![]() |
| foto de Aníbal C. Pires |
A adesão ao projeto europeu foi celebrada, com pompa e circunstância, como o ingresso num clube de civilização e progresso, mas o que se consolidou foi uma modernização dependente. As decisões estratégicas, energia, indústria, agricultura, pescas e transportes, foram sendo transferidas para fora das fronteiras nacionais, e com elas a possibilidade de decidir o próprio destino.
A soberania, palavra quase profana no vocabulário político contemporâneo, cedeu lugar à gestão de fundos, programas e indicadores que sustentam a ficção do desenvolvimento. Portugal deixou de produzir o essencial e passou a consumir o acessório, deixou de planear o futuro e passou a executor de programas europeus, com as finalidades desenhadas em centros de decisão longínquos da realidade nacional, seja ela a continental ou a insular.
Mas a periferia não é apenas geopolítica. Dentro do país há outro mapa, invisível e persistente, que desenha as fronteiras da exclusão, seja pelo litoral saturado e o interior desertificado, seja pela capital que concentra e centraliza, seja pelos territórios esquecidos. Bruxelas decide, Lisboa também, mas cada vez menos, o resto do território continental, em particular o interior e os arquipélagos atlânticos, aguardam de mão estendida pelas sobras.
![]() |
| foto de Aníbal C. Pires |
A condição periférica, seja do continente ou das regiões insulares, não é, como já foi referido uma fatalidade, talvez seja nessa condição de margem e à margem, que resida a possibilidade de um novo centro. A periferia, quando se reconhece e se assume, pode tornar-se lugar de criação e consciência. A distância permite ver o que o centro não vê, da escassez nasce a imaginação, da exclusão, a força de propor outros caminhos. É das margens que, por vezes, se redesenham futuros diferentes, assim saibamos recuperar a soberania e a autonomia para decidir por nós, no continente, nos Açores e na Madeira, assim nos saibamos libertar da tutela de governos agenciados ao consenso neoliberal (cortes na Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes, perdas de direitos sociais, etc.), e, por no seu lugar um governo patriota capaz de romper com a uniformidade do modelo de desenvolvimento imposto por agendas externas, num país tão diverso como o nosso.
A aparente, ou real aceitação, deste consenso, que tem como resultado mais visível a votação maioritária em partidos agenciados ao neoliberalismo, tenham as siglas que tiverem, não resulta da livre discussão de ideias e dos debates públicos, mas advém de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital, das corporações mediáticas e das grandes empresas que dominam o mercado da tecnologia e inovação, como sejam a Apple, o Google, a Amazon, a Microsoft e a Meta.
Portugal precisa de reaprender a estar nas margens sem se resignar à periferia. Não se trata de reivindicar o centro, mas de o questionar. Um país que sempre viveu entre mundos, entre continentes, entre línguas, entre memórias, pode reencontrar aí a chave da sua soberania e autonomia. A verdadeira modernidade não é seguir o modelo dominante, mas criar a partir da diferença e, sobretudo, encontrar os caminhos da libertação do consenso neoliberal que, estando ainda bem implantado, começa a dar sinais de esgotamento.
Enquanto medir o seu sucesso pela aceitação dos outros seja pelo cumprimento dos Planos de Estabilidade e Crescimento, ou outros instrumentos que cerceiam a soberania, Portugal será apenas o que o centro permitir: uma periferia dócil, útil e descartável. Mas se entender que da margem se pode construir um mundo mais justo, mais atento às suas raízes e à sua escala humana, então talvez reencontre o sentido perdido entre tratados e promessas por cumprir. A periferia não é fatalidade, é consciência.
![]() |
| foto de Aníbal C. Pires |
Hoje navegar já não é conquistar os mares, é resistir à corrente. É recusar a lógica que transforma cidadãos em consumidores, comunidades em mercados e países em plataformas logísticas. É defender a dignidade do trabalho, a terra que alimenta, o mar que sustenta, a cultura que nos distingue e nos liga.
Portugal não precisa de competir com o centro, precisa de reencontrar o seu ritmo, o seu compasso humano, a sua escala justa, nem pequena demais para se humilhar, nem grande demais para se perder.
Nas regiões insulares atlânticas e no interior, nas aldeias que resistem e nas escolas que ainda ensinam a pensar, há sementes dessa consciência. Não é uma nostalgia rural nem um nacionalismo redutor e reacionário, é a compreensão de que o futuro não pode ser importado, tem de ser cultivado. O país que souber olhar para si, com a serenidade de quem conhece os seus limites e a coragem de quem recusa o servilismo, poderá transformar a sua margem em farol.
Talvez seja essa a nova centralidade portuguesa, talvez seja essa a nova centralidade madeirense e açoriana, a de um povo que, mesmo periférico, nunca perdeu o sentido da travessia. A de um país que não precisa de pedir licença para existir.
Porque a verdadeira soberania não se decreta, constrói-se, todos os dias, na forma como pensamos, produzimos e sonhamos.
E se um dia voltarmos a ser capazes de sonhar com a mesma audácia com que outrora partimos, talvez a periferia deixe de ser uma marca negativa e volte a ser o lugar onde o mundo se reinventa.
Ponta Delgada, 28 de outubro de 2025



Sem comentários:
Enviar um comentário