quarta-feira, 24 de julho de 2024

quando o rosmaninho florir

foto de Aníbal C. Pires

O regresso às raízes tem sido de curta duração e, com o passar do tempo, cada vez mais espaçado. Continuo a ir, cada vez menos, mas vou.  Persisto em regressar à região onde nasci e cresci. Os retornos são cada vez mais esporádicos, mas a ligação umbilical subsiste. As memórias e os afetos, por muito tempo que tenha passado desde quando ganhei asas e voei, permanecem apesar das raras idas e do pouco tempo que por ali permaneço. 

O afastamento geográfico e a passagem do tempo não nos despojam das lembranças e das pessoas que nos marcaram na infância e juventude, a não ser que queiramos esquecer, mas eu não quero olvidar e procuro manter bem viva a celebração dos lugares que calcorreei na minha infância e juventude e as gentes com quem me fui cruzando, as que me são mais próximas pelas ligações familiares, mas também de amizade, ou mesmo com quem partilhei efémeros, mas inolvidáveis, momentos. Estas ligações afetuosas com os lugares e gentes da minha infância e juventude fazem parte do sujeito que sou. A minha construção pessoal está alicerçada na geografia beirã e na cultura do povo que teima em preservar os seus costumes, apesar das vagas de massificação que, como noutros lugares e regiões, tendem a uniformizar o pensamento e os modos de vida.

Quando regresso e acontecem os reencontros com familiares e amigos, por muito tempo que se tenha passado, e por vezes passa muito, é como se nunca tivesse partido, é como sempre tivesses estado por ali. As afinidades aproximam-nos a conversa flui e usufruímos intensamente dos momentos presentes de partilha. Recordamos, mas não nos amarramos ao passado há sempre futuro no horizonte e compromissos que se renovam como se fossem uma garantia de novos encontros para alimentar memórias e reforçar vínculos.

foto de Aníbal C. Pires
Há uma herança cultural que nos une e nos identifica, o tempo e o distanciamento, sendo importantes, não se constituem como barreiras comunicacionais, o que nos junta é inabalável, ou não fossem os laços que nos ligam ancorados pela peculiar cultura que nos é comum.

Os antigos vínculos com as gentes os seus costumes e vivências deixam marcas indeléveis e os regressos acontecem, mesmo sabendo que os lugares se transformaram e que nem todas as pessoas ainda por ali estão. O tempo tudo transforma e a vida cumpre o seu ciclo, mas o tempo não apaga a memória das gentes e do que elas significaram, ou significam, para cada um de nós, por isso, dizemos quando nos perguntam quando regressamos aos lugares de infância: Onde vais? Vou à terra.

A cada ano são mais penosas as minhas viagens ao interior continental. Sim, é a idade, sim, são os baixos índices de humidade, sim, são as amplitudes térmicas, sim, é o abandono, sim é a desertificação e o envelhecimento. Se a baixa humidade relativa do ar e as temperaturas, provocam algum desconforto, sim, é verdade, mas o que verdadeiramente me inquieta é o abandono deste território e deste povo. 

O abandono, mas também as opções políticas ditadas por distantes centros de decisão e a voracidade do capitalismo que transformam a paisagem física e humana. Os antigos olivais e vinhas foram paulatinamente abandonados, não há quem cuide destas culturas, dando lugar à cultura intensiva, com os custos ambientais, sociais e económicos conhecidos. Opções que empobrecem os solos e as gentes e enricam poderosos grupos económicos. Dizem que é o progresso, até pode ser, mas matar a alma aos lugares é dar continuidade à desertificação que o discurso do poder diz querer combater.

imagem retirada da internet

Refiro frequentemente a cultura do olival e da vinha, sem esquecer a floresta e os produtos frutícolas e hortícolas, mas também a pecuária e, por conseguinte, a produção de um queijo de sabor, consistência e odor inconfundíveis e únicos. A minha insistência na cultura da vinha e do olival não surge por acaso. A existência de inúmeras “lagariças” onde se produziu vinho, mas também azeite, pelo menos no período da presença árabe no Sul da Península Ibérica (Al-Andalus) e até ao aparecimento dos lagares, são testemunhos da importância destas culturas na região. As “lagariças” deram lugar aos lagares, muitos deles em ruínas. Subsistem alguns ligados aos grandes grupos económicos e outros, fruto da persistência e resistência de alguns produtores que teimam em manter a qualidade e a excelência do azeite beirão.

