quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Saúde: má gestão ou estratégia

imagem retirada da internet
A saúde é um bem inestimável. Se há verdades insofismáveis esta será uma delas. A prevenção da doença ou, se preferirmos a promoção da saúde, deveria ser uma prioridade no desenho e na afetação de recursos de qualquer projeto político para os serviços públicos de saúde.

A realidade é, contudo, bem diferente dos anúncios feitos circunstancialmente por quem exerce o poder, na região e no país. Os utentes dos hospitais e dos centros de saúde públicos identificam e denunciam de amiúde as dificuldades no acesso, em tempo útil, e na qualidade do serviço prestados pelos organismos públicos que prestam cuidados de saúde, sejam eles primários, sejam de outra natureza, reconhecendo que as insuficiências verificadas não se devem aos diferentes profissionais, mas ao modelo organizacional, às prioridades políticas e ao desinvestimento nos serviços públicos. Mas se os utentes manifestam o seu desagrado também os profissionais de saúde pública o fazem, tendo como efeito prático, mais visível, o abandono dos serviços.

A falta de atratividade das carreiras, as baixas remunerações e a insatisfação gerada com a imposição de objetivos de produtividade definidos por critérios economicistas e administrativos traduzem-se na migração dos diferentes técnicos de saúde para o setor privado, ou mesmo para o estrangeiro.

Ao fazer uma pesquisa sobre a taxa de cobertura da medicina familiar no Serviço Regional de Saúde deparamo-nos com taxas elevadas, nunca abaixo dos 90%, sendo que algumas das parcelas territoriais da região têm uma taxa de cobertura plena, por outro lado, verificamos que houve algum aumento na afetação técnicos para as equipas multidisciplinares de saúde familiar, em particular de médicos e enfermeiros, sendo que outras valências, como seja a nutrição ou a psicologia clínica, estão muito aquém do desejável.

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A cobertura da quase totalidade da população açoriana pela medicina familiar pública resulta da dimensão das listas de utentes por médico/equipa e não pelo, insuficiente, aumento do pessoal médico e técnico que integram as equipas de saúde familiar, conquanto seja um facto que há mais técnicos de saúde primária afetos aos cuidados primários de saúde, mas não é menos verdade que as listas por médico/equipa cresceram muito mais. O resultado destas políticas reflete-se, em particular nas ilhas com maior dimensão populacional, como se constata na diminuição da qualidade do serviço: menos tempo por doente, diminuição da frequência das consultas, ou seja, distanciamento quando o que se pretende é proximidade e disponibilidade para cumprir com o desiderato da medicina familiar: a prevenção e a manutenção da saúde.

A relação utente médico/equipa degrada-se e, naturalmente, gera insatisfação nos utentes e nos profissionais de saúde, os primeiros pelo sentimento de abandono e distanciamento e os segundos por não conseguirem desenvolver cabalmente o seu trabalho. Pode parecer uma questão de somenos importância, mas se atentarmos, por exemplo, ao que a Ordem dos Médicos diz, por via do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e Familiar, constamos que os serviços públicos de cuidados de saúde primários na região, nas ilhas e concelhos mais populosos, estão muito longe de cumprirem as funções que lhe são atribuídas. Este incumprimento não resulta da inércia ou incúria dos profissionais médicos e outros técnicos afetos às equipas, mas do elevado número de utentes que servem e do trabalho administrativo a que os sujeitam, tudo em nome de uma suposta produtividade.

Vejamos então o que diz a Ordem dos Médicos sobre esta importante especialidade: “A Medicina Geral e Familiar é uma especialidade médica que promove cuidados de saúde a todos os que procuram o médico de família, independentemente da idade, género, etnia ou estado de saúde, de forma personalizada (a cada um o que precisa), global (abarcando todos os problemas de saúde), acessível (está junto das pessoas) e em continuidade (ao longo do tempo).

