domingo, 13 de julho de 2025

bom senso ou senso comum

foto de Paulo. R Cabral
Ao termo senso, podem ser atribuídos vários significados. O senso pode ser: capacidade de pensar, ou ainda, juízo claro, de entre outros. Ao vocábulo senso juntam-se, por vezes, outros qualificativos para exprimir ideias diferenciadas, mas que se confundem nas linguagens do quotidiano.

O senso pode ser comum, ou bom. O senso comum nem sempre é sinónimo de bom senso e os dicionários da língua portuguesa estabelecem as diferenças com rigor.

Bom senso - equilíbrio nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta; senso comum - conjunto de opiniões ou ideias que são geralmente aceites numa época e num local determinados; (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

O bom senso implica, necessariamente, a reflexão, o pensamento e a capacidade de análise para tomar decisões. O senso comum exprime opiniões que, embora, aceites como verdades pela generalidade dos cidadãos, nem sempre, ou quase sempre, transmitem factos devidamente comprovados.

imagem retirada da internet

Os ditos, ditados ou provérbios populares sendo do senso comum são expressões populares que sintetizam a sabedoria de gerações resultam da experiência acumulada pela população ao longo dos séculos, e estão ancorados na observação da natureza, do comportamento humano e das relações interpessoais. A maioria dos provérbios, sendo do senso comum, transmitem opinião fundamentada pela observação da realidade o que lhes confere indicações que podemos considerar de bom senso. Vejamos o seguinte dito popular: “mais vale prevenir do que remediar”. Este provérbio reflete um pensamento e ação de prevenção para evitar os efeitos e custos de uma ação de correção, por exemplo, os mecanismos passivos e ativos contra os perigos de uma eletrocussão ou mesmo de um incêndio provocado pelo desgaste ou mau funcionamento dos dispositivos elétricos, representando um custo acrescido estes serão sempre menores que os valores resultantes de um evento que poderá ter lugar por falta de prevenção. Neste caso é legítimo afirmar que o senso comum e o bom senso coincidem.

Outros ditados populares tendem a induzir inação como, por exemplo: “cada macaco no seu galho”. Ou seja, se o meu lugar é aquele não posso, ou não devo, procurar um galho que me não foi predestinado. Se o entendimento for este, e o senso comum assim o expressa, o resultado será a aceitação acrítica de que nada poderei fazer para mudar de galho o que inibe qualquer iniciativa individual ou coletiva de mudança transformadora, direi que, este dito se pode articular com um outro: “sempre assim foi e assim será”; este dito popular reforça a ideia de aceitação de algo que foi predestinado. Mas se há coisas que sempre assim foram e assim serão, muitas outras, por não obedecerem à ordem natural das coisas, podem ser alteradas e transformadas.

O senso comum aparenta ser inócuo e neutro, mas se atentarmos ao discurso ideológico dominante, que se afirma como despido de qualquer ideologia, constatamos que, tal como demonstrou o filósofo Antonio Gramsci, o senso comum tem um carácter ideológico. Segundo Gramsci o senso comum é um modelo de filosofia espontânea das massas, assente em fragmentos de religião, moral, experiência, mas, sobretudo, do pensamento veiculado pelo poder dominante. O senso comum aceita as desigualdades como algo natural, legitima as injustiças e reproduz ideias feitas. O senso comum parecendo, como já foi referido, neutro raramente o é.

imagem retirada da internet

A sua eficácia reside no facto de parecer distanciar-se de qualquer ideologia. Expressões que ouvimos com frequência da boca de alguns protagonistas políticos, que têm vindo a registar um expressivo crescimento eleitoral, como por exemplo “os beneficiários do RSI são uns malandros e vivem à custa de quem trabalha”, ou ainda “os imigrantes estão a ocupar o que é nosso”, estas e outras expressões que não tendo nenhum fundamento pois, como sabemos existem muitos beneficiários do RSI que trabalham, mas o salário é tão baixo que o agregado familiar é apoiado com esta medida social, por outro lado, um dos principais alvos deste apoio são pensionistas e crianças, ou seja, a maioria dos beneficiários do RSI são os trabalhadores que empobrecem a trabalhar, os cidadãos idosos com uma longa vida de trabalho e, por outro lado as crianças que não podem, naturalmente, trabalhar. Quanto à população migrante é igualmente do domínio público que o saldo das contribuições para a segurança social é positivo, constituindo-se mesmo como determinante para a sua sustentabilidade, isto sem referir a importância demográfica que representam. Os imigrantes são tudo menos um perigo para a segurança pública, aliás como os relatórios o comprovam, bem como, se possuidores de direitos sociais e laborais, não representam nenhum tipo de competição no mercado de trabalho.