Atormenta-me a substituição da agricultura extensiva pela produção intensiva, perturba-me a instalação de hectares de painéis solares em solos agrícolas. Percebo as preocupações ambientais, mas este é, apenas, mais um equívoco, como foi o biodiesel, ou como são os carros elétricos. Os ambientalistas talvez fiquem satisfeitos com esta conformação do capital às “exigências” de grupos de defesa do ambiente, mas não me parece que a agricultura intensiva, a inutilização de grandes áreas agrícolas para instalação de painéis solares, ou a transição para a mobilidade elétrica individual/familiar se relacione diretamente com sustentabilidade ambiental que todos desejamos e da qual depende, em última instância, a nossa sobrevivência. 

imagem retirada da internet
As culturas intensivas não são de hoje, a paisagem beirã transformou-se com o desaparecimento de grandes manchas florestais de pinheiro-bravo para dar lugar à cultura intensiva de eucalipto com os efeitos perniciosos que todos conhecemos, sem que houvesse força e vontade bastante para o evitar. Dessa opção continuamos, ano a ano, a pagar muito caro, seja pela proliferação de incêndios florestais seja pela destruição dos solos e pelo esgotamento dos aquíferos.

A coesão social e territorial não rima com opções que visam apenas e só o lucro de curto prazo ou de soluções para a produção de energia “limpa” que inutilizam os solos. Ainda assim há pessoas que teimam em ficar e preservar o património paisagístico e cultural contrariando as decisões tomadas em distantes e artificialmente aclimatados gabinetes, sejam eles em Lisboa, Bruxelas ou mesmo Washington, como recentemente se tem verificado.

imagem retirada da internet

Não seria necessário referenciar que estive de visita “à terra”. Que convivi durante alguns dias com um povo que é, como diz a canção, como o granito: “bem rijo e moreno”; e senti o pulsar dos lugares dos quais se diz: “onde nascem as oliveiras os homens não morrem”. Desta vez não foi apenas ir, foi estar. E foi bom apesar de todos os lamentos que fui referenciando ao longo do texto. As insistências para regressar mais de amiúde e estar mais tempo foram muitas e não tive como não deixar o compromisso de regressar brevemente e estar para além de uma fugidia visita, e assim deveria ser não fosse a baixa humidade relativa do ar e a variação da temperatura ao longo do ano. Agora que estou no Outono da vida irei na Primavera quando os rosmaninhos florirem.

Palvarinho, 19 de julho de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular 24 de julho de 2024

terça-feira, 23 de julho de 2024

inquietações

imagem retirada da internet

Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Refiro frequentemente a cultura do olival e da vinha, sem esquecer a floresta e os produtos frutícolas e hortícolas, mas também a pecuária e, por conseguinte, a produção de um queijo de sabor, consistência e odor inconfundíveis e únicos. A minha insistência na cultura da vinha e do olival não surge por acaso. A existência de inúmeras “lagariças” onde se produziu vinho, mas também azeite, pelo menos no período da presença árabe no Sul da Península Ibérica (Al-Andaluz) e até ao aparecimento dos lagares, são testemunhos da importância destas culturas na região. As “lagariças” deram lugar aos lagares, muitos deles em ruínas. Subsistem alguns ligados aos grandes grupos económicos e outros, fruto da persistência e resistência de alguns produtores que teimam em manter a qualidade e a excelência do azeite beirão.

Atormenta-me a substituição da agricultura extensiva pela produção intensiva, perturba-me a instalação de hectares de painéis solares em solos agrícolas. Percebo as preocupações ambientais, mas este é, apenas, mais um equívoco, como foi o biodiesel, ou como são os carros elétricos. Os ambientalistas talvez fiquem satisfeitos com esta conformação do capital às “exigências” de grupos de defesa do ambiente, mas não me parece que a agricultura intensiva, a inutilização de grandes áreas agrícolas para instalação de painéis solares, ou a transição para a mobilidade elétrica individual/familiar se relacione diretamente com sustentabilidade ambiental que todos desejamos e da qual depende, em última instância, a nossa sobrevivência. (...)


sábado, 13 de julho de 2024

notas da época estival

foto de Aníbal C. Pires
Os assuntos do momento, para além das temperaturas do ar e do mar, da humidade relativa, dos dias mais ou menos ensolarados, das festas, que divertem, mas também matam, centram-se, ainda, na participação da seleção portuguesa no europeu de futebol, em particular se o Cristiano Ronaldo deveria ter sido, ou não, selecionado e a opção pela sua utilização a tempo inteiro, incluindo os períodos suplementares nos dois últimos jogos, os resultados da eleições inglesas e francesas e o circo eleitoral nos Estados Unidos, o relatório sobre o incêndio do HDES, a nomeação de um novo presidente para o Conselho de Administração da SATA e a criação de um Conselho Estratégico, este último por encomenda expressa nos jornais da Região e, ainda e sempre, o turismo: a atual galinha dos ovos de ouro, como já houve outras, cujos ciclos de postura que, naturalmente, chegam ao fim.

