quarta-feira, 14 de junho de 2023

Promovendo a desigualdade

 

imagem retirada da internet
A última publicação, neste espaço, deixava uma espécie de compromisso que anunciava, havendo oportunidade, um regresso às políticas de imigração dos Estados Unidos. A ocasião é hoje sob pena de remeter o tema, como tem acontecido a outros, para as “calendas gregas”.

Não pretendo, com esta abordagem, ser exaustivo nem complexificar as causas que sustentam as decisões políticas, nem os efeitos produzidos na regulação dos fluxos migratórios, ou outros que pouco ou nada se relacionam com as migrações, em alguns casos a sua finalidade está diretamente ligada à luta ideológica que se travou durante o período da chamada “Guerra Fria”, e que se prolongam no tempo como se tratasse de ajuda humanitária a refugiados. Aqui e ali o texto será salpicado com a opinião do autor, mas ficará o habitual espaço para o leitor e, por conseguinte, o desafio à sua reflexão e pesquisa sobre a história dos Estados Unidos da América (EUA), país com o qual os Açores, mais do que outras regiões de Portugal, têm uma forte e estreita ligação.  

A fundação dos EUA data do último quartel do século XVIII (1776), a sua independência só foi reconhecida pela coroa britânica após o término da chamada “guerra da revolução americana” que se prolongou de 1775 a 1783. Não vou tecer considerações sobre o processo de colonização, nem sobre os motivos que uniram as chamadas “Treze Colónias”, todas elas na costa atlântica, na guerra pela sua independência, embora quer um, quer outro facto sejam importantes para a compreensão histórica do processo de construção daquilo que são, atualmente, os EUA. E não, não fica sequer uma ténue hipótese de que voltarei a estes temas, existe abundante literatura sobre o assunto, o importante mesmo é consultar várias fontes para não aceitar acriticamente a versão hollywoodesca da história.

imagem retirada da internet

A primeira Lei da Imigração (Lei da Naturalização/Nacionalidade) data de 1790, o que na construção de um novo país resulta como sendo parte do processo lógico de arquitetura dos seus pilares legislativos de afirmação como espaço social, económico e político. A lei refletia os conceitos de cidadania que faziam doutrina na Europa e nas colónias europeias que não são, de todo, os mesmos que hoje adotamos, apesar de termos ainda um longo caminho a percorrer para que todos os seres humanos sejam tratados como tal. O direito à naturalização, consagrado na Lei de 1790, era concedido apenas a "homens brancos livres", o que pressupõe a existência, naquele território, de “homens brancos não-livres”. A lei estabelecia que apenas os imigrantes brancos do sexo masculino tinham o direito à cidadania dos EUA, ou seja, às mulheres, às pessoas não brancas e aos escravos (não importava a sua origem geográfica) era-lhes negado o estatuto de cidadão. Claro que a literatura sobre o tema nos remete para estrutura social, económica e “racial” da época, mas isso não justifica, nem pode justificar o destino dado aos povos autóctones, aos escravos e às mulheres, desde logo as “brancas”, mas sobretudo as indígenas e as negras que para além da condição feminina carregavam um fardo ainda mais pesado por não serem “brancas”. Um tema que merecia atenção especial, mas também sobre ele existe uma vasta bibliografia, da qual destaco “Mulheres, Raça e Classe”, de Angela Davis.

A Lei da Naturalização/Nacionalidade de 1790 foi sendo alterada, não pela vontade política, mas como resultante da luta dos grupos de cidadãos discriminados e pela necessidade de mão de obra, de entre outros fatores que a cada momento melhor serviam os interesses de quem dominava, e domina, económica, financeira e politicamente o país.

A expansão para oeste, durante o século XIX, com a continuação da ocupação violenta dos territórios dos povos originários, a guerra com o México da qual resultou a anexação do Texas, do Novo México e da Califórnia, outros territórios foram “cedidos” pelo México aos EUA, como sejam o Arizona, o Nevada, o Utah e parte do Colorado, por outro lado a compra de territórios aos franceses, a Sul a Louisiana e aos espanhóis a Florida, a Norte, o Alasca, adquirido à Rússia, delimitaram as fronteiras dos EUA. Já no século XX e após a II Guerra Mundial (1959) o Havai integrou os EUA, sendo o quinquagésimo estado da federação. Existem ainda outras situações dúbias como seja o caso do Porto Rico, que tem um estatuto de “estado associado”.

