quinta-feira, 16 de outubro de 2025

“Nova Guerra Fria”

do arquivo pessoal
O termo “nova Guerra Fria” circula hoje com uma inquietante naturalidade. Volta a falar-se de blocos, alianças, sanções, ameaças e cercos, como se o século XXI tivesse voltado a tropeçar nos fantasmas do XX. Mas será que vivemos, de facto, um cenário semelhante, ou apenas caminhamos para ele!?

Alguns analistas e académicos das Relações Internacionais consideram que a expressão não se adequa à realidade, pois faltariam as marcas ideológicas que caracterizaram a Guerra Fria. Argumentam que os conflitos latentes atuais se centram noutras dimensões: tecnológica, económica e geopolítica. Eu diria, mesmo não sendo especialista, que tentar despojar esta disputa de uma carga ideológica é um erro.

É certo que a dicotomia capitalismo/comunismo desapareceu, mas a Guerra Fria tinha associada uma competição pela liderança económica, pelo bem-estar social, pela tecnologia e pela influência geopolítica entre dois blocos antagónicos. A nova configuração do poder mundial não repete o passado, é a mutação de um sistema que, após o anunciado e previsível colapso da ordem unipolar estado-unidense, procura desesperadamente recompor-se.

As disputas, ainda que com formas diferentes, continuam a refletir visões distintas da ordem mundial. Trata-se, pois, de um conflito ideológico, mesmo que sem os antagonismos declarados de outrora. Alteraram-se a semântica e as formas tecnológicas do poder, mas não a sua lógica. À primeira vista, pode parecer que não existe uma “nova Guerra Fria”, que não se trata de convencer o mundo de uma ideia, mas de o controlar através de fluxos de energia, de dados, de matérias-primas raras e, naturalmente, de capital. Mas nem tudo é assim tão linear.

O eixo central deste novo confronto é a competição entre os Estados Unidos e a China, o que, por si só, põe em causa o alegado despojamento ideológico das tensões mundiais num campo de batalha que é global. Em torno desta questão gravitam outras potências emergentes e outros interesses: Índia, Rússia, Irão, Turquia, Brasil, mas também países da América Central e do Sul, de África e do Médio e Extremo Oriente, que procuram afirmar margens de autonomia na nova ordem mundial, tendo como horizonte a criação de um mundo multipolar.

imagem retirada da internet

Trata-se, pois, de uma guerra em múltiplos tabuleiros, sem linhas de frente definidas, onde o poder se exerce tanto pela diplomacia e pela tecnologia quanto pela força militar, muitas vezes através de conflitos bélicos por procuração.

A disputa pela primazia tecnológica é a face mais visível desta tensão: semicondutores, inteligência artificial, telecomunicações 5G/6G, biotecnologia, controlo das cadeias produtivas. Quem dominar a tecnologia dominará o século. O domínio económico segue a mesma lógica: sanções, tarifas, bloqueios e a lenta, mas significativa, desdolarização do comércio internacional.

Nas margens, emergem novos blocos, como os BRICS ampliados, que desafiam a supremacia ocidental e ensaiam alternativas de cooperação financeira e política, bem como modelos de desenvolvimento cooperativo.

No plano geopolítico, a Ucrânia e Taiwan surgem como símbolos dessa nova cartografia do confronto. A guerra no leste europeu transformou-se num campo de desgaste prolongado entre o Ocidente e a Rússia, enquanto o Pacífico se militariza em torno da contenção da China. A expansão da OTAN, apresentada como estratégia de segurança, alimenta o medo e o ressentimento, e a diplomacia americana, travestida de defesa da liberdade e da democracia, oculta a persistência da velha lógica imperial: o controlo das rotas, dos recursos e das consciências.

