quinta-feira, 24 de julho de 2025

declínio anunciado

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Os Estados Unidos da América (EUA) seguem em velocidade de cruzeiro para mais uma crise económica e financeira. Se a crise de 2008 pode ser considerada cíclica, desta vez trata-se de uma crise com contornos sistémicos que, naturalmente, afetará meio mundo. Não todo pois há um mundo que vive à margem da american way of life, e, como tal, os efeitos de uma crise nos EUA não se farão sentir da mesma forma num mundo que é, naturalmente, multipolar.

As civilizações não colapsam de um dia para o outro, a sua decadência vai-se instalando. Há, contudo, sinais de declínio tão evidentes que só a cegueira voluntária impede o seu reconhecimento. A insistência em estratagemas de domínio apenas irão acelerar um desfecho catastrófico. O chamado Norte Global, tendo como principais protagonistas os EUA, a União Europeia (UE) e o Reino Unido, atravessa uma crise profunda, de contornos económicos, sociais, políticos e estratégicos. Os pilares da hegemonia construída no pós-guerra, mas com as velhas caraterísticas imperiais e coloniais, há muito começaram a ceder. E o mundo é muito mais do que o Norte Global, ou seja, à sua volta tem havido alterações substantivas que, salvo melhor e douta opinião, não têm sido devidamente atendidas e a insistência na supremacia eurocêntrica e atlantista está a corroer as instituições. Veja-se o descrédito, devido à subserviência da Comissão Europeia e do Conselho Europeu ao capital financeiro dos oligopólios e à política externa dos EUA, mormente, no caso da questão ucraniana e da Palestina ocupada.

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Os EUA continuam a afirmar-se como a maior potência militar e tecnológica do planeta, direi que tenho algumas dúvidas que ainda assim seja, pois, essa superioridade já não corresponde à sua realidade interna. A dívida pública ultrapassa os 34 biliões de dólares, quando acabar este texto já terá aumentado algumas dezenas de milhões. O défice é estrutural e o financiamento externo, sobretudo através da venda de títulos do Tesouro, começa a mostrar fragilidades, à medida que alguns países reduzem a sua exposição à dívida estado-unidense.

Um outro fator está relacionado com a desindustrialização iniciada nos anos 1980, processo que esvaziou comunidades inteiras, provocando a degradação das condições de vida e o colapso da chamada classe média. A economia produtiva foi substituída por um modelo centrado nos serviços, finanças e tecnologia, altamente lucrativo para poucos e estruturalmente desigual. Os resultados desta opção são bem visíveis: precariedade, pobreza urbana, desigualdade crescente e um mal-estar social que alimenta fenómenos políticos populistas e disruptivos.

Numa tentativa pouco eficaz para travar os efeitos da desindustrialização, os EUA optaram por políticas protecionistas, as famosas taxas sobre as importações, tentando assim um regresso à economia produtiva, mas os resultados têm sido escassos e o regresso à industrialização demora o seu tempo, o capital prefere (quer) lucros fáceis e rápidos, por outro lado os efeitos mais visíveis da política protecionista são: o aumento dos preços, o aumento da pobreza e da exclusão social e uma disfunção nas cadeias de abastecimento.

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A desdolarização é já um dado adquirido, e este deveria ser um dos fatores mais preocupante para os EUA. A celebração de acordos comerciais em moedas próprias, no âmbito do BRICS alargado, mas não só. A moeda estado-unidense está a perder o seu estatuto de referência e à medida em que esse fenómeno crescer os EUA irão enfrentar sérias dificuldades para suportar o seu défice externo e o nível de vida assente no consumo financiado pelo endividamento.

Por estas longitudes e latitudes, isto é, na outra margem do Atlântico a União Europeia mostra-se incapaz de definir um rumo próprio. A resposta à guerra na Ucrânia foi marcada por um alinhamento cego com Washington. A rutura energética com a Rússia, compensada por importações de gás natural liquefeito, sobretudo dos EUA, fragilizou a economia europeia, aumentando os custos energéticos e comprometendo a sua competitividade industrial. A opção da UE pela continuidade do conflito russo-ucraniano ao invés de procurar soluções diplomáticas para a sua resolução tem sido, e continua a ser, um sorvedouro de recursos públicos. A economia da UE já debilitada, em grande medida pela questão russo-ucraniana e pelo efeito boomerang das sanções à Rússia, que o 18.º pacote vai agravar, desde logo, com a proibição da importação de fertilizantes russos, e a economia na UE vai-se afundando a um ritmo preocupante. Vejam-se também os cortes no apoio à agricultura para continuar a financiar a guerra na Ucrânia, bem assim como os cortes na coesão social.

