sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

poesia da escarpa aprumada e da fajã de encantamentos. poesia do mundo.





Apresentação do livro

Vivências, Aníbal Raposo, Letras Lavadas, 2022“

Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, 3 de fevereiro de 2023, 18h Açores

 




Se escassa for a água o barco voa.

Aníbal Raposo, In Vivências, Letras Lavadas, 2022

Quando o Aníbal, a quem agradeço a confiança em mim depositada, me convidou para apresentar o seu livro “Vivências”, convite ao qual anuí sem reservas, fui invadido por sensações contraditórias. Por um lado, a inquietude que tamanha responsabilidade implica, por outro a surpresa do convite, afinal em comum partilhamos o primeiro nome e pouco mais. É certo que sempre acompanhei, à distância, o trabalho criativo do Aníbal, mas nunca com ele privei. Alguns encontros fugazes onde houve sempre lugar à troca de palavras que versavam sobre o lugar e o evento, mas pouco mais que isso. Sempre admirei e respeitei o cidadão e o artista, mas é a primeira vez que o digo publicamente. Da sua obra conhecia alguns poemas, algumas canções e, mais recentemente, alguns trabalhos pictóricos que tive oportunidade de apreciar numa exposição que teve lugar num espaço de animação noturna de Ponta Delgada, mas também de cultura, e onde aconteceu uma dessas breves conversas, nesse dia, naturalmente, sobre as incursões do poeta e músico nas artes de combinar as cores e as formas diluindo-as ao sabor dos seus amores e inquietações.

Ao receber o livro que hoje publicamente se apresenta regressou a minha inquietação. O que dizer, sobre o Aníbal e o livro, se está tudo dito. O excelente prefácio da Paula Sousa Lima diz-nos da estrutura do livro e da lírica dos seus versos, ou seja, apresenta-o. A badana informa o leitor do essencial sobre o autor. Que fazer!? Talvez ler alguns dos seus poemas. Também não. A Eleonora e o Sidónio têm essa tarefa a seu cargo e, o autor em parceria com o “Maninho” vão cantar algumas das poesias que foram musicados.

Ao mergulhar na leitura dos poemas do Aníbal Raposo foi regressando alguma tranquilidade ao meu espírito. A cada poema uma descoberta, a cada estrofe um homem novo, a cada verso a rebeldia do poeta.

E aqui estou, na vossa agradável companhia, para tentar acrescentar algumas palavras ao muito que outros e o próprio autor já disseram sobre “Vivências”. Palavras que não têm a pretensão de se constituir como uma recensão e, muito menos como uma análise de índole literária, são apenas palavras que resultam da minha opinião de leitor. Palavras cujo propósito é contribuir para divulgar o livro, mas também despertar um justo interesse pelo seu autor e a sua obra.

sobre o autor

imagem retirada da internet

Procuramos planícies de entendimento,

Encontramos muralhas de distância. (…) 

Aníbal Raposo, In Vivências, Letras Lavadas, 2022

 Aníbal Raposo é, antes de mais, um cidadão que não abdica da verticalidade que a coluna vertebral confere a alguns humanos. Não será por acaso que nos seus versos encontramos bastas vezes as palavras: prumo; aprumado; ereto. Como, por exemplo neste verso:

“(…) que se ergue aprumado, forte (…)

O seu modo de estar na vida, a sua verticalidade, não o impedem de olhar e ver o que brota do chão, o voo dos milhafres a riscar o céu, ou os horizontes utópicos que desenha para os lugares e as gentes que ama.

O autor é um espírito irrequieto, a sua precoce intervenção artística confirma esta apreciação. Na sua juventude integrou o orfeão da sua escola (Antero de Quental), bem assim como o coro da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, para o qual compôs alguns temas, ao tempo, inovadores. A sua vida académica está, também, marcada por uma intensa atividade artística ligada ao Teatro Universitário do Porto (TUP) e ao seu coro, do qual foi cofundador.

O desassossego do Aníbal Raposo não se quedou pela juventude e pela entrada na idade adulta. A sua atividade criativa na poesia e na música prolongou-se, para nosso contentamento, ao longo da sua vida que lhe desejo longa e profícua, seja na música, seja na poesia, seja noutros territórios de intervenção artística, de que a capa do livro “Vivências” é, apenas, um exemplo das suas obras pictóricas.

 “(…) sou um barco singular/amo a tempestade.”, diz o autor num dos seus poemas. E é desta singularidade e deste amor que tem nascido a sua vasta obra. Compositor, poeta, cantor, ou se preferirem cantautor, mas também artista plástico.

Aníbal Raposo é um criador cultural multifacetado, reconhecido pela generalidade do público e agraciado pelos órgãos de governo próprio da Região Autónoma dos Açores.

 

sobre a sua obra

(…)  Ai, quem me dera ser garça
E voar no canal (…) 

Aníbal Raposo, In Vivências, Letras Lavadas, 2022

A produção artística de Aníbal Raposo é vasta, como já referi, e merecida de maior divulgação. A edição deste livro vem, para além do seu valor intrínseco, contribuir para a difusão da vida e obra do autor e, por consequência, potenciar a conquista de outros públicos para a música e a poesia do obreiro de “Vivências”.

