quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A falácia da transição verde

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A crise climática deixou de ser uma previsão sombria para se tornar numa evidência quotidiana, mesmo considerando a existência de alguns fundamentalismos entre os chamados militantes climáticos, também eles uma falácia pois, o seu posicionamento e ação refere-se, tão-somente, aos efeitos e nunca às causas. 

As temperaturas médias globais sobem, os períodos de estio alargam-se, os incêndios tornam-se mais devastadores, neste caso importa juntar outras variáveis, as chuvas são torrenciais e a subida das águas oceânicas um facto comprovado. Já não falamos de um futuro distante, mas de uma realidade que molda o presente e condiciona o futuro imediato. É neste cenário que se ergue a narrativa da chamada transição verde, apresentada como panaceia capaz de reconciliar desenvolvimento económico e a sustentabilidade ambiental. Mas, por detrás da retórica otimista e das metas da neutralidade carbónica, esconde-se uma falácia que importa denunciar e desconstruir.

A lógica dominante da transição energética, tal como é desenhada pelo Norte Global, não rompe com o paradigma que nos trouxe até aqui. Pelo contrário, reproduz as mesmas assimetrias, os mesmos vícios de exploração e a mesma crença cega no crescimento ilimitado, que decorre da agenda neoliberal. 

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Substitui-se a dependência dos combustíveis fósseis pela dependência de recursos minerais críticos (lítio, cobalto, níquel, terras raras), cuja extração intensiva ameaça ecossistemas frágeis e as comunidades humanas que os habitam. Aquilo que se proclama como energia limpa esconde uma pegada ecológica e social profunda, projetada sobre territórios do Sul Global, de África à América do Sul, passando também por regiões periféricas da Europa, um impacto ambiental e social que nos devia fazer refletir sobre os discursos e práticas dos decisores políticos. 

Basta observar o que acontece em países como a República Democrática do Congo, onde o cobalto alimenta a indústria das baterias elétricas, mas à custa de trabalho infantil, destruição ambiental e violência armada. Ou olhar para o triângulo do lítio (Argentina, Bolívia e Chile), onde a exploração do lítio destrói aquíferos, ameaçando modos de vida ancestrais. Mas também, em Portugal se ensaiam projetos de mineração em nome da modernidade verde, e é legítimo questionar se não se trata de mais uma repetição do velho padrão da extração predatória, devastando territórios para satisfazer necessidades externas, deixando atrás de si cicatrizes irreversíveis.

A promessa de uma economia descarbonizada assenta, assim, num equívoco, ou seja, pretende resolver um problema criado pelo excesso de consumo e pela aceleração produtiva através de uma solução que mantém intactos os mesmos pilares. É o que poderíamos chamar de maquilhagem verde, pintar de sustentável aquilo que permanece estruturalmente insustentável. A indústria automóvel, por exemplo, não questiona o modelo de mobilidade assente no transporte individual, mas apenas substitui motores de combustão por baterias de lítio. As grandes multinacionais energéticas não abandonam a lógica monopolista, apenas diversificam o portefólio para instalar parques solares e eólicos de escala gigantesca, muitas vezes implantados em territórios já sobrecarregados de injustiças sociais.

A esta cosmética junta-se um segundo mecanismo de engano: a transferência da responsabilidade para o indivíduo. O cidadão comum é chamado a reciclar, a trocar lâmpadas, a comprar carros elétricos, a moderar o seu consumo, como se o destino do planeta dependesse, em última instância, da soma de pequenos gestos domésticos. Esta pedagogia moral, tão ao gosto da cartilha neoliberal, desloca o centro do problema e da solução para a esfera individual, enquanto absolve governos, grandes corporações e sistemas económicos da mudança estrutural que se impõe.

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É claro que os comportamentos individuais têm relevância, mas a crise climática não se resolve no carrinho das compras nem na escolha entre um automóvel a diesel ou elétrico. A escala do problema é sistémica e resulta de um modelo produtivo extrativista, de cadeias globais de abastecimento energívoras, de uma lógica de crescimento que ignora os limites. Enquanto se responsabiliza o indivíduo, mantém-se intocado o paradigma que o obriga a viver em cidades desenhadas para o automóvel, a consumir bens de obsolescência programada, a depender de energia centralizada controlada por oligopólios.