A UE renunciou, na prática, a uma política externa autónoma. A dependência da NATO, cada vez mais orientada pelos interesses estado-unidenses, impede uma política externa europeia própria. A diplomacia perdeu voz, e a russofobia generalizada impede qualquer reconfiguração estratégica a leste. A UE, economicamente poderosa e aparentemente uma referência de liberdade e de paz, tornou-se um ator político secundário no mundo multipolar em formação.

O atual momento da política internacional é mais, muito mais, do que apenas uma crise económica ou geopolítica, estamos à beira do colapso da legitimidade do modelo ocidental e não será difícil prever que essa derrocada irá provocar uma grande instabilidade mundial de consequências, algumas delas, imprevisíveis. As promessas de progresso e estabilidade, que animaram a ordem europeísta pós-Segunda Guerra Mundial, esgotaram-se com o recrudescimento do liberalismo e subsequente rescrição da história. Os pactos sociais que sustentavam a coesão interna foram rompidos. E os povos, sentindo-se traídos, oscilam entre a apatia e a radicalização à direita.

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Entretanto, o Sul Global reorganiza-se. África, América Latina e Ásia procuram caminhos próprios, aprofundam alianças e desafiam a centralidade ocidental. A China afirma-se como uma potência reguladora. A Rússia continua a ter a importância que os seus recursos naturais lhe conferem, bem assim como o seu potencial bélico. Os BRICS testam novas formas de integração. E o mundo começa a ser redesenhado sem o protagonismo exclusivo de Washington, Bruxelas e Reino Unido.

O que está em causa não é apenas a perda de poder, mas a incapacidade de participar na construção de um novo mundo de respeito pela diversidade e de cooperação entre os povos. Os EUA persistem na lógica imperial, confiando na sua força militar e no dólar. A UE vacila entre a nostalgia do seu antigo papel colonial e imperial e no seguidismo cego dos interesses estado-unidenses.  Mas o tempo das hegemonias unipolares é já passado.

O processo de estupidificação das massas, deliberado e tolerado, tem sido reforçado por dois instrumentos complementares: a comunicação social mainstream e as chamadas redes sociais. A primeira, largamente capturada por interesses corporativos e políticos, abdicou do seu papel informativo e crítico para se tornar numa caixa de ressonância das agendas e pensamento dominantes. O jornalismo de investigação foi substituído por narrativas superficiais, que misturam informação e entretenimento (infotainment), e ainda com campanhas de manipulação emocional dirigidas às crenças e com fortes apelos ao sentimentalismo.

As redes sociais, por seu turno, que poderiam constituir-se como espaços de pluralismo e mobilização, tornaram-se num laboratório de vício, desinformação e polarização. A lógica algorítmica privilegia o escândalo e a reação impulsiva, promovendo o ruído em vez da reflexão. A política transformou-se em espetáculo e os cidadãos em consumidores fragmentados, atolados num fluxo constante de irrelevância, medo e distração. Neste cenário condicionado pelos algoritmos e pela decadência da comunicação social mainstream, torna-se mais difícil resistir, pensar criticamente e, sobretudo, mobilizar para alternativas políticas que, verdadeiramente, estão centradas na dignidade humana e na salvaguarda do planeta. Mas, também, é sabido que as lutas nunca foram fáceis, mas continua a existir quem esteja disposto a lutar.

As alterações na ordem política mundial, face aos indicadores conhecidos, são irreversíveis, porém, não se espere que um Mundo novo, mais justo e humano, nos caia no regaço. Nunca assim foi, a única coisa que cai do céu é a chuva tudo o resto é resultado da luta organizada dos povos, esses sim, os grandes motores das transformações sociais da história da humanidade.   

Ponta Delgada, 22 de julho de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 23 de julho de 2025

quarta-feira, 23 de julho de 2025

o Teatro na FESTA

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"O Avanteatro contará com uma programação diversa que trará à Festa do Avante! companhias mais experientes e companhias emergentes, profissionais do teatro de vários pontos do país e produções que dialogam com a actualidade a partir de abordagens criativas distintas e linguagens e temáticas variadas."

das dívidas

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Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.