Os discursos assentes no senso comum alicerçam-se em crenças e emoções, ou seja, não têm uma base crítica e científica o que torna o discurso permeável em largos setores da sociedade pouco dada à desconstrução do discurso político sem conteúdo e cheio de lugares-comuns, por isso são tão eficientes na manipulação da opinião pública mergulhada num nevoeiro informacional que as redes sociais ampliam. Autores como Louis Althusser e Pierre Bourdieu também exploraram esta dimensão do poder simbólico e da interiorização de esquemas mentais que moldam a forma como vemos o mundo. O senso comum funciona como um espelho deformado: devolve-nos uma imagem da realidade já filtrada por interesses, preconceitos e hierarquias invisíveis. É uma pedagogia silenciosa da resignação.

Nos dias de hoje, este campo tem sido particularmente explorado pela extrema-direita, que soube apropriar-se do senso comum para lhe dar roupagens novas. Ao discurso simples, direto e “anti-intelectual” junta-se o apelo à emoção, ao medo e à animosidade. É a linguagem do “bom povo” contra “as elites”, do “realismo” contra a “ideologia”, da “ordem” contra o “caos”. Mas o que, por vezes, parece bom senso é, na verdade, uma forma insidiosa de capturar o senso comum para projetos políticos autoritários ao serviço do capital sem rosto nem pátria.

Imagem retirada da internet

Em Portugal, como noutros países europeus, assistimos à crescente instrumentalização de temas como a imigração, a segurança ou o “politicamente correto” por parte de forças políticas que se alimentam de simplificações e caricaturas. Afirmações como “os imigrantes vêm para viver à custa do Estado” ou “já não se pode dizer nada” instalam-se no senso comum, reforçando perceções de ameaça e exclusão. A repetição dessas ideias nos media, nas redes sociais e até em conversas informais torna-as quase inquestionáveis, mesmo quando carecem de base factual. Há nelas um verniz de “realismo” que mascara, na verdade, a fabricação do medo e dos rebanhos acríticos.

É neste contexto que a educação pública, a cultura e os media responsáveis assumem um papel decisivo. Promover o pensamento crítico não é um luxo pedagógico é, diria, um imperativo democrático. Ensinar a distinguir a opinião do facto, a argumentar com base em evidências e a desconfiar das verdades feitas é a melhor forma de combater a cristalização do senso comum. Do mesmo modo, a literatura, o teatro, o cinema ou a poesia, isto é, a cultura tem uma função que vai muito além do entretenimento: é um instrumento de libertação simbólica. A confusão entre senso comum e bom senso não é apenas uma questão semântica. É uma armadilha política. Num tempo em que crescem a desinformação, o populismo e o ódio como forma de mobilização, torna-se urgente resgatar o valor do pensamento crítico, da dúvida, da razão prática, ou melhor, do bom senso. 

O bom senso não grita, não polariza, não humilha. Num tempo em que alguns se erguem em nome do “povo” para dizer barbaridades com ar de verdades absolutas, importa recuperar o bom senso como prática cívica e não como um eco acrítico do que se diz ou do que se acha. Porque, no fundo, não é o que “toda a gente diz” ou o que se “acha” que nos deve guiar, mas sim o que conseguimos pensar por nós mesmos, com base em factos, conhecimento e cultura.

Ponta Delgada, 8 de julho de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 10 de julho de 2025

terça-feira, 8 de julho de 2025

do senso

imagem retirada da internet



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Os discursos assentes no senso comum alicerçam-se em crenças e emoções, ou seja, não têm uma base crítica e científica o que torna o discurso permeável em largos setores da sociedade pouco dada à desconstrução do discurso político sem conteúdo e cheio de lugares-comuns, por isso são tão eficientes na manipulação da opinião pública mergulhada num nevoeiro informacional que as redes sociais ampliam. Autores como Louis Althusser e Pierre Bourdieu também exploraram esta dimensão do poder simbólico e da interiorização de esquemas mentais que moldam a forma como vemos o mundo. O senso comum funciona como um espelho deformado: devolve-nos uma imagem da realidade já filtrada por interesses, preconceitos e hierarquias invisíveis. É uma pedagogia silenciosa da resignação. (...)

domingo, 6 de julho de 2025

Álamo Oliveira - 1945-2025

Álamo Oliveira partiu hoje para uma viagem que todos temos anunciada.
O poeta, dramaturgo e ficcionista disse num contexto de celebração:
(…) gostaria mais de ser lido que lembrado (…)

