quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Tá tudo bem. Será que está!?

imagem retirada da internet
A 27 de julho de 2024, sábado, pelas 16h, fiz a apresentação de um livro na livraria Letras Lavadas, em Ponta Delgada. O agendamento não terá sido muito feliz, a meio de um sábado de Verão, não era expetável que houvesse muito público, e não houve. Mas, ainda assim, sempre se juntaram algumas pessoas interessadas em assistir à apresentação da obra Entre Cravos e Cardos (edições 70, 2024), de Thomas Fischer. Tinha havido alguma divulgação na comunicação social nacional e regional, o tema relaciona-se com a experiência de um cidadão de origem alemã que tinha vindo após a Revolução de Abril, que em 1983 decidiu viver em Portugal e que há alguns anos adquiriu a nacionalidade portuguesa, estes factos aliados a alguma curiosidade natural sobre o olhar do “outro” sobre nós, mesmo que esse “outro” já seja um dos nossos, é sempre aliciante e, muitas vezes, assume um caráter didático, para além de a momentos, nos poder abrir um sorriso quando nos identificamos com a descrição, ou quiçá, franzir o sobrolho quando as apreciações não são do nosso agrado, o que não é o caso como poderão verificar se vierem a ler o livro. 

Thomas Fischer é alemão de nascença, mas passou parte a infância em Inglaterra, onde iniciou os seus estudos elementares. Tendo regressado à Alemanha, foi na zona de Bremen que concluiu o ensino secundário, para depois seguir estudos superiores (Jornalismo, Economia e Sociologia) em Colónia. Foi alemão, em Inglaterra e “o inglês” na Alemanha, em Portugal, apesar de décadas de permanência e da aquisição da nacionalidade, continua a ser um “estrangeiro”.

Os jovens da geração do Thomas viveram o tempo das grandes utopias, mas também de grandes realizações e de alterações sociais e políticas que os moldaram e mobilizaram.

Os acontecimentos, preocupações e modos de vida dos jovens no final dos 60 e princípio dos 70. Woodstock, a revolução sexual, o governo de unidade popular no Chile, mas também o seu trágico fim, a guerra do Vietname, a revolução cubana, alguma desilusão, criada artificialmente, com os percursos nos países socialistas do Leste, a revolução de Abril em Portugal e o fascínio que exerceu sobre muitos jovens e menos jovens cidadãos europeus, mas também da América do Sul e do Norte, e de outros territórios mais longínquos. 

foto de Luís Monte
As caraterísticas da Revolução de Abril e as transformações ocorridas no período revolucionário, atraíram ao nosso país muitos jovens, mulheres e homens, das mais diversas proveniências geográficas e com objetivos diversos. Cada um à sua maneira queria sentir o pulsar de um inusitado golpe de estado militar que ao invés de instaurar uma ditadura acabou com uma e instaurou um regime democrático.

As transformações sociais e económicas da Revolução de Abril atraíram muitas centenas, quiçá milhares de jovens ligados às lutas políticas e sociais nos seus países de origem. A reforma agrária, a democracia popular e o autogoverno mobilizaram esses jovens, que não vieram só para sentir, mas para participar ativamente, uns com a genuína atitude de se integrarem no processo revolucionário, outros nem tanto. Mas esse é um outro assunto.

É neste contexto que Thomas Fischer chega a Portugal em 1975. Como ele passaram por Portugal muitos outros estrangeiros: músicos, jornalistas, intelectuais, dirigentes políticos e sindicalistas alguns sobejamente conhecidos, como por exemplo: Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Alain Touraine, Jean-François Revel, Jean Daniel, François Mitterrand, Gaston Deferre, Lionel Jospin, Georges Marchais, Alain Krivine, Heinrich Böll, Hans Magnus Enzensberger, Robert Kramer, ou ainda Gabriel Garcia Marquez. Thomas Fischer como muitos dos estrangeiros que vieram sentir o pulsar da Revolução de Abril regressou às suas ancestrais raízes. Mas Thomas Fischer veio, viu, gostou, voltou, em 1983, e por aqui ficou. Conhece Portugal como poucos portugueses conhecem, mantém uma forte ligação aos Açores que visitou pela primeira vez em 1983, curiosamente o ano em que aqui fixei residência, e este seu livro dá-nos conta das muitas viagens por Portugal, pelos acontecimentos que foram marcando a nossa história contemporânea, mas também pelo “ser português”, os seus paradoxos e até alguns “mistérios” por desvendar, como seja por exemplo conseguir viver com salários que nos envergonham e continuam a empurrar muitos dos nossos concidadãos para a emigração e cada vez mais para a pobreza.