(...) Os EUA continuam a afirmar-se como a maior potência militar e tecnológica do planeta, direi que tenho algumas dúvidas que ainda assim seja, pois, essa superioridade já não corresponde à sua realidade interna. A dívida pública ultrapassa os 34 biliões de dólares, quando acabar este texto já terá aumentado algumas dezenas de milhões. O défice é estrutural e o financiamento externo, sobretudo através da venda de títulos do Tesouro, começa a mostrar fragilidades, à medida que alguns países reduzem a sua exposição à dívida estado-unidense. (...)

quinta-feira, 17 de julho de 2025

a corrida da FESTA

"A corrida da Festa do Avante! Tem os seguintes objetivos:

Permitir através da prática desportiva oportunidades de convívio e confraternização, amizade e solidariedade perante as contingências dos resultados da competição desportiva.

Proporcionar situações para compreensão do fenómeno desportivo e para defesa dos direitos dos cidadãos à prática do desporto.

Defender os valores do desporto quer como fenómeno de integração, quaisquer que sejam as origens sociais ou convicções políticas ou religiosas dos participantes, quer como contributo para a melhoria das suas condições de vida.

Divulgar a prática do desporto e particularmente a corrida, como elemento essencial, para a formação física das crianças e dos jovens, numa perspetiva educativa e para a manutenção da saúde do normal equilíbrio psicológico dos participantes.

Integrar e valorizar uma proposta alargada de prática de desporto num programa vasto, rico e diversificado de um grande acontecimento cultural e político que é a Festa do Avante!."

domingo, 13 de julho de 2025

bom senso ou senso comum

foto de Paulo. R Cabral
Ao termo senso, podem ser atribuídos vários significados. O senso pode ser: capacidade de pensar, ou ainda, juízo claro, de entre outros. Ao vocábulo senso juntam-se, por vezes, outros qualificativos para exprimir ideias diferenciadas, mas que se confundem nas linguagens do quotidiano.

O senso pode ser comum, ou bom. O senso comum nem sempre é sinónimo de bom senso e os dicionários da língua portuguesa estabelecem as diferenças com rigor.

Bom senso - equilíbrio nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta; senso comum - conjunto de opiniões ou ideias que são geralmente aceites numa época e num local determinados; (in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

O bom senso implica, necessariamente, a reflexão, o pensamento e a capacidade de análise para tomar decisões. O senso comum exprime opiniões que, embora, aceites como verdades pela generalidade dos cidadãos, nem sempre, ou quase sempre, transmitem factos devidamente comprovados.

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Os ditos, ditados ou provérbios populares sendo do senso comum são expressões populares que sintetizam a sabedoria de gerações resultam da experiência acumulada pela população ao longo dos séculos, e estão ancorados na observação da natureza, do comportamento humano e das relações interpessoais. A maioria dos provérbios, sendo do senso comum, transmitem opinião fundamentada pela observação da realidade o que lhes confere indicações que podemos considerar de bom senso. Vejamos o seguinte dito popular: “mais vale prevenir do que remediar”. Este provérbio reflete um pensamento e ação de prevenção para evitar os efeitos e custos de uma ação de correção, por exemplo, os mecanismos passivos e ativos contra os perigos de uma eletrocussão ou mesmo de um incêndio provocado pelo desgaste ou mau funcionamento dos dispositivos elétricos, representando um custo acrescido estes serão sempre menores que os valores resultantes de um evento que poderá ter lugar por falta de prevenção. Neste caso é legítimo afirmar que o senso comum e o bom senso coincidem.

Outros ditados populares tendem a induzir inação como, por exemplo: “cada macaco no seu galho”. Ou seja, se o meu lugar é aquele não posso, ou não devo, procurar um galho que me não foi predestinado. Se o entendimento for este, e o senso comum assim o expressa, o resultado será a aceitação acrítica de que nada poderei fazer para mudar de galho o que inibe qualquer iniciativa individual ou coletiva de mudança transformadora, direi que, este dito se pode articular com um outro: “sempre assim foi e assim será”; este dito popular reforça a ideia de aceitação de algo que foi predestinado. Mas se há coisas que sempre assim foram e assim serão, muitas outras, por não obedecerem à ordem natural das coisas, podem ser alteradas e transformadas.

O senso comum aparenta ser inócuo e neutro, mas se atentarmos ao discurso ideológico dominante, que se afirma como despido de qualquer ideologia, constatamos que, tal como demonstrou o filósofo Antonio Gramsci, o senso comum tem um carácter ideológico. Segundo Gramsci o senso comum é um modelo de filosofia espontânea das massas, assente em fragmentos de religião, moral, experiência, mas, sobretudo, do pensamento veiculado pelo poder dominante. O senso comum aceita as desigualdades como algo natural, legitima as injustiças e reproduz ideias feitas. O senso comum parecendo, como já foi referido, neutro raramente o é.