Temas não faltam a quem, como eu, vai partilhando opinião e, tentando promover reflexão, no espaço público regional. Apesar da proliferação de assuntos, todos eles interessantes e alguns de grande importância para o nosso bem-estar comum, julgo que dos que enunciei e de todos os que ficaram por referir, igualmente relevantes, vou apenas fazer tecer algumas considerações sobre o europeu de futebol e, quiçá sobre os resultados eleitorais no Reino Unido e em França, mas também do circo eleitoral estado-unidense. 

Comprometo-me, desde já, a fazer um esforço acrescido no controle do correr da pena, embora, de tanto contrariar os impulsos naturais esteja há algum tempo com uma incómoda tendinite que dificulta, ainda mais, o livre exercício da escrita ou, melhor dizendo: vou ter em devida conta os condicionalismos da época estival que aconselham temas e refeições ligeiras e a devida manutenção do estado de hidratação, aconselhado em todas as épocas do ano para não me sujeitar às consequências que daí podem advir.

foto retirada da internet

Acompanho o fenómeno futebolístico à distância. As razões que me afastam do futebol relacionam-se com o facto de se praticar pouco desporto e se comentar em demasia, mas também por este “desporto” ser cada vez mais espetáculo e cada vez menos desporto e ser cada vez mais uma indústria financeira, por vezes, com contornos pouco claros. Como não acompanho com proximidade é-me difícil qualquer comentário que não vá além do óbvio, ainda que possa ir contra a corrente dominante dos muitos entendidos que têm vindo a público opinar sobre as opções do selecionador nacional, em particular, sobre a utilização de Cristiano Ronaldo. Não tenho como contrariar a opção de Martinez pois, ele é que conhece jogadores e o seu potencial físico e técnico, por outro lado, e isto é um facto não é uma opinião Cristiano Ronaldo na época de 2023/2024 fez todos os jogos da sua equipa, o Al-Nassr da Arábia Saudita e marcou mais de 50 golos, o que dá uma média superior a um golo por jogo disputado. Destes factos resulta que, em minha opinião, não existem motivos plausíveis, apesar dos 39 anos de Cristiano Ronaldo, para que a opção do selecionador não fosse a de aproveitar o facto de no plantel ter um jogador com as caraterísticas do madeirense que tantas alegrias deu aos adeptos portugueses.

As discussões em torno do assunto têm sido apaixonadas e para todos os gostos, não vale a pena, sequer, tentar rebater as alegações mesmo considerando que muitas das opiniões não estão devidamente fundamentadas, resultam das emoções do momento e não têm sustentação. Há, no entanto, um argumento sobre o qual valerá a pena alguma reflexão e que se corresponder, no todo ou em parte, à razão pela qual Cristiano Ronaldo fez parte da seleção e jogou todos os jogos deveria ser esclarecida. Li algures por aí que a presença de Ronaldo na seleção portuguesa e a sua participação integral em todos os jogos se deve aos valores contratuais e, consequentes, receitas astronómicas que a Federação Portuguesa de Futebol arrecada devido à presença do CR7. Esta “teoria” faz algum sentido face à imagem mundial do capitão da seleção portuguesa, afinal nenhum outro jogador, no mundo, tem a projeção de Cristiano. Se isto tem alguma coisa a ver com desporto, Não. Se o futebol profissional deixou, há muito, de ser uma competição desportiva para se transformar num enorme conglomerado financeiro, não é novidade. Esta foi uma das razões que me levou a afastar do futebol e a fazer afirmações como a que abriu este tema e da qual o leitor ainda estará recordado.

Da eliminação de Portugal pela França procurei encontrar algo de positivo e encontrei. Marine Le Pen, durante o período que antecedeu a segunda volta das eleições francesas, afirmou que não se revia nesta seleção francesa, os eleitores e jogadores franceses deram-lhe uma resposta que, estou certo, lhe provocou muita azia e amargos de boca. Não posso deixar de dizer que fiquei satisfeito, não com a derrota de Portugal, mas com a vitória da esquerda nas eleições francesas.

Sobre as eleições em França muito mais poderá ser dito, mas fico-me apenas pela azia da senhora Marine Le Pen, o que me parece suficiente. 

Os resultados das eleições no Reino Unido também foram interessantes, os trabalhistas (uma espécie de PSD/PS na versão britânica) obtiveram uma vitória esmagadora (412 deputados eleitos) sobre os conservadores (121 deputados eleitos) que exerceram o poder durante os últimos catorze anos, sendo que há muito tinham perdido a legitimidade democrática, ou seja, desde a demissão de Boris Johnson que os conservadores se mantiveram no poder sem terem sido sujeitos ao veredito popular, mas como se trata de um dos “faróis da democracia” ninguém colocou em causa este facto.