Logo no início da apresentação e após os agradecimentos a quem estava presente, ao autor e à Letras Lavadas, fiz um teste ao Thomas, socorrendo-me de uma questão recorrente no livro, para verificar se o autor já estava imbuído do genuíno espírito português.

foto de Luís Monte

Olá Thomas! Está tudo bem!? Ao que o Thomas respondeu: Sim! Está tudo bem. A resposta foi a esperada. O Thomas já se apropriara de uma caraterística que não sendo tudo, diz muito do ser português. Como sabemos esta é uma pergunta que tem sempre a mesma resposta mesmo que tudo esteja mal. Raras são as vezes em que obtemos outra resposta à pergunta “Como estás?” que não seja “Tá tudo bem.” Podemos carregar dor, tristeza, ansiedade, angústia, mas face à pergunta de alguém que não faz parte do nosso círculo familiar ou de amigos próximos a resposta é sempre “tá tudo bem”. O Thomas explora, na sua obra Entre Cravos e Cardos, esta e outras facetas que, para o bem e para o mal, nos caraterizam.

A capa do livro é uma excelente síntese do conteúdo, os grafismos, em particular a estilização das duas flores que dão título ao livro e entre as quais se construíram e se desvaneceram sonhos. 

imagem retirada da internet
O cravo é uma flor que simboliza respeito, amor e paixão. Os craveiros fazem parte do imaginário português pois, raras são as casas portuguesas onde não existia “um craveiro a florir numa água-furtada”, como diz um conhecido fado interpretado por Amália Rodrigues, mas também num vaso à janela, ou ainda nos pequenos jardins das casas populares. Para além das variadas cores exalam um subtil e agradável aroma o que contribui para a popularidade destas plantas. Em Portugal, com o gesto de Celeste Caeiro, na manhã do dia 25 de Abril o cravo vermelho ganhou um novo e exponencial simbolismo e deu nome à revolução que muitas vezes é designada pela Revolução dos Cravos.


imagem retirada da internet
O cardo é uma flor silvestre que contrasta com a delicadeza dos cravos. É espinhosa, resiste bem ao calor e em solos arenosos (pobres). A flor do cardo se por um lado, é desagradável ao contacto, por causa das suas folhas espinhosas, por outro lado, é uma planta muito útil e decorativa, que floresce no Verão, numa profusão de belas flores rosa-púrpura. A sua principal utilização, para além de outras, é coalhar o leite para fazer os deliciosos queijos de Serpa, de Azeitão, da Beira Baixa e da Serra da Estrela, de entre outros. Os cardos são, também, utilizados na gastronomia, desde sempre e, mais recentemente, na medicina.

Entre a utopia e a realidade, assim se poderia chamar o livro de Thomas Fischer. Os sonhos que nasceram com os belos e rubros cravos de Abril e um povo que continua a sobreviver num país que nunca valorizou, nem mobilizou, ou não quis mobilizar, os seus cidadãos. A vida da generalidade dos portugueses é, como os cardos, dura e espinhosa.  Passados 50 anos sobre a Revolução dos Cravos o povo português continua, como os cardos, “sobrevive” em ambientes inóspitos, sem se saber muito bem como. Os cardos como os portugueses têm um potencial intrínseco subaproveitado que no caso dos cardos começa agora a ser devidamente estudado e valorizado. O título e a capa do livro são uma feliz metáfora.

Ponta Delgada, 29 de outubro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 30 de outubro de 2024

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