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A sua eficácia reside no facto de parecer distanciar-se de qualquer ideologia. Expressões que ouvimos com frequência da boca de alguns protagonistas políticos, que têm vindo a registar um expressivo crescimento eleitoral, como por exemplo “os beneficiários do RSI são uns malandros e vivem à custa de quem trabalha”, ou ainda “os imigrantes estão a ocupar o que é nosso”, estas e outras expressões que não tendo nenhum fundamento pois, como sabemos existem muitos beneficiários do RSI que trabalham, mas o salário é tão baixo que o agregado familiar é apoiado com esta medida social, por outro lado, um dos principais alvos deste apoio são pensionistas e crianças, ou seja, a maioria dos beneficiários do RSI são os trabalhadores que empobrecem a trabalhar, os cidadãos idosos com uma longa vida de trabalho e, por outro lado as crianças que não podem, naturalmente, trabalhar. Quanto à população migrante é igualmente do domínio público que o saldo das contribuições para a segurança social é positivo, constituindo-se mesmo como determinante para a sua sustentabilidade, isto sem referir a importância demográfica que representam. Os imigrantes são tudo menos um perigo para a segurança pública, aliás como os relatórios o comprovam, bem como, se possuidores de direitos sociais e laborais, não representam nenhum tipo de competição no mercado de trabalho.

Os discursos assentes no senso comum alicerçam-se em crenças e emoções, ou seja, não têm uma base crítica e científica o que torna o discurso permeável em largos setores da sociedade pouco dada à desconstrução do discurso político sem conteúdo e cheio de lugares-comuns, por isso são tão eficientes na manipulação da opinião pública mergulhada num nevoeiro informacional que as redes sociais ampliam. Autores como Louis Althusser e Pierre Bourdieu também exploraram esta dimensão do poder simbólico e da interiorização de esquemas mentais que moldam a forma como vemos o mundo. O senso comum funciona como um espelho deformado: devolve-nos uma imagem da realidade já filtrada por interesses, preconceitos e hierarquias invisíveis. É uma pedagogia silenciosa da resignação.

Nos dias de hoje, este campo tem sido particularmente explorado pela extrema-direita, que soube apropriar-se do senso comum para lhe dar roupagens novas. Ao discurso simples, direto e “anti-intelectual” junta-se o apelo à emoção, ao medo e à animosidade. É a linguagem do “bom povo” contra “as elites”, do “realismo” contra a “ideologia”, da “ordem” contra o “caos”. Mas o que, por vezes, parece bom senso é, na verdade, uma forma insidiosa de capturar o senso comum para projetos políticos autoritários ao serviço do capital sem rosto nem pátria.

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Em Portugal, como noutros países europeus, assistimos à crescente instrumentalização de temas como a imigração, a segurança ou o “politicamente correto” por parte de forças políticas que se alimentam de simplificações e caricaturas. Afirmações como “os imigrantes vêm para viver à custa do Estado” ou “já não se pode dizer nada” instalam-se no senso comum, reforçando perceções de ameaça e exclusão. A repetição dessas ideias nos media, nas redes sociais e até em conversas informais torna-as quase inquestionáveis, mesmo quando carecem de base factual. Há nelas um verniz de “realismo” que mascara, na verdade, a fabricação do medo e dos rebanhos acríticos.

É neste contexto que a educação pública, a cultura e os media responsáveis assumem um papel decisivo. Promover o pensamento crítico não é um luxo pedagógico é, diria, um imperativo democrático. Ensinar a distinguir a opinião do facto, a argumentar com base em evidências e a desconfiar das verdades feitas é a melhor forma de combater a cristalização do senso comum. Do mesmo modo, a literatura, o teatro, o cinema ou a poesia, isto é, a cultura tem uma função que vai muito além do entretenimento: é um instrumento de libertação simbólica. A confusão entre senso comum e bom senso não é apenas uma questão semântica. É uma armadilha política. Num tempo em que crescem a desinformação, o populismo e o ódio como forma de mobilização, torna-se urgente resgatar o valor do pensamento crítico, da dúvida, da razão prática, ou melhor, do bom senso. 