O Álamo Oliveira será sempre lembrado enquanto for lido. Digo eu, que de vontades e letras pouco entendo.



olhares

toda a manhã a vida esteve cinzenta 
com a alma molhada e uma tristeza 
duvidosa escorrendo do olhar.
a tarde chegou de cabelos escorridos prometendo 
deitar-se na cama da preguiça 
sem vontade de se despir nem de tirar 
os sapatos da angústia.
a vida sabe que não pode abrir a porta 
e fugir para o outro lado do etéreo.
pobres e ricos caem como soldados vagabundos 
na vala da vida.    o catrapiler dos sonhos 
cobrirá     com pesadelos     o mundo inteiro.
por isso    vai amanhecer outra vez 
com a vida cinzenta    a alma molhada 
e um olhar triste caindo como 
as telhas da casa    partindo-se.


Álamo Oliveira

quinta-feira, 3 de julho de 2025

mulheres Cherokee - a abrir julho

mulher Cherokee - imagem retirada da internet
As mulheres Cherokee foram sujeitas, durante o processo de colonização e deslocação forçada (Trail of Tears) à fome, ao frio e à perda, mas foram sustento da sua comunidade e preservaram tradições que o forçado exílio não calou.

Obrigadas a caminhar milhares de quilómetros rumo ao desconhecido, as mulheres Cherokee mantiveram o seu povo unido. Cuidaram dos filhos, enterraram os mortos e transmitiram, mesmo na dor, a memória e a força da sua ancestralidade.

domingo, 22 de junho de 2025

mapas de sangue

composição de João Pires com imagens retiradas da internet
analogia do terror


a terra vermelha 
de Oklahoma
o chão rasgado da Palestina 
manchados de sangue
molhados com lágrimas
dos povos colonizados

Trail of Tears 
Nakba
nomes diferentes 
a mesma fome
o mesmo luto
o mesmo silêncio
culturas apagadas
a mesma indiferença

Nakba
Trail of tears
marchas forçadas
pelo colonialismo
destinos forjados
traçados em
mapas de sangue

Trail of tears
Nakba
a mesma fome
o mesmo olhar vazio
a mesma violência
a repetir-se
como uma punição
por existir
apenas por existir

e a humanidade!?
onde foi que se perdeu?
talvez na poeira do caminho
com os corpos
que ninguém reclama
por não haver quem

sábado, 21 de junho de 2025

morada de infância

 
foto de Aníbal C. Pires
memórias de S. Vicente da Beira 


da infância na beira serra

por aqui
na sombra protetora da Gardunha
com tempo
brinquei com o tempo
medido nos ponteiros sonolentos
do relógio do campanário

por aqui
aprendi as primeiras letras
como quem descobre velhos segredos
decifrados nas ardósias 
e outros sedimentos do tempo

por aqui
aprendi a contar e a decifrar 
os sinais do tempo
observei a azáfama das formigas
e o voo frutífero das abelhas

por aqui
perdi medos
gritei aos quatro ventos
soube calar e ouvir
o peso dos silêncios

por aqui
fui criança e aprendi a olhar
a vastidão do Mundo
para além dos altos cumes
    rasguei horizontes

por aqui
ganhei amigos
dispersos pelos trilhos da vida
mas presentes na memória

por aqui
foi morada de infância
em recantos graníticos e pinheirais
em ruas ladeadas de muros
onde crescia musgo e esperança

as veredas do passado
permanecem na lembrança
como ecos de um lugar da infância
distante no tempo e no espaço
mas sempre presente

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, junho de 2025

sábado, 14 de junho de 2025

aprender

Aníbal C. Pires - do arquivo pessoal
olhando o Mundo


não aprendi nos quadros
nem nos manuais gastos 
por verdades prontas a servir

aprendi no chão que piso
nos passos que me levam pelo Mundo
que a cartografia coloca à margem
e a história cobre de brumas

a vida não tem currículo fixo
tem perguntas sem resposta
tem tardes de vento e silêncio
tem o rumor da água
tem outras verdades

a escola que me molda
é feita de um tempo lento
de escutar o voo dos pássaros
de sentir o coração das pedras
que guardam memórias

aprendi com o peito aberto
e a ver para lá do olhar
aprendo com o mundo
sento-me nas margens 
ouço os silêncios
aprendo

educar não é repetir
é questionar
é acordar
é saber que a cidadania
não se escreve a giz
nem se digita
a cidadania vive-se
nos caminhos da vida 
na luta 
no sonho que é esperança