Mas o mais inquietante talvez não esteja nas frentes de guerra, e sim na guerra híbrida que atravessa o quotidiano. O controlo digital, a manipulação da informação, a vigilância algorítmica e a militarização do espaço mediático criam uma atmosfera de suspeita e conformismo. A guerra tornou-se difusa e permanente: não precisa de ser declarada para existir. A sua presença normaliza-se, infiltrando-se nas economias, nas escolas, nas redes sociais. Vivemos num mundo em que a lógica do conflito se tornou infraestrutura da política.

imagem retirada da internet

Neste contexto, a União Europeia surge como um continente hesitante, despojado de voz própria. Enredada na dependência militar e energética dos Estados Unidos, renunciou à sua autonomia estratégica e à promessa de ser um terceiro caminho entre impérios. A política externa europeia é hoje ditada por Washington, e o preço dessa submissão mede-se em recessão económica, perda de soberania e erosão moral dos valores humanitários do Ocidente.

O Presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, sintetizou de forma brilhante a decadência desses valores ao afirmar sobre o genocídio perpetrado na Palestina:

“Ali também estão sepultados o direito internacional humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo. Em Gaza, a fome é usada como arma de guerra.”

A guerra na Ucrânia revelou a fragilidade da União Europeia, incapaz de pensar fora da lógica atlantista e prisioneira de uma solidariedade que se confunde com obediência aos militaristas da OTAN e aos humores da administração estado-unidense.

Portugal, periférico e pequeno, vive nesta teia de dependências. Sem estratégia própria, segue o rebanho europeu, justificando tudo em nome da pertença ao “mundo livre”. Mas a liberdade que se invoca é cada vez mais retórica: nas decisões fundamentais, energia, segurança, política externa, o país limita-se a repetir o que vem de Bruxelas, e Bruxelas o que vem de Washington. Esquecemos que a neutralidade ativa, o diálogo e a diplomacia multilateral poderiam ser caminhos de relevância e não sinais de fraqueza. Portugal, pela sua história e posição atlântica, poderia ser ponte, e não um mero eco subserviente.

A “nova Guerra Fria” não é apenas uma disputa entre potências: é também um conflito civilizacional. De um lado, um modelo que insiste em manter a hegemonia através da força e do medo; do outro, uma tentativa ainda incerta de reorganizar o mundo de forma multipolar. O perigo é que, entre ambas as visões, o planeta se torne refém de uma competição sem ética nem limites, em que a destruição ambiental, a corrida armamentista e a manipulação tecnológica se reforçam mutuamente.

imagem retirada da internet

Embora a ideia de um mundo policêntrico e cooperante seja mais aliciante, o risco está nos dirigentes políticos que, a Ocidente, insistem em preservar velhos domínios hegemónicos e num caminho cada vez menos seguro para os seus povos, que já pagam o preço das derivas de submissão ao capital. Mas o maior risco, o mais silencioso, é o da normalização da guerra. Quando o medo se torna rotina e o inimigo uma necessidade permanente, o pensamento crítico desaparece. A comunicação social oblitera e manipula a informação, as universidades silenciam-se e a sociedade aceita as decisões como inevitabilidades. A guerra deixa de ser exceção para se tornar condição estrutural de funcionamento das economias e dos Estados, e a paz passa a ser utopia. O desafio, portanto, não é escolher um lado, mas recusar a lógica bipolar que reduz o mundo a um tabuleiro. A humanidade precisa de reencontrar a medida política do equilíbrio, o espaço da diplomacia e a coragem de imaginar outro futuro. Enquanto as potências competem pela supremacia, o planeta aquece, as desigualdades agravam-se e a esperança esvai-se entre relatórios e cimeiras.

A “nova Guerra Fria” é o espelho de uma humanidade perdida na ilusão da supremacia de uns sobre outros, em projetos de dominação ancorados na uniformização do pensamento, dos costumes e das narrativas que tentam reescrever a história. E talvez o maior perigo não esteja nas armas, mas na indiferença. Indiferença, essa forma silenciosa de consentimento que permite que tudo se repita.

 Ponta Delgada, 14 de outubro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 15 de outubro de 2025

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