quarta-feira, 27 de novembro de 2024

... quase feliz

autorretrato 
É bem possível que à hora a que folheia este jornal eu esteja a apresentar, na EBI da Maia, o livro “O Silêncio da Paixão”, uma novela póstuma de Helena Chrystello, editada, este ano, pela Letras Lavadas. E é sobre este livro, escrito na década de 70 e que foi guardado numa gaveta até à morte da autora, em janeiro deste ano. Não conheço os motivos da decisão da autora, sei, isso sim, que o seu companheiro, o Chrys Chrystello, sabia da existência de alguns escritos da Helena, mas ela nunca lhe permitiu o acesso, aliás como ele próprio refere na nota editorial que precede a novela, mas, como dizia, é sobre este livro que vou partilhar alguns apontamentos que fui preparando para o texto da apresentação formal. 

“O Silêncio da Paixão” foi concluído a 4 de fevereiro de 1976, ou seja, a Helena ainda não tinha concluído o seu 21.º aniversário natalício. Refiro este facto pois, quando lerem esta novela vão mergulhar numa narrativa densa e estruturada, diria mesmo que esta novela é literariamente adulta e, sendo a autora uma jovem mulher, esta contextualização, não é de somenos valor, e, a relevância que lhe estou a dar pretende acrescentar mérito à obra pois, a construção literária revela uma maturidade e até erudição que, nem sempre, os jovens escritores possuem.

Os livros são, antes e depois de tudo, obras literárias, mas são-no também obras gráficas. A encadernação, o papel utilizado e os grafismos da capa valorizam a obra no seu conjunto. Assim, e antes de tecer algumas considerações, necessariamente breves, sobre a novela referencio alguns elementos da capa que, salvo melhor e douta opinião, é uma brilhante síntese da estória que nos é contada. 

foto de Aníbal C. Pires
A tonalidade vermelha, como sabemos, capta de imediato a atenção, não é por acaso que alguns sinais de trânsito utilizam esta cor, e induz sentimentos fortes como sejam: paixão, amor, energia ou perigo. O olhar distante da mulher retratada, a própria autora, pode ser entendido como de contemplação e introspeção, mas também de tristeza, perda e pode indiciar um estado emocional complexo. Por fim a escolha do título da obra: “O Silêncio da Paixão”.  Silêncio e paixão cruzam-se e entrecruzam-se na trama urdida pela Helena para nos conduzir pela recordações e arrebatamentos de uma mulher que se afastou do mundo, no qual viveu intensamente, e se abriga numa casa à beira-mar, em Joinville, na península de Contentin, no norte de França.

A novela “O Silêncio da Paixão” não é um relato linear, ou seja, a narrativa é densa e intrincada, desde logo, pelas personagens, pela omnipresença do mar, pelo tempo atmosférico, pela música e as cidades, onde Clara, foi quase feliz. 

As leituras desta obra podem ser diversas o que nem sempre agrada a quem lê maquinalmente, mas deixar espaço para os leitores conjeturarem sobre o capítulo seguinte ou o desfecho da estória e, ainda assim, conseguir que a leitura seja apelativa e a vontade de voltar a página permaneça até às últimas palavras, não é de fácil concretização, mas enquanto leitor agrada-me que estes sejam alguns dos atributos desta invulgar peça literária. E é disso que falo quando me refiro a esta novela póstuma, falo da qualidade literária de “O Silêncio da Paixão”, da erudição e maturidade que a Helena Chrystello cedo deixou transparecer e que não mais voltou a demonstrar.

A estória que nos é narrada tem como personagem central Clara Viel, aclamada cantora lírica que se afastou dos palcos e se refugiou, com já referi, numa casa à beira-mar. O jovem Gilles testemunha as suas quimeras, acompanha e ama esta mulher a quem já apareceram uns fios de cabelo branco. Clara não se consegue libertar de antigas paixões que se perpetuam e a fazem sofrer, nem atende a outros amores, seja Gilles o jovem que também procurou abrigo em Joinville para escrever, seja alguém de um passado vivido em Praga onde, como escreve a autora: “Durante muito tempo, Clara foi dominada por esta imagem, ela que fora quase feliz em Praga, um ano antes da primavera.”   

A autora, com mestria, explora, por um lado a mutabilidade dos momentos de felicidade e, por outro a importância e o poder da memória. Ser "quase feliz" pode ser ainda mais marcante, do que ter sido plenamente feliz. Foi algo que não se concretizou e fica para sempre como um vazio. A frase situa o evento no tempo pois, a alusão à primavera não se refere à chegada da estação do ano, mas sim a um acontecimento político de 1968 e que ficou conhecido como a “Primavera de Praga”, isto é, a narrativa remete-nos para o ano de 1967.

Sobre a trama e a forma como a estória se desenrola, a ação da protagonista e das personagens que a acompanham, sejam as das memórias do passado, sejam do presente não adiantarei mais pois, julgo ser mais avisado deixar que façam a leitura deste livro sem que a minha visão possa vir a influenciar a vossa e, esta novela permite, como julgo já ter referido, várias leituras e todas elas legítimas.

imagem retirada da internet
Há, porém, dois elementos narrativos que não posso deixar de aludir pois, modelam e marcam presença, quase permanente, na construção literária desta novela: a música e o mar.

A música, quiçá pela principal personagem ter sido cantora lírica, e como nos diz Anabela Freitas na apresentação que fez desta obra, no passado mês de outubro, em Vila do Porto, durante a realização do 39.º Colóquio da Lusofonia: “Mas, obviamente que a música, muito embora já não faça parte da vida atual de Clara, por vontade própria, porque abandonou a carreira, está presente ao longo de toda a novela. Durante a leitura nunca perdemos de vista o facto de a protagonista ser cantora lírica. Falar da música torna-se óbvio e contribui para a criação de um ambiente onírico muito sugestivo. A sua presença é poderosíssima no texto.”

foto de Aníbal C. Pires
Mas também o mar acompanha toda a narrativa do tempo presente, e socorro-me novamente das palavras de Anabela Freitas para que, com clareza, se perceba a relevância do mar na construção desta estória. “É esse mar que preenche todas as horas de Clara. É dele que agora ela se alimenta. Todos os seus sentidos são bombardeados pela presença dele: a visão, o olfato, o tato, o paladar e também a audição. Pois embora a música seja uma referência constante, desde logo porque Clara era cantora lírica, essa mesma música que preencheu a sua vida, acabou por ser abandonada e substituída pelo mar, como confessa a uma amiga…”

“O Silêncio da Paixão” é uma estória de amores, desamores e solidão alicerçada na complexidade das relações humanas e das emoções que moldam as nossas vidas.

A Helena dedicou a sua vida a divulgar autores de língua portuguesa e, em particular, autores dos Açores, aqui nascidos, ou açorianos por opção própria e que a vida ilhanizou, grupo onde a Helena se pode incluir. Não sei, nem isso é importante para mim, das razões que levaram a Helena a encerrar esta novela numa gaveta e, também, não sei das razões que a fizeram parar por ali. Sei, contudo, depois de ter lido a novela “O Silêncio da Paixão”, que Helena poderia ter construído uma carreira literária ímpar.

Ponta Delgada, 26 de novembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 27 de novembro de 2024

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