terça-feira, 2 de abril de 2024

Ermitérios

imagem retirada da internet - farol Gonçalo Velho

Os faróis são lugares místicos com uma função bem terrena: sinalizar os caminhos do mar.

Os faróis convocam a imaginação e atraem-nos às mais altas falésias e alcantilados promontórios. São lugares invulgarmente sublimes, lugares de contemplação do mar imenso, lugares onde se chega pelos trilhos da beira terra, em direção à beira-mar, ou pelos atalhos do mar até uma pequena e arredada ilha onde se ergue, grandioso e robusto, um farol. 


Os faróis seduzem, deixamo-nos seduzir, e vamos. Vamos olhar o mar até à linha do horizonte, lá onde moram todas as utopias, vamos ver as aves marinhas no seu voejar planado, vamos observar as formas arquitetónicas e a sua capacidade de resistência às intempéries que, não poucas vezes, se abatem sobre aqueles belos, mas inóspitos lugares.

Se o sítio for visitável e o faroleiro um bom anfitrião não resistimos a entrar e a subir as íngremes e acanhadas escadas que nos levam ao topo onde a função do farol se cumpre.

A singularidade da arquitetura adaptada ao propósito, a beleza e a quietude da geografia onde se situam as luminárias que alumiam os caminhos do mar, constituem-se como os principais elementos que nos despertam interesse e atração, mas outras, subjetivas e indefinidas, razões, e talvez por isso, por serem do domínio do imaginário, sejam tão, ou mais, importantes no fascínio que os faróis e outros lugares de solidão exercem sobre nós. 

O magnetismo que emana dos faróis, dos moinhos, dos mosteiros e conventos, das ilhas desertas, cativa-nos e atrai-nos, e, tem sido objeto de variadas narrativas literárias, algumas adaptadas ao cinema, ou mesmo escritas com o propósito de argumentos para produções cinematográficas.

foto de Madalena Pires
Os ermitérios são uma inesgotável fonte para a criação de mitos e estórias sobre o isolamento, a solidão, o desterro, a loucura, o erotismo, o assombramento, ou mesmo de crimes macabros e irresolúveis.

O imaginário popular é fértil na criação de estórias e mitos sobre os lugares ermos, ou não o sendo se encontrem circunscritos por altos muros, mitos e reclusão forçada, ou não, aos quais se associam personagens com caraterísticas invulgares. Variam os lugares e os personagens consoante a função da estrutura edificada, ou mesmo, na inexistência dela, se o eremita se acomoda numa cavidade natural. O que não se altera é a narrativa fantasmagórica transmitida na tradição oral sobre esta gente e estes lugares. 

Quando criança, nas noites de inverno, ouvi muitas estórias, de lugares e pessoas, verdadeiramente assustadoras para as quais, só muito mais tarde, encontrei algumas explicações que justificavam os “fenómenos” e os comportamentos excêntricos de alguns cidadãos que viviam, por opção, por necessidade, pela fé, ou por razões de ordem profissional, afastados das comunidades que lhes estavam na proximidade.

As estórias fantasmagóricas que ouvi na minha infância sobre lugares ermos e sobre eremitas fizeram e continuam a fazer parte do meu imaginário, atualmente sem os temores que sobre mim exerceram na infância e retardavam a chegada do sono pois, qualquer ruído, das antigas casas da aldeia onde costumava passar algumas temporadas, para o qual se não encontrasse, de imediato, uma explicação plausível era relacionado com as estórias ouvidas ao serão e a sonolência transformava-se em vigília até que o sono se voltasse a instalar.

