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foto de Paulo. R Cabral |
O senso pode ser comum, ou bom. O senso comum nem sempre é sinónimo de bom senso e os dicionários da língua portuguesa estabelecem as diferenças com rigor.
Bom senso - equilíbrio nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta; senso comum - conjunto de opiniões ou ideias que são geralmente aceites numa época e num local determinados; (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).
O bom senso implica, necessariamente, a reflexão, o pensamento e a capacidade de análise para tomar decisões. O senso comum exprime opiniões que, embora, aceites como verdades pela generalidade dos cidadãos, nem sempre, ou quase sempre, transmitem factos devidamente comprovados.
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imagem retirada da internet |
Outros ditados populares tendem a induzir inação como, por exemplo: “cada macaco no seu galho”. Ou seja, se o meu lugar é aquele não posso, ou não devo, procurar um galho que me não foi predestinado. Se o entendimento for este, e o senso comum assim o expressa, o resultado será a aceitação acrítica de que nada poderei fazer para mudar de galho o que inibe qualquer iniciativa individual ou coletiva de mudança transformadora, direi que, este dito se pode articular com um outro: “sempre assim foi e assim será”; este dito popular reforça a ideia de aceitação de algo que foi predestinado. Mas se há coisas que sempre assim foram e assim serão, muitas outras, por não obedecerem à ordem natural das coisas, podem ser alteradas e transformadas.
O senso comum aparenta ser inócuo e neutro, mas se atentarmos ao discurso ideológico dominante, que se afirma como despido de qualquer ideologia, constatamos que, tal como demonstrou o filósofo Antonio Gramsci, o senso comum tem um carácter ideológico. Segundo Gramsci o senso comum é um modelo de filosofia espontânea das massas, assente em fragmentos de religião, moral, experiência, mas, sobretudo, do pensamento veiculado pelo poder dominante. O senso comum aceita as desigualdades como algo natural, legitima as injustiças e reproduz ideias feitas. O senso comum parecendo, como já foi referido, neutro raramente o é.
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A sua eficácia reside no facto de parecer distanciar-se de qualquer ideologia. Expressões que ouvimos com frequência da boca de alguns protagonistas políticos, que têm vindo a registar um expressivo crescimento eleitoral, como por exemplo “os beneficiários do RSI são uns malandros e vivem à custa de quem trabalha”, ou ainda “os imigrantes estão a ocupar o que é nosso”, estas e outras expressões que não tendo nenhum fundamento pois, como sabemos existem muitos beneficiários do RSI que trabalham, mas o salário é tão baixo que o agregado familiar é apoiado com esta medida social, por outro lado, um dos principais alvos deste apoio são pensionistas e crianças, ou seja, a maioria dos beneficiários do RSI são os trabalhadores que empobrecem a trabalhar, os cidadãos idosos com uma longa vida de trabalho e, por outro lado as crianças que não podem, naturalmente, trabalhar. Quanto à população migrante é igualmente do domínio público que o saldo das contribuições para a segurança social é positivo, constituindo-se mesmo como determinante para a sua sustentabilidade, isto sem referir a importância demográfica que representam. Os imigrantes são tudo menos um perigo para a segurança pública, aliás como os relatórios o comprovam, bem como, se possuidores de direitos sociais e laborais, não representam nenhum tipo de competição no mercado de trabalho.
Os discursos assentes no senso comum alicerçam-se em crenças e emoções, ou seja, não têm uma base crítica e científica o que torna o discurso permeável em largos setores da sociedade pouco dada à desconstrução do discurso político sem conteúdo e cheio de lugares-comuns, por isso são tão eficientes na manipulação da opinião pública mergulhada num nevoeiro informacional que as redes sociais ampliam. Autores como Louis Althusser e Pierre Bourdieu também exploraram esta dimensão do poder simbólico e da interiorização de esquemas mentais que moldam a forma como vemos o mundo. O senso comum funciona como um espelho deformado: devolve-nos uma imagem da realidade já filtrada por interesses, preconceitos e hierarquias invisíveis. É uma pedagogia silenciosa da resignação.
Nos dias de hoje, este campo tem sido particularmente explorado pela extrema-direita, que soube apropriar-se do senso comum para lhe dar roupagens novas. Ao discurso simples, direto e “anti-intelectual” junta-se o apelo à emoção, ao medo e à animosidade. É a linguagem do “bom povo” contra “as elites”, do “realismo” contra a “ideologia”, da “ordem” contra o “caos”. Mas o que, por vezes, parece bom senso é, na verdade, uma forma insidiosa de capturar o senso comum para projetos políticos autoritários ao serviço do capital sem rosto nem pátria.
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É neste contexto que a educação pública, a cultura e os media responsáveis assumem um papel decisivo. Promover o pensamento crítico não é um luxo pedagógico é, diria, um imperativo democrático. Ensinar a distinguir a opinião do facto, a argumentar com base em evidências e a desconfiar das verdades feitas é a melhor forma de combater a cristalização do senso comum. Do mesmo modo, a literatura, o teatro, o cinema ou a poesia, isto é, a cultura tem uma função que vai muito além do entretenimento: é um instrumento de libertação simbólica. A confusão entre senso comum e bom senso não é apenas uma questão semântica. É uma armadilha política. Num tempo em que crescem a desinformação, o populismo e o ódio como forma de mobilização, torna-se urgente resgatar o valor do pensamento crítico, da dúvida, da razão prática, ou melhor, do bom senso.
O bom senso não grita, não polariza, não humilha. Num tempo em que alguns se erguem em nome do “povo” para dizer barbaridades com ar de verdades absolutas, importa recuperar o bom senso como prática cívica e não como um eco acrítico do que se diz ou do que se acha. Porque, no fundo, não é o que “toda a gente diz” ou o que se “acha” que nos deve guiar, mas sim o que conseguimos pensar por nós mesmos, com base em factos, conhecimento e cultura.
Ponta Delgada, 8 de julho de 2025
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