quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Dos ciclos

Foto de Aníbal C. Pires
Sem querer retirar importância e simbolismo a janeiro, sempre direi que setembro é o mês de todos os princípios. A noite de 31 de dezembro para 1 de janeiro é um dia de festa e de renovação da esperança, sem dúvida, mas é em setembro, por estas latitudes, que se anuncia um novo ciclo na vida das comunidades. 

O fim do Verão avizinha-se, na berma das estradas começam a despontar “as meninas para a escola”, as crianças e jovens, as famílias, os professores e escolas retomam as rotinas letivas. Com o início do ano escolar retomam-se os hábitos das famílias e das comunidades, criam-se novas expetativas, fazem-se descobertas, é tempo de regressos, de encontros e reencontros, ou melhor dizendo a vida retoma a sua normalidade, tudo volta a começar, e ainda que ao fim do dia se continue a ir às zonas balneares, ou conversar numa das esplanadas onde é possível fazê-lo sem outro ruído que não seja o murmúrio do mar, da brisa suave a enlaçar-se nas folhas das árvores e das palavras soltas, é o prenúncio do fim da estação quente, este ano, por sinal, a fazer jus à denominação.

Sou professor aposentado e não tenho filhos em idade escolar, o que significa que setembro já não tem o mesmo impacto que teve ao longo de dezenas de anos da minha vida, enquanto aluno e depois numa longa carreira profissional, contudo, as alterações que por esta altura ocorrem continuam a influenciar as minhas rotinas, desde logo por me manter ligado ao meu sindicato e acompanhar a sua atividade, mas também pelos motivos já referidos, isto é, as alterações nas rotinas da comunidade onde estou inserido, pouco ou muito, influenciam o meu dia-a-dia.

foto de Aníbal C. Pires

A vida não se circunscreve apenas à atividade escolar, contudo, o regresso às aulas, nos diferentes níveis de ensino, e o decurso do ano letivo marca a agenda da vida das comunidades pois, os diretamente envolvidos no processo representam uma parte significativa das sociedades e, não é só, pois, as dinâmicas criadas com o retomar das aulas induz alterações que influenciam as rotinas de todos nós, por outro lado, a importância que a educação tem na divulgação do conhecimento, da cultura e na formação de cidadãos que se querem pensantes e capazes de fazer escolhas esclarecidas não nos deixa indiferentes pois, no fundo é da preparação do futuro coletivo que falamos.

Tenho opinião, mas hoje não vou dissertar sobre educação e a organização do ano escolar, deixo esse espaço que cabe, em primeira instância, às escolas, às organizações sindicais e à administração educativa regional. Durante esta semana iremos, por certo, ouvir e ler o que sobre o assunto houver para dizer, conquanto a falta de docentes habilitados profissionalmente se esteja, de novo, a verificar, o que não deixa de ser preocupante e, por certo, fará algumas manchetes na comunicação social. Não espero, sobre o assunto, análises holísticas, mas será, no mínimo, exigível que sejam enunciadas a desvalorização social e profissional da carreira, como por exemplo as alterações ao estatuto da carreira docente e a criação de um anacrónico modelo de avaliação do desempenho docente, protagonizada pela ministra Maria de Lurdes Rodrigues e pelo primeiro-ministro José Sócrates, como sendo determinantes para a situação que atualmente se verifica.

Um professor não ensina tudo, mas ensina quase, quase … tudo!” Esta é a frase de capa da agenda do professor, para 2024-2025, produzida pela organização sindical a que estou, desde sempre, associado e que como vem sendo habitual, foi distribuída no final do mês de agosto, a todos os educadores e professores sindicalizados na organização de classe que os representa.

A frase foi bem conseguida e reforça a importância da função docente, mas é também um grito de revolta pela atribuição de responsabilidades aos educadores e professores que não são, nem podem ser suas. “Um professor não ensina tudo…”; então quem ensina o que não é ensinado pelos docentes!? Se é verdade que aos docentes lhes está atribuída a responsabilidade pelas aprendizagens escolares, pela promoção da cultura e a importância do saber e saber fazer, mas, não será menos verdade que a educação é um encargo coletivo. Incumbência em que a família e a Escola devem assumir o principal protagonismo e as organizações que promovem a iniciação ao desporto, às artes e outras atividades, educativas ou lúdicas, devem complementar, ou seja, a responsabilidade social pelas crianças e jovens é (deve ser) da comunidade e, como tal, não se pode limitar apenas à Escola. 

A família é insubstituível na formação e educação das crianças e jovens, a Escola reforça, complementa e abre os horizontes ao conhecimento, mas não se pode substituir à família, a família também não deve, nem pode, substituir-se à Escola. Quando isto se verifica a autoridade, quer da Escola, quer da família, são postas em causa pelos destinatários (os alunos) de onde resulta, obviamente, prejuízo para as crianças e jovens, mas também pode gerar um clima de animosidade e conflitualidade que não beneficia nenhum dos intervenientes e pode prejudicar gravemente, como já referi, os alunos.

O mês de setembro pode também ser o fim de um ou mais ciclos e isso confere-lhe atributos que o distinguem de outros meses do calendário gregoriano, como por exemplo as vindimas que culminam o ciclo de maturação das uvas, mas também a colheita de outros frutos que marcam o fim do Verão e o princípio do Outono. E, como sabemos, a fruta da época é mais nutritiva e saborosa, para além do seu consumo ser um importante apoio à produção local (regional ou nacional). O fim de um ciclo, passado o tempo de pousio, tal como o são as férias escolares, dá início de outro período em que tudo se vai repetindo para nosso contentamento e sobrevivência.

foto de Aníbal C. Pires
E
stes ciclos não acontecem por acaso. A posição da Terra em relação ao Sol determina-os, em setembro acontece o equinócio de Outono, este ano acontece a 22. É o fim do Verão e esse dia terá a mesma duração da noite. Durante o Outono a luz solar vai diminuindo à razão de 4 minutos por dia, até à noite mais longa que acontece no solstício de Inverno, a 21 de dezembro. 

Os solstícios e os equinócios marcam o início de novos ciclos naturais que se repetem a cada ano e que desde a antiguidade foram sendo objeto de estudo, mas também de festividades pagãs que foram objeto de apropriação pela “cultura” dominante, todavia nem sempre foi bem-sucedida e subsistem manifestações de raiz popular que mantém algumas caraterísticas das antigas festividades. “Há sempre alguém que resiste/Há sempre alguém que diz não”, como diz a canção “Trova ao vento que passa”, popularizada por Adriano Correia de Oliveira. 

Este texto, se é que conseguiu acabar, é algo incaraterístico e, quiçá, desorganizado. Não discordo se for essa a avaliação que o leitor faça. O Verão tem destas coisas, nos meios jornalísticos dizem que é a estação ridícula (tradução livre de silly season). Espero que a serenidade do Outono e o início de um novo ciclo me traga mais discernimento e acutilância, assim as temperaturas baixem e a humidade relativa do ar se mantenha a níveis aceitáveis.


Ponta Delgada, 3 de setembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 6 de setembro de 2024

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