quarta-feira, 29 de outubro de 2025

periferias

foto de Aníbal C. Pires
Portugal é, sempre foi, uma fronteira. Uma fronteira entre o Atlântico e a Europa, entre o passado que o molda e o futuro que lhe prometem, entre o que produz e o que consome, entre o que sonha e o que lhe é permitido sonhar. A sua condição periférica, tantas vezes mascarada de europeísmo triunfante, tornou-se uma forma de dependência consentida, ou se preferirmos, uma espécie de modernidade tutelada pelos tecnocratas que pululam nos gabinetes das instâncias da União Europeia e onde, para satisfação de alguns, um ou outro português vai rotativamente assumindo cargos políticos e vergam a coluna aos interesses privados que dominam em Bruxelas e Washington.

A adesão ao projeto europeu foi celebrada, com pompa e circunstância, como o ingresso num clube de civilização e progresso, mas o que se consolidou foi uma modernização dependente. As decisões estratégicas, energia, indústria, agricultura, pescas e transportes, foram sendo transferidas para fora das fronteiras nacionais, e com elas a possibilidade de decidir o próprio destino. 

A soberania, palavra quase profana no vocabulário político contemporâneo, cedeu lugar à gestão de fundos, programas e indicadores que sustentam a ficção do desenvolvimento. Portugal deixou de produzir o essencial e passou a consumir o acessório, deixou de planear o futuro e passou a executor de programas europeus, com as finalidades desenhadas em centros de decisão longínquos da realidade nacional, seja ela a continental ou a insular.

Mas a periferia não é apenas geopolítica. Dentro do país há outro mapa, invisível e persistente, que desenha as fronteiras da exclusão, seja pelo litoral saturado e o interior desertificado, seja pela capital que concentra e centraliza, seja pelos territórios esquecidos. Bruxelas decide, Lisboa também, mas cada vez menos, o resto do território continental, em particular o interior e os arquipélagos atlânticos, aguardam de mão estendida pelas sobras.

foto de Aníbal C. Pires

A centralização, herança de um Estado que nunca soube acolher plenamente a sua diversidade, continua a reproduzir desigualdades e a produzir pobres e excluídos. Nos Açores, a condição ultraperiférica, produz efeitos ainda mais nefastos agravados por uma governação titubeante entre a satisfação de projetos políticos pessoais e a perpetuação no poder, pelo poder, mas, sobretudo, ineficaz e negligente na defesa deste território distante, disperso e, por este povo sofrido, e onde resistem alguns cidadãos que continuam a acreditar que a ultraperiferia não é uma fatalidade e que o desenvolvimento e a coesão social, económica e territorial não são uma miragem.

A condição periférica, seja do continente ou das regiões insulares, não é, como já foi referido uma fatalidade, talvez seja nessa condição de margem e à margem, que resida a possibilidade de um novo centro. A periferia, quando se reconhece e se assume, pode tornar-se lugar de criação e consciência. A distância permite ver o que o centro não vê, da escassez nasce a imaginação, da exclusão, a força de propor outros caminhos. É das margens que, por vezes, se redesenham futuros diferentes, assim saibamos recuperar a soberania e a autonomia para decidir por nós, no continente, nos Açores e na Madeira, assim nos saibamos libertar da tutela de governos agenciados ao consenso neoliberal (cortes na Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes, perdas de direitos sociais, etc.), e, por no seu lugar um governo patriota capaz de romper com a uniformidade do modelo de desenvolvimento imposto por  agendas externas, num país tão diverso como o nosso. 

A aparente, ou real aceitação, deste consenso, que tem como resultado mais visível a votação maioritária em partidos agenciados ao neoliberalismo, tenham as siglas que tiverem, não resulta da livre discussão de ideias e dos debates públicos, mas advém de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital, das corporações mediáticas e das grandes empresas que dominam o mercado da tecnologia e inovação, como sejam a Apple, o Google, a Amazon, a Microsoft e a Meta.

Portugal precisa de reaprender a estar nas margens sem se resignar à periferia. Não se trata de reivindicar o centro, mas de o questionar. Um país que sempre viveu entre mundos, entre continentes, entre línguas, entre memórias, pode reencontrar aí a chave da sua soberania e autonomia. A verdadeira modernidade não é seguir o modelo dominante, mas criar a partir da diferença e, sobretudo, encontrar os caminhos da libertação do consenso neoliberal que, estando ainda bem implantado, começa a dar sinais de esgotamento.

Enquanto medir o seu sucesso pela aceitação dos outros seja pelo cumprimento dos Planos de Estabilidade e Crescimento, ou outros instrumentos que cerceiam a soberania, Portugal será apenas o que o centro permitir: uma periferia dócil, útil e descartável. Mas se entender que da margem se pode construir um mundo mais justo, mais atento às suas raízes e à sua escala humana, então talvez reencontre o sentido perdido entre tratados e promessas por cumprir. A periferia não é fatalidade, é consciência.

foto de Aníbal C. Pires
Consciência do lugar que ocupamos no mundo e da forma como o mundo nos ocupa. É o exercício de ver o centro com a distância necessária para o compreender, sem cobiça nem subserviência. É das margens que se percebe melhor o desenho do poder, os seus silêncios, as suas promessas e os seus enganos. E talvez Portugal precise, mais do que nunca, de reencontrar essa lucidez periférica que o fez voltar-se para o mar. E não, não há aqui nenhum saudosismo pelo passado colonial, nem qualquer estratégia neocolonial, bem pelo contrário, aquilo a que me refiro é à cooperação e estabelecimento de relações multilaterais com um mundo policêntrico e abandonar uma relação unidirecional com a União Europeia que nos espartilha.

Hoje navegar já não é conquistar os mares, é resistir à corrente. É recusar a lógica que transforma cidadãos em consumidores, comunidades em mercados e países em plataformas logísticas. É defender a dignidade do trabalho, a terra que alimenta, o mar que sustenta, a cultura que nos distingue e nos liga.

Portugal não precisa de competir com o centro, precisa de reencontrar o seu ritmo, o seu compasso humano, a sua escala justa, nem pequena demais para se humilhar, nem grande demais para se perder.

Nas regiões insulares atlânticas e no interior, nas aldeias que resistem e nas escolas que ainda ensinam a pensar, há sementes dessa consciência. Não é uma nostalgia rural nem um nacionalismo redutor e reacionário, é a compreensão de que o futuro não pode ser importado, tem de ser cultivado. O país que souber olhar para si, com a serenidade de quem conhece os seus limites e a coragem de quem recusa o servilismo, poderá transformar a sua margem em farol.

Talvez seja essa a nova centralidade portuguesa, talvez seja essa a nova centralidade madeirense e açoriana, a de um povo que, mesmo periférico, nunca perdeu o sentido da travessia. A de um país que não precisa de pedir licença para existir.

Porque a verdadeira soberania não se decreta, constrói-se, todos os dias, na forma como pensamos, produzimos e sonhamos.

E se um dia voltarmos a ser capazes de sonhar com a mesma audácia com que outrora partimos, talvez a periferia deixe de ser uma marca negativa e volte a ser o lugar onde o mundo se reinventa.

Ponta Delgada, 28 de outubro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 29 de outubro de 2025

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