A Medicina Geral e Familiar assenta no modelo biopsicossocial, que inclui os dados da pessoa, o seu passado, a sua estrutura familiar e o contexto da sua comunidade, e entende que a interação com a pessoa pode ser, por si só, terapêutica.

O médico de família cuida da pessoa, em termos de prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos. A Medicina Geral e Familiar trabalha em conjunto com outros profissionais, médicos e não médicos, promovendo a coordenação dos cuidados de saúde prestados, através da articulação entre os seus diferentes níveis.”

Não poderia estar mais de acordo e assim deveriam funcionar os serviços públicos de medicina familiar, mormente, no que concerne ao pessoal médico. A pergunta é: As equipas de medicina geral e familiar do seu Centro de Saúde funcionam assim!? A minha resposta é: - Não. E a sua qual é!?

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A minha resposta revela insatisfação pelo serviço. O meu descontentamento não é motivado pelos profissionais (administrativos, técnicos, enfermeiros e pessoal médico), mas por não serem respeitados os requisitos organizacionais para que as equipas possam cumprir os propósitos que lhe estão atribuídos. Distanciamento quando devia haver proximidade, um olhar parcial sobre o utente quando devia ser holístico, descontínuo e distante quando devia ser regular e próximo.

Já referi a migração do pessoal técnico, de enfermagem e médico, para o setor privado, mas também os utentes, detentores de seguros ou de subsistemas de saúde que têm acordos com as empresas privadas que prestam serviços de saúde, recorrem aos serviços de saúde particulares, quem os não tem procura nos hospitais públicos a assistência médica que não lhe é fornecida entupindo os serviços de atendimento permanente, ou madrugando para conseguir uma consulta, não agendada, no Centro de Saúde sem garantia de vir a ser atendido pelo seu médico de família.

Se este fenómeno é fruto do acaso ou da má gestão da coisa pública, assim pode parecer, mas eu diria que não, embora a administração e a gestão do setor público sejam, por vezes, vítimas da incompetência de alguns gestores e administradores cuja capacidade, apesar de diplomados, só é validada pela opção partidária do momento.

A destruição do Serviços Regional e Nacional de Saúde também se faz por via da insatisfação dos utentes e, nada disto acontece por acaso, a finalidade é cada vez mais clara: abrir espaço à atividade privada e, como percecionamos, a estratégia está a dar os seus frutos. A proliferação de clínicas e policlínicas privadas nos Açores, em particular nas ilhas com maior dimensão populacional, mais parece a reprodução de cogumelos nas primeiras chuvas do outono. Todas elas instaladas com os programas de apoio público às empresas e o seu funcionamento só é rentável por via dos protocolos com os serviços públicos de saúde, ou seja, os sistemas privados alimentam-se com o financiamento público que deveria ser investido nos Serviços Regional e Nacional de Saúde.

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Os cuidados de saúde primários têm como principais pilares a relação médico utente (personalização), a construção da história clínica do utente e familiares (um olhar holístico), a proximidade (acessível pelo utente) e o acompanhamento ao longo do tempo (continuidade). Não é difícil constatar que nenhum destes pilares tem sustentação face às longas listas de utentes por médico/equipa, ou seja, a estrutura de saúde que tem como missão prevenir e manter a saúde está a degradar-se, os custos dessa deterioração são elevados, pois, o tratamento da doença é sempre mais alto do que a manutenção da saúde, por outro lado o negócio das clínicas e hospitais privados e das farmacêuticas é a doença não é a saúde. As políticas públicas, na região e no país, têm ido ao encontro dos interesses privados e das farmacêuticas, mas não tem de ser assim. Como já referi o caminho que estamos a trilhar é fruto de opções políticas de quem tem exercido o poder na região e no país. A opção tem sido deixar degradar os serviços públicos para abrir espaço às empresas privadas e alocar o financiamento, que deveria ser para os serviços públicos, no setor privado. 

 Arranhó, 20 de fevereiro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 21 de fevereiro de 2024

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