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do arquivo pessoal |
Alguns analistas e académicos das Relações Internacionais consideram que a expressão não se adequa à realidade, pois faltariam as marcas ideológicas que caracterizaram a Guerra Fria. Argumentam que os conflitos latentes atuais se centram noutras dimensões: tecnológica, económica e geopolítica. Eu diria, mesmo não sendo especialista, que tentar despojar esta disputa de uma carga ideológica é um erro.
É certo que a dicotomia capitalismo/comunismo desapareceu, mas a Guerra Fria tinha associada uma competição pela liderança económica, pelo bem-estar social, pela tecnologia e pela influência geopolítica entre dois blocos antagónicos. A nova configuração do poder mundial não repete o passado, é a mutação de um sistema que, após o anunciado e previsível colapso da ordem unipolar estado-unidense, procura desesperadamente recompor-se.
As disputas, ainda que com formas diferentes, continuam a refletir visões distintas da ordem mundial. Trata-se, pois, de um conflito ideológico, mesmo que sem os antagonismos declarados de outrora. Alteraram-se a semântica e as formas tecnológicas do poder, mas não a sua lógica. À primeira vista, pode parecer que não existe uma “nova Guerra Fria”, que não se trata de convencer o mundo de uma ideia, mas de o controlar através de fluxos de energia, de dados, de matérias-primas raras e, naturalmente, de capital. Mas nem tudo é assim tão linear.
O eixo central deste novo confronto é a competição entre os Estados Unidos e a China, o que, por si só, põe em causa o alegado despojamento ideológico das tensões mundiais num campo de batalha que é global. Em torno desta questão gravitam outras potências emergentes e outros interesses: Índia, Rússia, Irão, Turquia, Brasil, mas também países da América Central e do Sul, de África e do Médio e Extremo Oriente, que procuram afirmar margens de autonomia na nova ordem mundial, tendo como horizonte a criação de um mundo multipolar.
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imagem retirada da internet |
A disputa pela primazia tecnológica é a face mais visível desta tensão: semicondutores, inteligência artificial, telecomunicações 5G/6G, biotecnologia, controlo das cadeias produtivas. Quem dominar a tecnologia dominará o século. O domínio económico segue a mesma lógica: sanções, tarifas, bloqueios e a lenta, mas significativa, desdolarização do comércio internacional.
Nas margens, emergem novos blocos, como os BRICS ampliados, que desafiam a supremacia ocidental e ensaiam alternativas de cooperação financeira e política, bem como modelos de desenvolvimento cooperativo.
No plano geopolítico, a Ucrânia e Taiwan surgem como símbolos dessa nova cartografia do confronto. A guerra no leste europeu transformou-se num campo de desgaste prolongado entre o Ocidente e a Rússia, enquanto o Pacífico se militariza em torno da contenção da China. A expansão da OTAN, apresentada como estratégia de segurança, alimenta o medo e o ressentimento, e a diplomacia americana, travestida de defesa da liberdade e da democracia, oculta a persistência da velha lógica imperial: o controlo das rotas, dos recursos e das consciências.
Mas o mais inquietante talvez não esteja nas frentes de guerra, e sim na guerra híbrida que atravessa o quotidiano. O controlo digital, a manipulação da informação, a vigilância algorítmica e a militarização do espaço mediático criam uma atmosfera de suspeita e conformismo. A guerra tornou-se difusa e permanente: não precisa de ser declarada para existir. A sua presença normaliza-se, infiltrando-se nas economias, nas escolas, nas redes sociais. Vivemos num mundo em que a lógica do conflito se tornou infraestrutura da política.
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imagem retirada da internet |
Neste contexto, a União Europeia surge como um continente hesitante, despojado de voz própria. Enredada na dependência militar e energética dos Estados Unidos, renunciou à sua autonomia estratégica e à promessa de ser um terceiro caminho entre impérios. A política externa europeia é hoje ditada por Washington, e o preço dessa submissão mede-se em recessão económica, perda de soberania e erosão moral dos valores humanitários do Ocidente.
O Presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, sintetizou de forma brilhante a decadência desses valores ao afirmar sobre o genocídio perpetrado na Palestina:
“Ali também estão sepultados o direito internacional humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo. Em Gaza, a fome é usada como arma de guerra.”
A guerra na Ucrânia revelou a fragilidade da União Europeia, incapaz de pensar fora da lógica atlantista e prisioneira de uma solidariedade que se confunde com obediência aos militaristas da OTAN e aos humores da administração estado-unidense.
Portugal, periférico e pequeno, vive nesta teia de dependências. Sem estratégia própria, segue o rebanho europeu, justificando tudo em nome da pertença ao “mundo livre”. Mas a liberdade que se invoca é cada vez mais retórica: nas decisões fundamentais, energia, segurança, política externa, o país limita-se a repetir o que vem de Bruxelas, e Bruxelas o que vem de Washington. Esquecemos que a neutralidade ativa, o diálogo e a diplomacia multilateral poderiam ser caminhos de relevância e não sinais de fraqueza. Portugal, pela sua história e posição atlântica, poderia ser ponte, e não um mero eco subserviente.
A “nova Guerra Fria” não é apenas uma disputa entre potências: é também um conflito civilizacional. De um lado, um modelo que insiste em manter a hegemonia através da força e do medo; do outro, uma tentativa ainda incerta de reorganizar o mundo de forma multipolar. O perigo é que, entre ambas as visões, o planeta se torne refém de uma competição sem ética nem limites, em que a destruição ambiental, a corrida armamentista e a manipulação tecnológica se reforçam mutuamente.
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imagem retirada da internet |
A “nova Guerra Fria” é o espelho de uma humanidade perdida na ilusão da supremacia de uns sobre outros, em projetos de dominação ancorados na uniformização do pensamento, dos costumes e das narrativas que tentam reescrever a história. E talvez o maior perigo não esteja nas armas, mas na indiferença. Indiferença, essa forma silenciosa de consentimento que permite que tudo se repita.
Ponta Delgada, 14 de outubro de 2025
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