaixo da minha janela.
Vocês que enchiam de caos e correria
todas as minhas manhãs.
Vocês que quebraram meu vaso
e roubaram a flor solitária em minha varanda.
Voltem,
e gritem o quanto quiserem
e quebrem todos os vasos.
Roubem todas as flores.
Voltem.
Apenas voltem.

Khaled Juma



quarta-feira, 13 de novembro de 2024

a terra é plana, a vida é eterna e são felizes.

imagem retirada da internet
O mundo é um lugar pouco aconselhável para viver. Nunca terá sido, mas, ainda assim, já foi um pouco melhor, ou então era eu, do alto da minha ingenuidade, que assim o considerava. 

Já não sou um crédulo, conquanto a momentos possa parecer que não deixei de o ser. Pode o leitor pensar, com o pouco já dito, que vá encaminhar este texto para uma análise aos resultados das eleições nos Estados Unidos, mas não. Podem estar tranquilos não vou por aí, nem considero que o mundo tenha ficado pior do que já estava por ter havido alterações, se é que houve, nas cadeiras do poder estado-unidense. Não me sinto órfão nem rasguei as vestes pois, o resultado não me surpreendeu, a não ser pela dimensão da vitória “republicana”, nem há razões para crer que os Estados Unidos alterem, por vontade própria, a sua política externa a não ser que os problemas internos ou a construção, em curso, de um mundo multipolar e, por conseguinte, as razões de ordem económica assim obriguem a administração estado-unidense a arrepiar caminho. 

Estamos mal e assim vamos continuar, não só, mas também, pelos Estados Unidos. A subserviência da União Europeia à vontade hegemónica de um parceiro que não tem amigos, só interesses, é bem mais preocupante que a ascensão de um “republicano”, em alternância a um “democrata”, na presidência da administração estado-unidense.

foto de Madalena Pires
Pode também parecer, pelo que já foi dito, que deixei cair os braços e abandonei a defesa de transformações que possam edificar um mundo diferente, um mundo onde se possa viver melhor e a humanidade seja, apenas isso, humana. Só aparenta, pois, continuo a alimentar os meus dias com essa utopia.

As narrativas hollywoodescas deixaram, faz muito tempo, de me comover e há muito que super-heróis e vilões não me entusiasmam. Não sei se isso foi bom ou mau, mas sei que depois dessa epifania me sinto muito melhor, aliás foi um pouco como quando concluí que as prendas de Natal não eram deixadas pelo Menino Jesus ou o Pai Natal, conforme as geografias, o contexto social e os costumes de época. Houve alguma deceção, não pela autodescoberta, mas por sentir que me tinham enganado, ainda que as razões pudessem ser as mais nobres o que não é o caso das narrativas do mainstream de onde a ética e a opinião alternativa estão ausentes. 

Há muito que, para não ser surpreendido, tenho o cuidado quando olho ao meu redor de ver com o meu olhar e questionar o que exibem e, quando me dizem: a realidade é esta; vou verificar as diferentes fontes o que convenhamos, num mundo de artifícios digitais e outros que tais, é aconselhável fazer para não cairmos no ridículo de papaguearmos verdades construídas e, como tal, representações distorcidas da realidade. Não fica bem a quem devia estar informado, é intelectualmente desonesto e é dececionante ver algumas personalidades a regurgitar narrativas que já foram objeto de desconstrução por entidades independentes, como por exemplo os acontecimentos de 7 de outubro de 2023 na Palestina ocupada. As investigações forenses e documentais, realizadas por organizações independentes, contrariam tudo aquilo que serviu para intoxicar a opinião pública mundial, com particular ênfase no ocidente, mas que acabou por não fazer vencimento pois, as manifestações populares nas cidades europeias e estado-unidenses que mobilizam milhões de cidadãos em defesa da causa palestiniana e contra o estado sionista de ocupação, assim o confirmam.

Nakba (1948)
Não falta por aí quem continue a acreditar no Pai Natal e nas construções mediáticas das corporações dominadas pela Black Rock e pela Vanguard, depois quando confrontados com a realidade procuram as justificações mais espúrias para que os seus egos não fiquem indelevelmente feridos, os seus desejos não se transformem em desilusões e a fé numa qualquer patologia, ou então continuam a acreditar que a terra é plana, que a vida é eterna e, assim, são felizes.

Ao longo deste texto tenho vindo a conjeturar, ainda que superficialmente, sobre algumas realidades, mitos e poderes que pelo domínio que exercem na opinião pública, particularmente no chamado mundo ocidental, aparentam ser imutáveis, eu diria que também o poder absoluto dos monarcas parecia firme como uma rocha, e desmoronou-se. Também o fim do capitalismo, do neocolonialismo, dos fascismos e da unipolaridade parece uma impossibilidade, mas no que a mim diz respeito gosto de pensar, reconforta-me diria, que a humanidade, em devido tempo, lhe colocará um ponto final.

Não sendo tudo e estando longe do que seria desejável há alguns sinais de que as velhas estruturas que dão sustentáculo a este sistema anacrónico estão a sofrer alguns abalos. Não é a primeira vez que me socorro de alguns dos países do Sahel (Mali, Burkina Fasso e Níger) como exemplo, recente, de libertação do neocolonialismo francês, movimento que se tende a alastrar a alguns dos países da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, como seja o caso do Senegal. Mas se estes são importantes sinais, não menos relevante é a associação dos países das economias emergentes e do Sul global que se estão a agregar no bloco dos BRICS e a criar um sistema financeiro autónomo, mormente, o sistema de pagamento alternativo ao SWIFT e o pagamento de transações comerciais nas moedas nacionais, abandonando o dólar estado-unidense como moeda de referência mundial. 

Como é fácil de concluir a desdolarização já está em curso e mais do que uma opção dos BRICS ela decorre da necessidade de encontrar uma solução para ultrapassar os efeitos das sanções ocidentais a alguns países desta organização. 

Este novo modelo é resultante da visão multipolar do mundo e só nessa medida se coloca como uma ameaça aos Estados Unidos e aos seus apêndices autodenominados “comunidade internacional”. Se esta é a solução para o fim do capitalismo, não será, mas não me restam muitas dúvidas que é o caminho para por um ponto final no colonialismo, no neocolonialismo e, por conseguinte, na sobranceria dos Estados Unidos e dos serventuários dirigentes da União Europeia (o jardim de Borrel) em relação ao chamado Sul global (a selva de Borrel).


Os efeitos desta nova arrumação geopolítica e económica já se fazem sentir nas economias da União Europeia, em particular na Alemanha, mas não são ainda suficientes para que o discernimento ilumine as decisões políticas e seja assumido que novos tempos estão a chegar, tempo de respeitar as soberanias nacionais, tempo de privilegiar a cooperação entre os povos e tempo de abandonar a sobranceria eurocêntrica a atlantista. Dito assim pode parecer caótico para o jardim de Borrel, mas não tem de o ser. Só será conturbado se as instâncias políticas da União Europeia continuarem a vergar a coluna vertebral aos donos do mundo e, quando estes últimos deixarem de necessitar de um parceiro que mais não tem feito que o papel de idiota útil.

Ponta Delgada, 12 de novembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 13 de novembro de 2024