Numa abordagem superficial aos resultados eleitorais no Reino Unido e em França poderá afirmar-se que se verifica uma tendência que contraria a ascensão da extrema-direita, o que significa que as lutas destes povos tiveram alguma tradução eleitoral, mas não significa, de todo, uma alteração substantiva das políticas internas e externas destes dois países, embora em França, se vier a concretizar-se um governo da Frente Popular, as alterações que vierem daí a advir poderão contribuir para inverter o rumo neoliberal e belicista que caraterizou a política interna e externa francesa nos últimos anos. Os resultados eleitorais não conferiram maioria absoluta à Frente Popular e a solução governativa está por definir. Resta-nos, pois, aguardar pela constituição do novo governo francês ou, não havendo entendimentos, por um novo ato eleitoral.

Por fim uma ou duas considerações sobre o circo eleitoral nos Estados Unidos que se centra apenas em dois de vários candidatos. É sabido que as possibilidades dos candidatos fora da esfera dos republicanos e dos democratas serem eleitos é quase nula. A arquitetura eleitoral e o financiamento dos candidatos são, apenas, duas das variáveis que inviabilizam que qualquer outro candidato possa chegar à Casa Branca, mas seria interessante que a comunicação social nos desse conta da sua existência o que valorizaria o debate político e, por outro lado evitava o triste espetáculo dos debates entre dois ineptos que, pensando o mesmo, se digladiam com insultos e conteúdos acessórios.

Ponta Delgada, 9 de julho de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 10 de julho de 2024

quarta-feira, 10 de julho de 2024

amargos de boca

imagem retirada da internet




Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.







(...) Da eliminação de Portugal pela França procurei encontrar algo de positivo e encontrei. Marine Le Pen, durante o período que antecedeu a segunda volta das eleições francesas, afirmou que não se revia nesta seleção francesa, os eleitores e jogadores franceses deram-lhe uma resposta que, estou certo, lhe provocou muita azia e amargos de boca. Não posso deixar de dizer que fiquei satisfeito, não com a derrota de Portugal, mas com a vitória da esquerda nas eleições francesas.

Sobre as eleições em França muito mais poderá ser dito, mas fico-me apenas pela azia da senhora Marine Le Pen, o que me parece suficiente. 

Os resultados das eleições no Reino Unido também foram interessantes, os trabalhistas (uma espécie de PSD/PS na versão britânica) obtiveram uma vitória esmagadora (412 deputados eleitos) sobre os conservadores (121 deputados eleitos) que exerceram o poder durante os últimos catorze anos, sendo que há muito tinham perdido a legitimidade democrática, ou seja, desde a demissão de Boris Johnson que os conservadores se mantiveram no poder sem terem sido sujeitos ao veredito popular, mas como se trata de um dos “faróis da democracia” ninguém colocou em causa este facto. (...)


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Dias assim

foto de Aníbal C. Pires
O Verão está instalado, ainda que o tempo meteorológico, por vezes, nos faça duvidar. Mas não há como negá-lo, as festas estão aí a acompanhar o calendário e, pouco importa o resto, seja o recrudescimento do Covid 19 e a incapacidade de resposta do Serviço Regional de Saúde, desde logo devido ao incêndio do HDES, para responder a este surto que está a levantar algumas preocupações entre a população e alguns profissionais de saúde que não fazem do alarmismo a sua especialidade. Quem não parece apreensivo com a atual situação é o governo regional, ou se está, ainda não deu mostras disso. Importante mesmo são as festas, os turistas, os novos hotéis, restaurantes, tascas e tasquinhas. Depois se verá.

Não era bem assim que gostaria de ter iniciado este texto, mas nem sempre posso fazer o que gosto, ou seja, tenho de gerir as minhas emoções e equilibrá-las com a razão. Hoje a ideia era iniciar um ciclo de textos de Verão. Escritos leves e despreocupados como convém à época estival. Se voltarem ao início confirmarão que as primeiras palavras foram: “O Verão…”; a ideia era generosa e a vontade muita, embora não muito fácil de concretizar, aliás como se viu com o primeiro parágrafo. 