Desconstruir este mito é essencial. Não se trata de um conjunto de decisões individuais, mas de uma mudança coletiva, cultural e política. A transição só será efetiva se questionar os alicerces do modelo de produção e consumo, redistribuir responsabilidades e enfrentar os poderes que lucram com a crise. Transferir a culpa para o indivíduo é cómodo para os grandes atores económicos, mas é apenas mais uma panaceia. O planeta não se salvará com consumidores mais conscientes, isso é apenas um pequeno contributo, mas com sociedades mais justas e Estados capazes de regular, limitar e transformar.

O problema não é a tecnologia em si, mas o enquadramento económico e político que a instrumentaliza. Quando a transição é pensada como mais uma oportunidade de negócio, em vez de mudança civilizacional, cai-se inevitavelmente na falácia. A lógica é a mesma de sempre: expandir mercados, abrir novas fronteiras de acumulação, transformar a crise ambiental em mercadoria. Assim, a transição verde não se afirma como rutura, mas como a continuidade de um modelo de crescimento económico caduco.

O caminho passa por reconhecer os limites. Limites do planeta, limites da exploração, limites de um modelo económico que não pode continuar a crescer infinitamente num espaço finito. A verdadeira rutura não é energética, mas cultural e política. Implica reduzir o metabolismo económico global, repensar padrões de produção e consumo, reorganizar as cadeias produtivas, fortalecer a proximidade e diminuir a dependência de fluxos materiais gigantescos.

É claro que tais mudanças não são neutras nem indolores. Significam tocar em interesses instalados, questionar privilégios, alterar hábitos quotidianos. Mas é ilusório acreditar que a crise climática se resolverá com soluções rápidas e indolores, embaladas em slogans publicitários. A neutralidade carbónica de 2050 não pode ser apenas um horizonte retórico. A neutralidade carbónica só terá sucesso com a concretização de profundas transformações nos modelos sociais, económicos e políticos de desenvolvimento, ou seja, exige uma rutura que vai muito para além da mera substituição de fontes de energia.

A União Europeia, e em particular Portugal, têm aqui uma oportunidade para se posicionarem de forma distinta. Em vez de ceder ao canto de sereia da mineração desenfreada em nome da modernidade verde, poderiam apostar em modelos descentralizados, na eficiência energética de pequena escala, na mobilidade coletiva e partilhada, na revitalização da agricultura sustentável e de proximidade. Poderiam, sobretudo, assumir uma política de sobriedade energética, em vez de perpetuar o dogma do consumo desenfreado.

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No fundo, o desafio que enfrentamos não é o de trocar petróleo por minerais críticos, mas o de redefinir a relação entre humanidade e natureza, entre economia e ecologia, entre presente e futuro, entre o bem-estar e a justiça social. A crise climática não será resolvida com soluções cosméticas, mas com coragem política e transformações que só a mobilização coletiva pode conseguir. 

A transição verde será falaciosa enquanto se limitar a colorir de sustentável o velho e insustentável paradigma de crescimento. Só será verdadeira quando aceitarmos que o planeta tem limites, e que a vida só floresce quando se respeitam os seus ritmos e equilíbrios. A crise climática não pode reduzir-se a mais uma oportunidade de negócio e à indução de novos padrões de consumo ancorados nos velhos princípios predatórios dos recursos naturais, ainda que maquilhados de verde. 

 Ponta Delgada, 29 de setembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 1 de outubro de 2025

Heba Zagout - a abrir outubro

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(…) calaram as tuas mãos
não apagaram a tua arte
nas tuas telas respira a Palestina
das oliveiras
dos rostos
das crianças
da memória (…)

Aníbal C. Pires





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Heba Zagout pintava com as cores da terra e do exílio, como quem bordava na tela a memória coletiva de um povo. Cada traço era resistência, cada figura uma afirmação de existência contra o apagamento. Na sua arte cabiam as oliveiras, as mulheres, as casas teimosamente reerguidas sob as ruínas.

No dia 13 de outubro de 2023, as bombas genocidas da ocupação sionista calaram-lhe as mãos, mas não o seu legado. As suas telas sobrevivem como gritos silenciosos, como faróis no meio das trevas, lembrando que a Palestina não é só dor, mas também beleza e vida perseverante.

A sua morte não é apenas ausência é, sobretudo, presença transformada em luz. Heba permanece no gesto de cada criança que desenha o céu sobre Gaza, na voz de cada mulher que resiste, no sopro de cada artista que ousa criar sob o jugo colonial sionista e dos seus cúmplices.