Aníbal C. Pires, junho de 2025

quinta-feira, 12 de junho de 2025

da memória do tempo

foto Aníbal C. Pires
geografias da pele


os rostos contam histórias

e gosto

das histórias que os rostos me contam
são imagens 
traçadas a carvão
na memória do tempo

olhos que guardam histórias
carregam a poeira dos caminhos
e brilham como o lume
que aquece
ilumina 
e aconchega

não imploro por nomes
nem datas
nem lugares
só quero as memórias
e as histórias
que os rostos me contam

leio as geografias da pele
como um livro
feito de histórias
silenciadas

são narrativas
que contam sem dizer
a história dos rostos
que só o silêncio
sabe ler

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 12 de junho de 2025

domingo, 1 de junho de 2025

mulheres da Palestina - a abrir junho

imagem retirada da internet
Podia trazer uma outra imagem de mulheres palestinianas para marcar o início do mês de junho. Imagens de morte e terror, optei por uma imagem de heroísmo, luta e resistência.

São mulheres palestinianas, são mulheres que lutam e resistem. São lindas como todas as mulheres que lutam.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

O Mundo mudou, mas o Ocidente continua em negação.

imagem retirada da internet
    Os resultados eleitorais foram dissecados até ao tutano, ainda que, nem sempre ou quase sempre, o que lhe está verdadeiramente na origem não tenha sido tomado em devida conta. Nada tenho a acrescentar ao que, desde há muito, vou deixando grafado nestes e outros textos sobre as causas que podem justificar estes resultados eleitorais e, este não é o momento, de tentar desconstruir as narrativas dominantes.

    A proximidade do ato eleitoral, a euforia de alguns, a demissão de outros e a afirmação, institucional e na rua, de quem não se verga, nem desiste, mas resiste, dizem bem da forma como os diferentes partidos políticos se posicionam, ao que veem e ao que estão. E julgo que, para já, é suficiente, pois, qualquer tentativa de expressar opinião sobre o assunto seria completamente improdutiva, não passou tempo suficiente, a poeira ainda não assentou e, como tal, a visibilidade está aquém do que é desejável para tecer considerações sobre as contradições em que este novo quadro parlamentar se irá, com naturalidade, enredar. 

    Resta a firmeza da luta a que os resistentes nos habituaram ao longo dos seus 104 anos de existência em unidade com os amantes da liberdade, da democracia e de um Estado que continue a garantir os direitos sociais, laborais, culturais e políticos, tendo como referencial a Constituição da República Portuguesa que, apesar das sete revisões a que foi sujeito o texto fundador do Portugal de Abril e de todas as tentativas para lhe retirar o essencial das conquistas da Revolução, ainda mantém a matriz que a afirmou como uma das mais progressistas da Europa.

    Como já se percebeu não é sobre os resultados eleitorais e do que que se lhe segue que versa o texto que hoje partilho com os leitores.

    O mundo gira, e gira cada vez mais rápido. E o que está a acontecer fora das nossas fronteiras, muitas vezes ignorado ou manipulado, terá um impacto muito mais profundo na vida dos povos do que os acordos parlamentares internos. Portugal à semelhança do chamado Ocidente parece descurar todas as alterações que estão a acontecer um pouco por todo o Mundo. 

imagem retirada da internet

    O Mundo está a mudar, mas o Ocidente continua a fingir, ou não quer perceber que o Eurocentrismo e o Atlantismo estão à beira de perder protagonismo e os privilégios que lhe advinham de um modelo herdado do colonialismo e que os instrumentos financeiros, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional e, bélicos, a OTAN, foram perpetuando.


    Vivemos tempos de viragem histórica. O mundo está a mudar diante dos nossos olhos, os centros de decisão estão a deslocar-se e os dirigentes políticos ocidentais atuam como se nada tivesse sido alterado e parecem continuar a viver no passado glorioso que já não existe. A arrogância geopolítica, a fé cega no dólar, a moral seletiva e a cegueira estratégica estão a deixar os dirigentes europeus e estado-unidenses à margem de uma nova ordem internacional em formação. Se os dirigentes políticos continuarem a ignorar as profundas alterações que se têm verificado no xadrez geopolítico mundial e a não participarem na mudança avizinham-se tempos difíceis para os povos do chamado ocidente ou, se preferirem, do Norte Global, embora existam diferenças concetuais entre um e outro, mas que neste caso, retirando as questões culturais e históricas, se pode considerar uma e a mesma coisa, pois, os países que não pertencem ao ocidente, mas fazem parte do chamado Norte Global, estão politicamente alinhados a ocidente. 

imagem retirada da internet

    Vejamos então algumas transformações e podemos começar pelos BRICS. Os BRICS alargaram-se e já deixaram de ser de ser apenas uma sigla económica para se tornar um projeto político em expansão, representa hoje uma alternativa real ao modelo imposto pelo Ocidente desde o fim da chamada Guerra Fria. A sua recente e continuada expansão, os movimentos coordenados para reduzir a dependência do dólar, a chamada desdolarização, e os acordos comerciais bilaterais em moedas locais, mostram que há vida (e poder) para lá de Washington e de Bruxelas. A multipolaridade deixou de ser um cenário hipotético e já está em construção, diria mais, o processo está em movimento acelerado.