As minhas inquietações não se suspendem só por ser Verão e, compor textos adequados à época nem sempre é possível. Fácil nunca é, porém, vou tentar esquecer a Palestina, o República Democrática do Congo e a escalada bélica e armamentista alimentada artificialmente na opinião mediática do chamado “Norte Global”. 

imagem retirada da internet
A loucura parece não ter limites e a inumanidade instalou-se nos países ditos civilizados que a tudo se permitem para continuar a usufruir de estilos de vida incompatíveis com a sobrevivência humana. Não deixa de ser surpreendente que as sociedades mais “informadas” e “formadas” de sempre não tenham capacidade para ler desconstruir a modelação de vontades induzidas pela corrente cultural e ideológica dominante (mainstream), e aceitem, sem questionar, por exemplo, a ideia construída de que os carros elétricos são amigos do ambiente. O que não é, de todo, verdade pois, só a construção de uma viatura deste tipo tem impactos sociais e ambientais devastadores, em particular a extração de cobalto, lítio e níquel para o fabrico das baterias, por outro lado se é verdade que o carro não emite gases de combustão, não é menos rigoroso afirmar que isso só corresponde à realidade se a energia elétrica for produzida integralmente a partir de fontes renováveis, não sendo assim a emissão de gases passa da estradas para as centrais térmicas, ou seja, a emissão de gases com efeito de estufa mantém-se. 

Os cidadãos podem até ficar bem com a sua consciência ao contribuírem para a sustentabilidade ambiental quando optam por um carro elétrico, mas não devem deixar de se questionar sobre a origem dos componentes das baterias, os impactos ambientais negativos que produzem, as condições de trabalho de quem extrai esses minérios e as fontes de energia que são utilizadas para a produção da eletricidade que carrega as baterias do carro. Nem tudo é tão linear e limpo como nos querem fazer crer.

A breve reflexão, sobre o contributo para a sustentabilidade ambiental que a transição dos carros de combustão para os carros elétricos, não pretende mais do que alertar para a forma como a publicidade nos vende “gato por lebre”, e para a importância de nos mantermos informados e, assim, menos permeáveis às agressões da propaganda, mesmo quando aliadas a “nobres” princípios.

imagem retirada da internet
Não conheço bem a organização dos movimentos de “ativismo climático”. Partilho das suas preocupações, não apoio a forma como agem e considero muito redutora a forma com abordam as questões para a resolução do aquecimento global e as alterações climáticas. A mais recente ação de um destes grupos consistiu na pintura, com uma tinta laranja, do monumento megalítico de Stonehenge. A cor da tinta e a ação pode ter um profundo significado para o movimento que protagonizou a iniciativa, mas nem por isso deixou de ser um gratuito ato de vandalismo cujo efeito, para além do mediatismo, é nulo.

Não deixa de ser preocupante que estes movimentos do “ativismo climático” se recusem, conscientemente ou não, a ir à raiz do problema e sirvam, ou se deixem utilizar, como testas de ferro de interesses do momento. 

As questões ambientais não se resumem apenas à utilização dos combustíveis fosseis e, por conseguinte, à emissão de gases de estufa. Os modos de produção que induzem padrões de consumo estão relacionados com a voracidade do capitalismo, por outro lado a transferência da responsabilidade pela sustentabilidade ambiental para o domínio individual tem como objetivo a desculpabilização dos verdadeiros responsáveis. 

A luta pela sustentabilidade ambiental é indissociável da luta pela dignidade humana, ou como dizia Chico Mendes: - Ecologia sem luta de classes é jardinagem. 

Seringueiro, sindicalista, defensor dos povos da floresta, enquanto sujeitos históricos, e do uso sustentado da amazónia, Chico Mendes foi assassinado em 1988. 

Os assassinatos perpetrados contra ativistas socioambientais no Brasil são inúmeros, em 2005, foi notícia a morte, com vários tiros, de Dorothy Mae Stang, missionária católica, de origem estado-unidense e ativista na defesa da floresta e amazónica e dos seus povos.

A luta pela sustentabilidade ambiental não se esgota nas organizações que se constituem com essa finalidade. As organizações políticas que lutam contra o capital têm, na sua matriz ideológica, a defesa do meio ambiente, por outro lado os movimentos ambientalistas nem sempre são confiáveis pois, a permeabilidade a influências que não se compaginam com os seus objetivos e a dependência de apoios financeiros dos estados, empresas e fundações retiram-lhes, em minha opinião, alguma credibilidade.

imagem retirada da internet
A dinâmica dos movimentos sociais é importante e mobilizadora do exercício da cidadania. Veja-se, por exemplo, os movimentos em defesa da habitação, da identidade de género, da orientação sexual, da sustentabilidade ambiental. Qualquer destes movimentos sociais aglutina apoios, tem expressão pública e são, como já referi, importantes na mobilização de vontades. Os movimentos sociais não são uma novidade: as sufragistas, o movimento contra a segregação racial, os movimentos feministas, são apenas alguns exemplos da história dos movimentos sociais do século XX. Todos estes movimentos contribuíram para que em parte, ou no todo, a sua agenda identitária fosse resolvida e as leis discriminatórias fossem abolidas, contudo subsistem, no todo ou em parte, as razões que levaram ao seu surgimento e mobilização. As mulheres continuam a ser discriminadas, o racismo não sendo estrutural está presente nas sociedades ditas livres e democráticas e não precisamos sair do país para encontrar exemplos de discriminação das mulheres, ou de grupos humanos que são olhados como o “outro” e objeto de tratamento discriminatório.