O passar do tempo e o conhecimento que vem com ele afastou os pavores, mas ficou a atração pelos ermitérios e pelos eremitas, quer estes o sejam por opção, ou por necessidade de ordem profissional. Este fascínio não será tanto pelo facto de se estar só, e entenda-se estar só não é necessariamente sinónimo de solidão, mergulhados em profunda solidão podemos estar rodeados da turba e a viver no centro de uma grande urbe. 

foto de Aníbal C. Pires

Se o isolamento, por ser inusual, desperta interesse em muitos de nós que consideramos esse comportamento fora dos padrões comportamentais e por vezes chegam a merecer a atenção da academia e a elevação à condição de objeto de estudo. Mas são os lugares, pela sua localização, pela sua arquitetura e pela função que me fascinam nos ermitérios, sejam eles lugares ermos, nas periferias, ou mesmo dentro da malha urbana de grandes cidades. Espaços fechados aos olhos do mundo e onde se enclausuram voluntariamente cidadãos que se afastam do mundo e dos seus concidadãos, não será como ir para uma ilha deserta, mas, nos tempos que correm, ir para uma ilha deserta não é, digamos, uma opção ao alcance de todos e quem pode, por norma, faz-se acompanhar não está nunca sozinho, conquanto possa carregar o peso da solidão.

Os moinhos de vento situam-se em colunas verdejantes, os moinhos de água, ou azenhas, junto dos cursos de água, os mosteiros e conventos podem até não se localizar em lugares ermos, mas a sua localização e arquitetura deslumbram. Os lugares naturais ou urbanos onde se edificam estruturas para acolher quem, por vontade própria ou pelo exercício de uma atividade profissional, está em isolamento, mesmo que acompanhado, encantam-me.

Outros ermitérios, como as prisões, por mais belos e singulares que sejam os lugares onde estão implantados provocam outros sentimentos, o interesse histórico e literário.

A prisão de Alcatraz, a ilha de Santa Helena, a ilha do Diabo, Robben Island, são conhecidas como temíveis prisões e territórios e sobre elas existem inúmeras narrativas ficcionadas com fundamento em acontecimentos reais, mas também estórias bem reais como seja o longo encarceramento de Nelson Mandela (Robben Island). 

Sobre as prisões e as inevitáveis fugas e tentativas de fuga existam estórias reais que pelos seus contornos não necessitam, sequer, de ser ficcionadas e romantizadas.

Menos conhecidas e fora do foco de escritores e cineastas são algumas das prisões do fascismo português por onde passaram milhares de homens e mulheres que lutaram pela democracia e pela liberdade para Portugal. O Tarrafal, o Aljube, Caxias, Peniche, e o Forte de S. João Baptista são, de entre outros, nomes que nos são familiares, embora nem sempre se conheça a história destes lugares de isolamento, tortura e morte. 

o Chrysler utilizado na fuga de Caxias
 Museu do Caramulo

A fuga solitária de Dias Lourenço da prisão de Peniche, a 17 de dezembro de 1954, a fuga preparada e concretizada, a 4 de dezembro de 1961 por um grupo de militantes do PCP, na qual António Tereso foi um elemento fundamental pois o carro utilizado para sair da prisão era de Salazar e, o Tereso teve de conquistar a confiança dos guardas e do Diretor da prisão, passando por traidor (rachado) junto dos seus camaradas, mas também a fuga de Peniche, de Álvaro Cunhal, a 3 de janeiro de 1960,  em conjunto com Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Francisco Miguel, Francisco Martins Rodrigues, Guilherme Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro Soares e Rogério Carvalho além de um soldado da GNR. Muitas outras fugas das prisões do fascismo aconteceram e todas elas revelam audácia e coragem.

As prisões do fascismo não se esgotam nas referências já feitas a algumas delas, mas para percebermos que a dimensão do aparelho repressivo do fascismo português não se resume apenas às cadeias a que aludi outras, menos divulgadas, existiram nos territórios colonizados, apara além de Cabo Verde, já mencionado na referência ao Tarrafal, Guiné, Angola, Moçambique e Timor tiveram os seus funestos presídios. Estas cadeias eram em tudo semelhante ao Campo de Concentração do Tarrafal. A diferença, segundo o Dr. Luís Farinha, antigo diretor do Museu do Aljube é que: “os seus «habitantes» forçados não tiveram ninguém que lhes guardasse a memória.”

No ano em que se comemoram os 50 anos de Abril é nossa obrigação trazer para o presente as memórias de um passado obscuro, ditatorial e repressivo que alguns louvam e gostariam de ressuscitar, mas também se constitui uma obrigação afirmar os valores da liberdade e da democracia pela qual se lutou e luta.  

Ponta Delgada, 2 de abril de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 5 de abril de 2024

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