A minha geração conhece bem o papel que o Aníbal Raposo, sozinho, ou acompanhado, teve na recriação do cancioneiro popular açoriano. Quem não se lembra do “Tema para Margarida”, letra e música do Aníbal e popularizado, na voz de Piedade Rego Costa, na série “Mau Tempo no Canal” adaptado para televisão, por Zeca Medeiros, a partir do romance homónimo de Vitorino Nemésio. Mas este tema, de que gosto muito, mesmo muito, foi também utilizado na banda sonora do filme “A Antropóloga”, do realizador brasileiro de Santa Catarina, Zeca Pires. A voz foi, neste caso, de Helena Margarida Silva Lavouras. Este filme teve o apoio institucional da Casa dos Açores de Santa Catarina, possivelmente sustentado nos fundos da Direção Regional das Comunidades, ou seja do Governo Regional. “A Antropóloga” nunca passou nos Açores, embora toda a estória se desenrole num dos redutos açorianos, a Costa da Lagoa, Lagoa da Conceição, na ilha de Santa Catarina. O filme, para quem estiver interessado, está disponível no Youtube.

Este foi assim como um aparte. Pelo meu apego ao poema e à música, mas também para que se fique com uma ideia mais precisa e aprofundada da dimensão da obra do autor que hoje aqui partilha connosco o seu livro de poesia “Vivências”.

Mesmo considerando não haver necessidade pois, a sala está recheada de amigos e admiradores do Aníbal Raposo, e a badana do livro contém essa informação, ainda assim, deixo algumas referências à sua obra discográfica e poética.

O autor está representado em várias antologias de poesia contemporânea, e editou, em 2009, o livro de poemas “Voos da Minha Fajã.”

Colaborou em várias produções televisivas, tem participação em inúmeros trabalhos discográficos e regista seis discos editados.

Maré Cheia, 1999; A palavra e o canto, 2006; Rocha da Relva, 2013; Mar de Capelo, 2017; Falas & Afetos, 2021; e, Luz do Tempo, 2022.

A obra do autor não se esgotam nestes registos. O contributo do Aníbal Raposo para as artes em que se expressa conferem-lhe uma dimensão de referência na cultura açoriana.


o livro e os poemas

(…) O palco onde me revelo

O covil onde me encubro. 

Aníbal Raposo, In Vivências, Letras Lavadas, 2022

 Ler os poemas reunidos neste livro foi uma descoberta, hoje posso afirmar que conheço melhor o autor. Quem é, o que sente, o que ama, as suas inquietações e convicções, as suas insurgências, os lugares que habita, as suas utopias, os ritmos e a musicalidade poética do músico e compositor, e dei-me conta da tranquilidade que habita o espírito irrequieto que faz do Aníbal Raposo um cidadão que não deixa a vida passar-lhe ao largo.

Sei que pode parecer abusivo, mas ler os poemas reunidos em “Vivências”, foi como se lesse a autobiografia do Aníbal Raposo, sim porque as autobiografias também podem ter a forma de poemas e não são, necessariamente, uma mera narrativa de memórias datadas. A apreciação é minha e outros olhares são possíveis e legítimos.

A organização temática dos poemas está construída como de uma peça musical se tratasse, ou não fosse o autor um conceituado músico e compositor. Os 10 temas, ou andamentos deste livro, agrupam poemas construídos com a métrica e o formalismo lírico clássico, passa por alguns acordes populares, mas também por momentos de improvisação que libertam o poeta. E é então que o autor se espraia como um rio livre do aperto castrador das margens que, não poucas vezes, limitam o ato criador.

Outras leituras e interpretações são, naturalmente, possíveis, ou não fosse a leitura, em particular da poesia, um exercício e espaço de liberdade.

Tenho evitado, ao longo desta apresentação, o recurso à citação de poemas ou de pequenos excertos para ilustrar algumas das afirmações. É uma opção minha pois, não quero retirar aos leitores o prazer da descoberta e, muito menos tentar colonizar as vossas apreciações e leituras, contudo é chegado o momento de me socorrer de algumas estrofes e versos que à medida que fui lendo sublinhei e que me ajudaram a construir a opinião que estou a partilhar convosco.

O poeta, mesmo sem rima ou talvez por isso, é um sonhador:

“(…) Voa, sem medos e liberto,

pois é sempre do ar que se vislumbra

a toca do saber, que é presa esquiva,

e os ramos onde se ocultam na folhagem,

os frutos mais saborosos da loucura. “


O poeta é atento e capaz de se insurgir:

“As velas da esperança não chegam à costa

Cospem-nos em cima e a gente gosta.

Mil e uma peças, os mesmos atores,

Duas mil mentiras, três mil impostores.

 

Vamos enriçados em patranhas tantas…

Oh mar de capelo quando te levantas?”

 

A glória é efémera, diz-nos o poeta:

“Nasce do chão

aponta ao céu

e ao chão regressa…”

 

O Aníbal sabe o que quer:

“Apontada a norte

Por ser o meu rumo.”

 Não tenho dúvidas que poeta sabe que o Norte é o seu rumo, mas quando navega num corpo de mulher é no Sul que se encontra, sem se ter perdido.

“Batuques africanos no balouçar do teu corpo de gazela.”

Ou,

“Há como um tango argentino no desafio da tua cintura estreita.”

Ou ainda,

“E danças peruanas nas tuas ancas pela alba.

Há calor dos trópicos no aperto dos teus braços tão sinceros.”

 

O amor tem destas coisas, acontece quando e onde tem de acontecer.

E para terminar as citações deixo-vos estes versos que escolhi, não pela sua estética ou lirismo poético, mas para vos tentar abrir um sorriso, como convém no fim desta apresentação. E cito:

“Quem tem medo,

não cria:

- ou mia

ou compra

um cão.


Ao Aníbal Raposo e à Editora Letras Lavadas, enquanto cidadão e leitor, só posso estar grato pela publicação deste livro que, espero eu, não esgote a produção literária e poética do autor e a sua edição.

Obrigado pela Vossa atenção!

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 3 de fevereiro de 2023

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