Chegado ao fim tenho de confessar que a esta narrativa falta coesão e o correr da pena levou-me a saltitar, talvez abruptamente, de tema em tema sem que tivesse conseguido uma linha unificadora e lógica. As minhas desculpas aos leitores que conseguiram acabar a leitura e os meus respeitos pela coragem que demonstraram a percorrer este texto cheio de socalcos e desfiladeiros, quiçá alguns promontórios que vos obrigaram a voltar para trás. 

Há dias assim, em que o mais avisado é não resistir e deixar que aconteça. 

Ponta Delgada, 25 de junho de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 4 de julho de 2024

quinta-feira, 4 de julho de 2024

mulher afegã - a abrir julho

mulher afegã durante a revolução Saur
A Revolução de Saur, que ocorreu em 7 de abril de 1978 no Afeganistão. 
As transformações revolucionárias foram, porém, tendenciosamente suprimidas dos anais da sua história e da história mundial.

As motivações populares que levaram à revolução e as subsequentes alterações que se sucederam na sociedade afegã foram “apagadas” e distorcidas pela “intelectualidade” e pela historiografia.

Lindas são as mulheres que lutam.






mulheres afegãs em Cabul - anos 80
A revolução Saur libertou o povo afegão de um regime feudal e tribal e da interferência imperialista. 

Como qualquer outra revolução, também esta foi objeto de ações contrarrevolucionárias internas e externas. Os talibans são os herdeiros diretos da criação dos chamados “combatentes da liberdade”, ou “mujahedin”, financiados e equipados pelos Estados Unidos, no pressuposto da luta contra a presença do exército soviético no Afeganistão.

A revolução Saur acabou por ser derrotada e o poder no Afeganistão foi entregue aos talibans, com todo o retrocesso social, cultural, político e económico que se conhece. 


quarta-feira, 26 de junho de 2024

minérios e meio ambiente

imagem retirada da internet



Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Os cidadãos podem até ficar bem com a sua consciência ao contribuírem para a sustentabilidade ambiental quando optam por um carro elétrico, mas não devem deixar de se questionar sobre a origem dos componentes das baterias, os impactos ambientais negativos que produzem, as condições de trabalho de quem extrai esses minérios e as fontes de energia que são utilizadas para a produção da eletricidade que carrega as baterias do carro. Nem tudo é tão linear e limpo como nos querem fazer crer.

A breve reflexão, sobre o contributo para a sustentabilidade ambiental que a transição dos carros de combustão para os carros elétricos, não pretende mais do que alertar para a forma como a publicidade nos vende “gato por lebre”, e para a importância de nos mantermos informados e, assim, menos permeáveis às agressões da propaganda, mesmo quando aliadas a “nobres” princípios. (...)


quinta-feira, 13 de junho de 2024

mais do mesmo

A complexidade dos diferentes cenários e contextos políticos nacionais dos países membros da União Europeia, a situação global e o investimento do poder financeiro nas candidaturas que, de momento, melhor o servem, ditaram os resultados das eleições para o Parlamento Europeu (PE).

Se fiquei satisfeito, não. Se fui surpreendido, também não. Claro que se for olhando para os pormenores poderei encontrar alguns motivos de satisfação e algumas perplexidades, mas não são suficientes para contrariar a ideia geral que pouco, ou nada, vai mudar no rumo que a União Europeia tem vindo a trilhar. 

O Partido Popular Europeu (PPE) e o Partido Socialista Europeu (PSE) continuam a ser as duas maiores famílias políticas do novo PE e, ainda que sem maioria dos assentos parlamentares, encontrarão nos Liberais, ou num outro parceiro de ocasião, o necessário apoio para dar continuidade às políticas de desvalorização do trabalho e dos trabalhadores, de concentração de riqueza, de escalada armamentista e belicista, com os inerentes custos sociais e económicos para os trabalhadores e povos dos países membros, mas também para o mundo. Nada de novo, nem de bom, se configura para o futuro próximo, ou seja, mais do mesmo. Nem mesmo o crescimento da extrema-direita, aquém do que foi projetado e alimentado, chega a ser motivo para tecer outras considerações, para além da que se segue: os tumores, mais tarde ou mais cedo, serão extirpados.