    Enquanto isso, a União Europeia continua a agir como um apêndice político dos Estados Unidos. No caso do conflito na Ucrânia, os líderes europeus alinharam cegamente com a estratégia da OTAN, mesmo depois de se tornarem óbvios os custos económicos, sociais e energéticos dessa decisão. A diplomacia foi substituída por slogans, e o realismo geopolítico, pelo pensamento ilusório (wishful thinking). Veja-se por exemplo: a Rússia não foi derrotada, (como se desejava) a Ucrânia está devastada (como previa quem racionaliza o conflito) e a Europa mais dependente e dividida do que nunca, como era óbvio que viesse a acontecer face ao efeito boomerang das sanções impostas à Rússia.

imagem retirada da internet - Ibrahim Traoré,
Presidente do Burquina Faso

    Fora da bolha euro-atlântica, o mundo já começou a reagir. Em África, especialmente no Sahel e entre os países da CEDEAO, assistimos a um levantamento contra o neocolonialismo e as elites locais aliadas às antigas potências coloniais. Em alguns casos foram Golpes de Estado? Talvez. Mas também sinais claros de que uma nova geração rejeita o papel de marioneta num teatro montado em Paris, Londres ou Washington.


    Na América Latina, o mapa político mudou. México, Colômbia, Venezuela e Brasil estão a afirmar soberania e a questionar décadas de submissão ao Fundo Monetário Internacional e aos interesses estado-unidenses, não são mais o quintal do seu vizinho do Norte. O Sul Global está a criar as suas próprias alianças, os seus próprios fóruns, a sua própria linguagem política, e veja-se o despropósito, não está à espera da aprovação de ninguém.

imagem retirada da internet
    Mas talvez o exemplo mais gritante da falência moral do Ocidente seja a Palestina. O que está a acontecer em Gaza é um genocídio transmitido em direto. E mesmo assim, os líderes ocidentais hesitam, relativizam, justificam. O direito internacional, que durante décadas foi brandido como argumento de superioridade civilizacional, tornou-se irrelevante quando os aliados do Ocidente o pisam com as botas cardadas do sionismo. A hipocrisia é total. A humanidade, ausentou-se e os direitos humanos suspenderam-se.

    E no meio de tudo isto, a China observa, investe, negocia, constrói infraestruturas, assegura matérias-primas e alarga a sua esfera de influência sem precisar de usar bombas. Pequim não precisa de ser perfeita, basta-lhe ser consistente. E está a conseguir impor-se, pacificamente, como uma potência económica e tecnológica, mas também militar para afastar qualquer devaneio na agonia da unipolaridade.

    O mundo unipolar, centrado nos Estados Unidos, está a morrer. Diria que está no estertor final, ou já só lhe faltará a certidão de óbito. Os herdeiros desse mundo, os dirigentes ocidentais, recusam-se a aceitar o óbvio e o óbito e continuam a discursar como se tudo fosse reversível, como se bastasse manter as sanções, repetir mantras democráticos e financiar mais umas guerras por procuração de que a história está repleta, mas não precisamos recuar no tempo para encontrar exemplos, acontece na Ucrânia e, mais recentemente na Síria.

imagem retirada da internet

    O problema é que o mundo já não está a ouvir a Kaja Kallas, a Ursula von der Leyen, o António Costa, ou a Administração estado-unidense e muito menos os analistas que, por cá, repetem as palavras dos grandes centros de poder com atraso e a convicção que lhes é paga. O Sul Global está a libertar-se do jugo neocolonial e a afirmar-se sem tutelas. Não perceber, ou pelo menos, não prestar atenção às alterações na geopolítica mundial e, sobretudo, não participar e aceitar o fim da unilateralidade e participar no processo de construção de uma nova ordem mundial ancorada na multipolaridade é um erro. E os erros, como sabemos, costumam pagar-se bem caros.

Ponta Delgada, 27 de maio de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 28 de maio de 2025