(continuação)
foto de Madalena Pires |
2. Não levanto o tabuleiro na zona de restauração dos centros comerciais, pela mesma razão que me recuso a utilizar as caixas automáticas nos hipermercados, não faço o registro eletrónico de passageiro (check in) quando viajo de avião, continuo a adquirir as passagens numa agência de viagens, não encomendo alimentos pelas plataformas de entrega de comida em casa, não utilizo transportes ligados a plataformas eletrónicas, isto é, procuro não dar contribuições para a diminuição dos postos de trabalho e dos direitos dos trabalhadores, contudo, devo confessar que é difícil evitar todos os dispositivos de serviços eletrónicos colocados à nossa disposição e utilizo alguns, como por exemplo o sítio da “Autoridade Tributária”, para pagar impostos e submeter a declaração de IRS, ou ainda as caixas automáticas da banca.
imagem retirada da internet |
Outros exemplos, quiçá, mais assertivos se podem encontrar, mas para exemplificar vou socorrer-me de uma alteração que se verificou há umas dezenas de anos e sobre a qual, à época, nada foi dito, ou terá sido e eu não dei a devida conta, mas induziu alguma reflexão nos cidadãos mais atentos e críticos tal como hoje continua a acontecer com as alterações sociais, económicas, políticas e culturais provocadas pelos avanços científicos e tecnológicos e pela IA.
Alguns de nós lembram-se da existência nos transportes coletivos, urbanos ou suburbanos, de um motorista, um cobrador e por vezes a passagem de um fiscal. Quando criança os bilhetes eram retirados de um bloco de papel, cortados com auxílio de uma régua alinhada entre a partida e o destino, mais tarde os cobradores foram equipados com um instrumento que, mecanicamente, imprimia o título de transporte, passado pouco tempo a máquina foi fixada junto do motorista que, assim, passou a emitir os bilhetes, os fiscais continuavam a aparecer para fazer o controle da execução, os cobradores foram dispensados pois a sua função foi assumida pelo motorista. Neste pequeno salto tecnológico houve ganhos importantes e era esperado que os benefícios que daí advinham fossem redistribuídos. Os custos fixos de exploração da empresa diminuíram e a expetativa dos passageiros era que o preço diminuísse, e, os trabalhadores, naturalmente, esperavam que os seus salários aumentassem. Nem os preços das viagens diminuíram, nem a qualidade do serviço aumentou, nem os rendimentos dos trabalhadores cresceram em termos líquidos, ou ainda por outras compensações. O único beneficiário foi a empresa, perderam-se postos de trabalho, os clientes e os trabalhadores não beneficiaram com estas alterações.
imagem retirada da internet |
A revolução científica e tecnológica, como era previsto, seguiu o seu curso ultrapassando as melhores expetativas que se previam nas juvenis discussões que no final dos anos 70 do século anterior mantinha com amigos e colegas. Facilitou a vida dos cidadãos (clientes/consumidores), melhorou as condições de acesso à informação, as comunicações com imagem em tempo real vulgarizaram-se. Os novos materiais, as tecnologias, a automação e a robótica introduziram alterações significativas nas condições de trabalho. Todo um mundo novo sonhado está aí, mas nem tudo o que era previsto se concretizou. A redistribuição dos benefícios não aconteceu e, uma vez mais, os trabalhadores foram as vítimas, lamentavelmente quem mais acreditava que a evolução dos processos de produção lhes traria vantagens nas relações laborais encontra-se hoje a resistir e a lutar para travar a barbárie liberal que provoca injustiças, retira direitos, escraviza e concentra, de forma pornográfica, a riqueza.
Tenho a perceção que a maioria dos trabalhadores não tem consciência da globalidade do processo, e analisa estas transformações apenas e só na perspetiva do utilizador/consumidor e nas comodidades que daí lhe advêm, deixando de parte os aspetos perversos que a prazo o podem vir a afetar. Um breve olhar para o passado recente e para o presente é suficiente para nos apercebermos que não são só os trabalhadores indiferenciados e pouco qualificados que são descartados, cada vez mais assistimos à democratização da desgraça e os quadros técnicos e superiores são hoje os trabalhadores das praças de jorna onde se recruta mão-de-obra barata e disponível para trabalhar sem levantar ondas.
foto de Madalena Pires |
Com a revolução científica e tecnológica esperavam-se, é certo, as comodidades de que estamos a usufruir, mas era expetável, mesmo nas democracias liberais, que os rendimentos do trabalho aumentassem e os horários fossem reduzidos, permitindo assim sustentabilidade para a Segurança Social pública (salários mais elevados, maiores contribuições), com a redução da idade da reforma e dos horários de trabalho permitia-se a entrada dos jovens mercado de trabalho, prevenia-se o desemprego estrutural. A realidade é, porém, bem diferente a diminuição de custos com o trabalho (nos setores privado e público) foram canalizados, exclusivamente, para os empregadores. A extinção de postos de trabalho por via dos avanços científicos, técnicos e tecnológicos, a par da desregulação das leis laborais e da precariedade contribuiu para o aumento do desemprego (estrutural e conjuntural) e, por consequência, para a desvalorização do trabalho.
(continua)
Ponta Delgada, 18 de abril de 2023