Os efeitos produzidos na política interna de cada um dos membros da União Europeia (UE) são diversos e sujeitos a leituras políticas, igualmente distintas, que produziram e irão produzir efeitos colaterais, uns mais catastróficos que outros. Se é verdade que a natureza dos atos eleitorais é diferente existem, contudo, efeitos presentes e futuros nas políticas internas dos Estados membros que resultaram ou resultarão diretamente dos resultados eleitorais para o PE, ainda que e como já referi, não se prevejam alterações ao rumo neoliberal que tem vindo a caraterizar as políticas internas dos Estados membros e da União Europeia. Rumo que só será invertido, mais tarde ou mais cedo, com a luta dos trabalhadores e dos povos.

Não deixa, contudo, de ser interessante quando olhamos para os resultados de cada um dos Estados membros e tentar perceber as lógicas eleitorais que levaram às “vitórias” e “derrotas” de alguns agrupamentos políticos que atualmente exercem(ciam) o poder. As razões da derrota de Macron, em França, podem justificar a vitória de Meloni, em Itália, ou seja, ambos apoiam a escalada armamentista da EU, e não ajuízo sobre as escolhas dos franceses nem dos italianos, embora me preocupe. Quero com isto dizer que em relação às políticas internas e externas da União Europeia não são claras as diferenças entre Meloni e Macron, sendo que os dois comungam de ideais de direita, ainda que Meloni tenha a marca da extrema-direita e Macron, sendo-o, tem evitado essa distinção em grande parte devido a Marine Le Pen que assume e vocifera aos sete ventos que o é, retirando a Macron esse estatuto. Quer um quer outro foram subscrevendo as políticas da União Europeia da qual Ursula von der Leyen tem sido o rosto e almeja continuar a ser, ou quiçá, a assunção de um qualquer outro cargo de servente da política externa dos Estados Unidos ou do seu braço armado.

Não pretendo enfastiar os leitores com leituras país a país ou servir de mediador na leitura dos resultados eleitorais para o PE, mas sempre direi que, com uma ou outra exceção, a direita e a extrema-direita saiu, como era expetável, reforçada. Os efeitos desse aumento não vão contribuir para alterações substantivas, apesar dos discursos inflamados dos partidos populistas em campanha eleitoral pois, como todos compreendemos a “governação” da UE depende mais dos “arranjos” entre as maiores famílias políticas e os parceiros de ocasião, do que da intervenção dos deputados no PE.

O discurso oficial do PPE e do PSE denota alguma preocupação com o crescimento da extrema-direita, mas têm a sido as opções políticas destas duas famílias políticas que criaram as condições para o crescimento da extrema-direita nos países da UE e agora no aumento da sua representação no PE. As preocupações que o PPE e o PSE perante este fenómeno são um exercício de hipocrisia e de desculpabilização pelas responsabilidades que lhe podem ser imputadas, ao longo de dezenas de anos, pela desestabilização e promoção de conflitos bélicos (Líbia, Iraque, Síria, Ucrânia de entre outros), a queda dos pilares fundacionais deste projeto social e económico ao qual se pode juntar a gradual perda de soberania dos estados-membros e a sempre anunciada, mas inatingível coesão social e económica.

A deriva neoliberal que os governos dos estados-membros liderados por partidos ditos populares, sociais democratas e “socialistas” e a sua sujeição aos interesses dos Estados Unidos, a permeabilidade da governação da UE aos grandes grupos económicos e financeiros apátridas e uma incompreensível, ou não, sujeição aos interesses dos Estados Unidos escancararam as portas à extrema-direita neofascista, ou seja, à penetração dos discursos nacionalistas, de intolerância e de culpabilização do outro que alimentam as frases curtas e repetitivas tão características dos partidos populistas e neofascistas.

A UE tem vindo a abandonar a ideia de um espaço de liberdade, igualdade e cooperação, eu diria, que as atuais proclamações e atuação das diferentes instâncias políticas da EU escalam uma crescente restrição das liberdades e dos direitos sociais e laborais, mas também direitos políticos e culturais. As operações de falsificação da história impõem o pensamento único e difundem conceções fascizantes através dos meios propagandísticos oficiais, promovendo conceitos racistas xenófobos, chauvinistas e discriminatórios, ou seja, coloca em causa o princípio da igualdade consagrado nas cartas dos direitos humanos.