A expansão territorial, a agricultura, a infraestruturação, o crescimento da indústria transformadora, a construção da rede de transportes e a incontornável “corrida ao ouro” que caraterizaram o século XIX estado-unidense abriu as portas a emigrantes provenientes da Europa e da Ásia, mas também da américa latina (teve o seu início já no final do século), contudo a Lei de 1790 manteve-se em vigor e, em 1798 foram aprovados os “Alien and Sedition Acts”. Estas quatro leis estavam ligadas às questões de segurança nacional e foram aprovadas pelo 5º Congresso dos EUA em 1798 e, promulgadas pelo presidente John Adams, num contexto internacional de conflito aberto com a França. As quatro leis restringiam os direitos e ações dos imigrantes dos EUA e limitavam a liberdade de expressão da Primeira Emenda e a liberdade de imprensa, davam amplos poderes de deportação ao governo e obrigavam ao registo de dados pessoais dos emigrantes. Apesar de um quadro legal restritivo, durante o século XIX, isso não evitou a entrada de milhões de emigrantes no território dos EUA.

O quadro legal para a imigração nos EUA tem, desde sempre, associado um espírito seletivo, desde logo, na primeira lei (1790), e que se foi alterando ao sabor dos interesses e necessidades políticas e económicas. Satisfeitas as necessidades as leis de imigração foram fechando as portas a alguns povos, por exemplo, logo após a conclusão da linha ferroviária transcontinental (1869), na qual os trabalhadores chineses tiveram um papel preponderante, S. Francisco dedica-lhes anualmente um dia (10 de maio) de homenagem, foi aprovada a Lei de Exclusão Chinesa (1882) que proibiu a entrada de imigrantes provenientes da China. Lei que vigorou durante várias décadas. A regulação seletiva dos fluxos migratórios, como referi no texto anterior, também afetou os povos do Sul e Leste da Europa com a introdução de um sistema de quotas, Lei da Imigração de 1921 e, mais tarde e mais restritiva, a Lei Johnson-Reed de 1924.

As políticas de imigração estado-unidenses são, também, marcadas por iniciativas legislativas que excecionam as leis em vigor, como é o caso do “Azorean Refugee Act of 1958”, também referido na publicação anterior, que procuram responder a questões humanitárias ou, em nome delas conformar percursos migratórios e intervir politicamente nos assuntos internos de outros estados. Em 1956 na sequência da Revolução ou Contrarrevolução Húngara (23 de outubro a 10 de novembro), conforme se queira, pois, as revoluções coloridas não são um fenómeno recente, os EUA aprovaram o “Hungarian Relief Act of 1956” que facilitou a entrada de cidadãos húngaros e possibilitou que os estudantes originários daquele país pudessem aceder a bolsas de estudo e assistência financeira. Um outro exemplo é o “Cuban Adjustment Act of 1966” que privilegia os cubanos, pode mesmo dizer-se que nenhum outro imigrante nos EUA tem os privilégios dos cidadãos cubanos. Ao chegar são considerados refugiados e ao fim de um curto prazo de permanência podem ascender à naturalização, de entre outros benefícios vedados aos imigrantes de distintas nacionalidades. Sobre o “privilégio cubano” nos EUA remeto para um estudo académico “Cuban Privilege: The Making of Immigrant Inequality in America”, da socióloga, estado-unidense, Susan Eckstein.  Estas são, apenas, algumas referências sobre a política de imigração dos EUA, mas suficientes para se compreender a atualidade migratória naquele país construído numa “terra roubada” aos povos originários e onde ninguém devia ser “ilegal”.

Ponta Delgada, 13 de junho de 2023

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 14 de junho de 2023

Sem comentários: