quarta-feira, 13 de novembro de 2024

a terra é plana, a vida é eterna e são felizes.

imagem retirada da internet
O mundo é um lugar pouco aconselhável para viver. Nunca terá sido, mas, ainda assim, já foi um pouco melhor, ou então era eu, do alto da minha ingenuidade, que assim o considerava. 

Já não sou um crédulo, conquanto a momentos possa parecer que não deixei de o ser. Pode o leitor pensar, com o pouco já dito, que vá encaminhar este texto para uma análise aos resultados das eleições nos Estados Unidos, mas não. Podem estar tranquilos não vou por aí, nem considero que o mundo tenha ficado pior do que já estava por ter havido alterações, se é que houve, nas cadeiras do poder estado-unidense. Não me sinto órfão nem rasguei as vestes pois, o resultado não me surpreendeu, a não ser pela dimensão da vitória “republicana”, nem há razões para crer que os Estados Unidos alterem, por vontade própria, a sua política externa a não ser que os problemas internos ou a construção, em curso, de um mundo multipolar e, por conseguinte, as razões de ordem económica assim obriguem a administração estado-unidense a arrepiar caminho. 

Estamos mal e assim vamos continuar, não só, mas também, pelos Estados Unidos. A subserviência da União Europeia à vontade hegemónica de um parceiro que não tem amigos, só interesses, é bem mais preocupante que a ascensão de um “republicano”, em alternância a um “democrata”, na presidência da administração estado-unidense.

foto de Madalena Pires
Pode também parecer, pelo que já foi dito, que deixei cair os braços e abandonei a defesa de transformações que possam edificar um mundo diferente, um mundo onde se possa viver melhor e a humanidade seja, apenas isso, humana. Só aparenta, pois, continuo a alimentar os meus dias com essa utopia.

As narrativas hollywoodescas deixaram, faz muito tempo, de me comover e há muito que super-heróis e vilões não me entusiasmam. Não sei se isso foi bom ou mau, mas sei que depois dessa epifania me sinto muito melhor, aliás foi um pouco como quando concluí que as prendas de Natal não eram deixadas pelo Menino Jesus ou o Pai Natal, conforme as geografias, o contexto social e os costumes de época. Houve alguma deceção, não pela autodescoberta, mas por sentir que me tinham enganado, ainda que as razões pudessem ser as mais nobres o que não é o caso das narrativas do mainstream de onde a ética e a opinião alternativa estão ausentes. 

Há muito que, para não ser surpreendido, tenho o cuidado quando olho ao meu redor de ver com o meu olhar e questionar o que exibem e, quando me dizem: a realidade é esta; vou verificar as diferentes fontes o que convenhamos, num mundo de artifícios digitais e outros que tais, é aconselhável fazer para não cairmos no ridículo de papaguearmos verdades construídas e, como tal, representações distorcidas da realidade. Não fica bem a quem devia estar informado, é intelectualmente desonesto e é dececionante ver algumas personalidades a regurgitar narrativas que já foram objeto de desconstrução por entidades independentes, como por exemplo os acontecimentos de 7 de outubro de 2023 na Palestina ocupada. As investigações forenses e documentais, realizadas por organizações independentes, contrariam tudo aquilo que serviu para intoxicar a opinião pública mundial, com particular ênfase no ocidente, mas que acabou por não fazer vencimento pois, as manifestações populares nas cidades europeias e estado-unidenses que mobilizam milhões de cidadãos em defesa da causa palestiniana e contra o estado sionista de ocupação, assim o confirmam.

Nakba (1948)
Não falta por aí quem continue a acreditar no Pai Natal e nas construções mediáticas das corporações dominadas pela Black Rock e pela Vanguard, depois quando confrontados com a realidade procuram as justificações mais espúrias para que os seus egos não fiquem indelevelmente feridos, os seus desejos não se transformem em desilusões e a fé numa qualquer patologia, ou então continuam a acreditar que a terra é plana, que a vida é eterna e, assim, são felizes.

Ao longo deste texto tenho vindo a conjeturar, ainda que superficialmente, sobre algumas realidades, mitos e poderes que pelo domínio que exercem na opinião pública, particularmente no chamado mundo ocidental, aparentam ser imutáveis, eu diria que também o poder absoluto dos monarcas parecia firme como uma rocha, e desmoronou-se. Também o fim do capitalismo, do neocolonialismo, dos fascismos e da unipolaridade parece uma impossibilidade, mas no que a mim diz respeito gosto de pensar, reconforta-me diria, que a humanidade, em devido tempo, lhe colocará um ponto final.

Não sendo tudo e estando longe do que seria desejável há alguns sinais de que as velhas estruturas que dão sustentáculo a este sistema anacrónico estão a sofrer alguns abalos. Não é a primeira vez que me socorro de alguns dos países do Sahel (Mali, Burkina Fasso e Níger) como exemplo, recente, de libertação do neocolonialismo francês, movimento que se tende a alastrar a alguns dos países da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, como seja o caso do Senegal. Mas se estes são importantes sinais, não menos relevante é a associação dos países das economias emergentes e do Sul global que se estão a agregar no bloco dos BRICS e a criar um sistema financeiro autónomo, mormente, o sistema de pagamento alternativo ao SWIFT e o pagamento de transações comerciais nas moedas nacionais, abandonando o dólar estado-unidense como moeda de referência mundial. 

Como é fácil de concluir a desdolarização já está em curso e mais do que uma opção dos BRICS ela decorre da necessidade de encontrar uma solução para ultrapassar os efeitos das sanções ocidentais a alguns países desta organização. 

Este novo modelo é resultante da visão multipolar do mundo e só nessa medida se coloca como uma ameaça aos Estados Unidos e aos seus apêndices autodenominados “comunidade internacional”. Se esta é a solução para o fim do capitalismo, não será, mas não me restam muitas dúvidas que é o caminho para por um ponto final no colonialismo, no neocolonialismo e, por conseguinte, na sobranceria dos Estados Unidos e dos serventuários dirigentes da União Europeia (o jardim de Borrel) em relação ao chamado Sul global (a selva de Borrel).


Os efeitos desta nova arrumação geopolítica e económica já se fazem sentir nas economias da União Europeia, em particular na Alemanha, mas não são ainda suficientes para que o discernimento ilumine as decisões políticas e seja assumido que novos tempos estão a chegar, tempo de respeitar as soberanias nacionais, tempo de privilegiar a cooperação entre os povos e tempo de abandonar a sobranceria eurocêntrica a atlantista. Dito assim pode parecer caótico para o jardim de Borrel, mas não tem de o ser. Só será conturbado se as instâncias políticas da União Europeia continuarem a vergar a coluna vertebral aos donos do mundo e, quando estes últimos deixarem de necessitar de um parceiro que mais não tem feito que o papel de idiota útil.

Ponta Delgada, 12 de novembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 13 de novembro de 2024

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