A pandemia, a inflação, a guerra e as sanções têm justificado um acentuado aumento das desigualdades e da injustiça social, seja pela desvalorização do trabalho (desemprego, precariedade e baixos salários), seja pelo aumento da inflação e das taxas de juro.

As opções políticas da UE provocam a acumulação e concentração da riqueza sendo que os principais beneficiários têm sido os grupos financeiros, farmacêuticos, de armamento, de energia, do agro-negócio e da grande distribuição.

Os efeitos destas opções políticas manifestaram-se de forma diferente nos estados-membros, mas todos sentiram o peso da inflação, o aumento dos custos da energia e os ataques aos direitos sociais e laborais.

Existem bastas razões para os cidadãos estarem descontentes com os seus governos e com a UE, a forma como manifestaram esse desagrado ou apoio foi diversa, o que não me surpreendeu, como referi anteriormente, mas também não me deixou satisfeito pois, o novo quadro parlamentar não vai inverter o rumo de empobrecimento dos cidadãos da UE. 

Ponta Delgada, 11 de junho de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 12 de junho de 2024

1984, de George Orwell

foto de Aníbal C. Pires
Esta nota surge devido a um comentário feito na minha página do Facebook e me criticava por ter publicado uma imagem da capa sem qualquer apreciação crítica.

Não pretendo com este texto fazer apreciações literárias apenas e tão-somente deixar algumas impressões sobre a atualidade deste livro que, não o sendo, parece premonitório.

“1984” de George Orwell, foi escrito em 1948, daí resulta o título. Quando esta obra distópica deu à estampa, em 1949, foi considerada, em razão do contexto histórico e político, uma contundente crítica aos regimes totalitários, e em particular à União Soviética.

Na época, 1948, a chamada guerra fria e o processo de reescrever a história estava nos seus primórdios. À data a obra de Orwell e durante alguns anos serviu como um suporte de propaganda para travar a influência dos ideais marxistas-leninistas nas sociedades ocidentais, ainda que sem sucesso pois, como sabemos o declínio eleitoral dos partidos comunistas, em particular na Europa, só veio a acontecer algumas dezenas de anos depois e por opções próprias que os transformaram em organizações partidárias, direi, sociais-democratas e igual a muitas outras já existentes.

Bem, mas, isso não vem ao caso. Importa hoje constatar que “1984” retrata, não tendo sido a finalidade de Orwell, a sociedade atual, em particular as sociedades do chamado “Norte Global”, vejamos:

- a “novaescrita” – as alterações semânticas como, por exemplo, “colaborador” ao invés de trabalhador:

- o “Grande Irmão” – as redes sociais que tudo vigiam e controlam;

- “2+2=5” – controle sobre a realidade, ou seja, as “fake news”, notícias falsas;

- “buraco da memória” – censura (temos no espaço da União Europeia, vários órgãos de comunicação social proibidos) e todo o processo, em curso, de reescrever a história.

- perseguição e prisão – Julian Assange, Pablo Gonzalez, Pablo Házel, de entre outros. Mas também a perseguição e a repressão sobre, por exemplo, os manifestantes contra o genocídio em Gaza.

"1984", ao contrário do “suposto” objetivo do autor e da propaganda anticomunista, transformou-se numa obra cuja atualidade é pungente, por isso a reli e aconselho a ler.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 13 de junho de 2024


terça-feira, 11 de junho de 2024

a deriva neoliberal da UE

imagem retirada da internet



Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(…) O discurso oficial do PPE e do PSE denota alguma preocupação com o crescimento da extrema-direita, mas têm a sido as opções políticas destas duas famílias políticas que criaram as condições para o crescimento da extrema-direita nos países da UE e agora no aumento da sua representação no PE. As preocupações que o PPE e o PSE perante este fenómeno são um exercício de hipocrisia e de desculpabilização pelas responsabilidades que lhe podem ser imputadas, ao longo de dezenas de anos, pela desestabilização e promoção de conflitos bélicos (Líbia, Iraque, Síria, Ucrânia de entre outros), a queda dos pilares fundacionais deste projeto social e económico ao qual se pode juntar a gradual perda de soberania dos estados-membros e a sempre anunciada, mas inatingível coesão social e económica.

A deriva neoliberal que os governos dos estados-membros liderados por partidos ditos populares, sociais democratas e “socialistas” e a sua sujeição aos interesses dos Estados Unidos, a permeabilidade da governação da UE aos grandes grupos económicos e financeiros apátridas e uma incompreensível, ou não, sujeição aos interesses dos Estados Unidos escancararam as portas à extrema-direita neofascista, ou seja, à penetração dos discursos nacionalistas, de intolerância e de culpabilização do outro que alimentam as frases curtas e repetitivas tão características dos partidos populistas e neofascistas. (…)