quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Para além da morte

imagem retirada da internet
    O passado dia 20, segunda-feira, foi marcado por vários acontecimentos sobre os quais não podemos passar como “… cão por vinha vindimada”.

    A tomada de posse do novo inquilino da Casa Branca. Trata-se, como se sabe, de um regresso a que o mundo, por diferentes razões, não fica indiferente. Por mim, e para já, nada tenho a dizer, a escolha, quer se goste ou não goste, foi do povo estado-unidense e, como tal, respeitável como outras escolhas populares, digo eu que tenho uma visão diferente dos democratas encartados que por aí pululam e para os quais os resultados eleitorais só são aceitáveis quando servem os “seus” propósitos. A referência a um dos eventos está feita, sobre o que vier a acontecer decorrente da atuação da nova administração estado-unidense será, na devida altura, objeto de uma ou outra nota conforme os seus impactos internos e externos.

    O dia da aludida tomada de posse coincidiu com um feriado, um de três, nos Estados Unidos dedicado a uma personalidade, neste caso é dia de Martin Luther King, uma paradoxal coincidência. O feriado dedicado a Luther King assinala-se na terceira segunda-feira de janeiro, pela proximidade com a data do seu nascimento, este ano, por acaso do calendário, aconteceu ser empossado como presidente dos Estados Unidos uma personalidade que está nos antípodas de grande humanista e símbolo da luta pelos direitos civis naquele país. Sobre Martin Luther King já esta semana foi publicado, num jornal da Região, um texto de Diniz Borges que julgo ser suficiente para honrar a sua memória e a sua luta. Dedico as próximas palavras a uma outra personalidade que, tal como Luther King, perdura para além da sua morte: Amílcar Cabral. 

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    O passado dia 20 de janeiro regista a passagem dos 52 anos do assassinato de Amílcar Cabral, perpetrado por elementos do próprio PAIGC, a mando do regime colonial português. Mais do que sobre a sua morte importa a lembrança do seu legado que ainda hoje é uma referência para o continente africano e para o mundo e, por isso mesmo, objeto da atenção dos meios académicos. Por estes dias, no âmbito de uma pesquisa sobre Amílcar Cabral visionei um vídeo sobre as mulheres na luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau de onde extraí duas frases, proferidas por mulheres, que dizem bem da dimensão do homem e da sua obra. O contexto era a morte de Amílcar Cabral, e passo a citar:

“(…) isto chegou ao fim, mas depois vimos que não era o fim. É aí que reside o valor de Cabral: projetar-se para além da sua morte (…)”. Zezinha Chantre.

“(…) perdemos um grande homem, mas ele soube transmitir-nos a sua força de tal forma que a nossa luta redobrou de intensidade e chegamos à independência sem a sua presença, mas com ele no coração. (…), Amélia Araújo.

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    A declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau chegou ainda em 1973, foi reconhecida internacionalmente, embora Portugal só o tenha feito alguns meses depois do 25 de Abril, em setembro de 1974, o que coloca, ou pode colocar, algumas interrogações sobre o processo revolucionário e contrarrevolucionário no que à descolonização diz respeito.

    O regime fascista e colonial português chamava terrorista a Amílcar Cabral, mas foi esse mesmo regime que empurrou os movimentos de libertação para a luta armada ao recusar todas as propostas de solução pacífica para a descolonização e a independência. No que concerne ao PAIGC e á luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau é bom que tenhamos em consideração o memorando enviado ao Governo português em 1960 e a nota aberta, em 1961, os quais foram ignorados, tendo a ação do governo de Salazar passado por aumentar a repressão sobre as populações e o reforço da presença militar numa clara demonstração de que o caminho da paz estava arredado dos propósitos do país colonizador.

    Amílcar Cabral foi uma personalidade multifacetada e um humanista. Sei que parece um lugar-comum, mas ainda assim, direi que Cabral era um homem muito à frente do seu tempo.  As questões da igualdade de género, do desenvolvimento sustentável e, por conseguinte, as questões ambientais eram, a par da justiça social, da eliminação de todas as formas de discriminação e da luta contra o colonialismo algumas das suas bandeiras e que influenciaram toda a sua vida e a sua luta.

    Um aspeto do pensamento de Amílcar Cabral que a maioria dos portugueses não terá conhecimento, ou pelo menos uma consciência apurada, relaciona-se com o seu opinião em relação ao fim do regime fascista em Portugal e a luta de libertação, sobre o qual diz o seguinte: (…) Nós estamos absolutamente convencidos de que, se em Portugal se instalasse amanhã um governo que não fosse fascista, mas fosse democrático, progressista, reconhecedor dos direitos dos povos à autodeterminação e à independência, a nossa luta não teria razão de ser. Aí está a ligação íntima que pode existir entre a nossa luta e a luta antifascista em Portugal; mas também, estamos absolutamente convencidos de que, na medida em que os povos das colónias portuguesas avancem com a sua luta e se libertem totalmente de dominação colonial portuguesa, estarão contribuindo de uma maneira muito eficaz para a liquidação do regime fascista em Portugal. (…).

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    Não há como discordar de Amílcar Cabral. Teremos todos alguma consciência que as guerras de libertação dos povos das colónias portuguesas contribuíram significativamente para que o regime fascista português tivesse chegado ao fim naquela madrugada de Abril. Não foi por acaso que o povo português saiu à rua para apoiar o movimento das forças armadas que depôs o regime, um dos motivos decorre diretamente do anunciado fim da guerra colonial pois, todas as famílias sofriam com a ida dos seus filhos para a guerra, uma guerra que não era sua, com tudo o que isso significava. Não foi apenas, pois, muitos outros contributos e variáveis se podem aduzir para que Abril tivesse acontecido e, sobretudo, para que os caminhos de Abril tivessem Maio sempre presente apesar dos esforços para que a revolução portuguesa não fosse além da transmissão do poder para um antigo governador da Guiné.

    A faceta poética de Amílcar Cabral não será, de todo, desconhecida dos portugueses e trago-a aqui, para ilustrar uma dimensão menos referida deste homem de cultura, este poema que se intitula: A minha poesia sou eu.

… Não, Poesia:/Não te escondas nas grutas de meu ser,/não fujas à Vida./Quebra as grades invisíveis da minha prisão,/abre de par em par as portas do meu ser/— sai…/Sai para a luta (a vida é luta)/os homens lá fora chamam por ti,/e tu, Poesia és também um Homem./Ama as Poesias de todo o Mundo,/— ama os Homens/Solta teus poemas para todas as raças,/para todas as coisas./Confunde-te comigo…/Vai, Poesia:/Toma os meus braços para abraçares o Mundo,/dá-me os teus braços para que abrace a Vida./A minha Poesia sou eu.

Poema publicado na revista “Seara nova”, em 1946. Amílcar Cabral estudava agronomia em Lisboa e tinha 22 anos.

Ponta Delgada, 20 de janeiro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 22 de janeiro de 2025

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