O bom senso não grita, não polariza, não humilha. Num tempo em que alguns se erguem em nome do “povo” para dizer barbaridades com ar de verdades absolutas, importa recuperar o bom senso como prática cívica e não como um eco acrítico do que se diz ou do que se acha. Porque, no fundo, não é o que “toda a gente diz” ou o que se “acha” que nos deve guiar, mas sim o que conseguimos pensar por nós mesmos, com base em factos, conhecimento e cultura.

Ponta Delgada, 8 de julho de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 10 de julho de 2025

terça-feira, 8 de julho de 2025

do senso

imagem retirada da internet



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Os discursos assentes no senso comum alicerçam-se em crenças e emoções, ou seja, não têm uma base crítica e científica o que torna o discurso permeável em largos setores da sociedade pouco dada à desconstrução do discurso político sem conteúdo e cheio de lugares-comuns, por isso são tão eficientes na manipulação da opinião pública mergulhada num nevoeiro informacional que as redes sociais ampliam. Autores como Louis Althusser e Pierre Bourdieu também exploraram esta dimensão do poder simbólico e da interiorização de esquemas mentais que moldam a forma como vemos o mundo. O senso comum funciona como um espelho deformado: devolve-nos uma imagem da realidade já filtrada por interesses, preconceitos e hierarquias invisíveis. É uma pedagogia silenciosa da resignação. (...)

domingo, 6 de julho de 2025

Álamo Oliveira - 1945-2025

Álamo Oliveira partiu hoje para uma viagem que todos temos anunciada.
O poeta, dramaturgo e ficcionista disse num contexto de celebração:
(…) gostaria mais de ser lido que lembrado (…)

O Álamo Oliveira será sempre lembrado enquanto for lido. Digo eu, que de vontades e letras pouco entendo.



olhares

toda a manhã a vida esteve cinzenta 
com a alma molhada e uma tristeza 
duvidosa escorrendo do olhar.
a tarde chegou de cabelos escorridos prometendo 
deitar-se na cama da preguiça 
sem vontade de se despir nem de tirar 
os sapatos da angústia.
a vida sabe que não pode abrir a porta 
e fugir para o outro lado do etéreo.
pobres e ricos caem como soldados vagabundos 
na vala da vida.    o catrapiler dos sonhos 
cobrirá     com pesadelos     o mundo inteiro.
por isso    vai amanhecer outra vez 
com a vida cinzenta    a alma molhada 
e um olhar triste caindo como 
as telhas da casa    partindo-se.


Álamo Oliveira

quinta-feira, 3 de julho de 2025

mulheres Cherokee - a abrir julho

mulher Cherokee - imagem retirada da internet
As mulheres Cherokee foram sujeitas, durante o processo de colonização e deslocação forçada (Trail of Tears) à fome, ao frio e à perda, mas foram sustento da sua comunidade e preservaram tradições que o forçado exílio não calou.

Obrigadas a caminhar milhares de quilómetros rumo ao desconhecido, as mulheres Cherokee mantiveram o seu povo unido. Cuidaram dos filhos, enterraram os mortos e transmitiram, mesmo na dor, a memória e a força da sua ancestralidade.

domingo, 22 de junho de 2025

mapas de sangue

composição de João Pires com imagens retiradas da internet
analogia do terror


a terra vermelha 
de Oklahoma
o chão rasgado da Palestina 
manchados de sangue
molhados com lágrimas
dos povos colonizados

Trail of Tears 
Nakba
nomes diferentes 
a mesma fome
o mesmo luto
o mesmo silêncio
culturas apagadas
a mesma indiferença

Nakba
Trail of tears
marchas forçadas
pelo colonialismo
destinos forjados
traçados em
mapas de sangue

Trail of tears
Nakba
a mesma fome
o mesmo olhar vazio
a mesma violência
a repetir-se
como uma punição
por existir
apenas por existir

e a humanidade!?
onde foi que se perdeu?
talvez na poeira do caminho
com os corpos
que ninguém reclama
por não haver quem

sábado, 21 de junho de 2025

morada de infância

 
foto de Aníbal C. Pires
memórias de S. Vicente da Beira 


da infância na beira serra

por aqui
na sombra protetora da Gardunha
com tempo
brinquei com o tempo
medido nos ponteiros sonolentos
do relógio do campanário

por aqui
aprendi as primeiras letras
como quem descobre velhos segredos
decifrados nas ardósias 
e outros sedimentos do tempo

por aqui
aprendi a contar e a decifrar 
os sinais do tempo
observei a azáfama das formigas
e o voo frutífero das abelhas

por aqui
perdi medos
gritei aos quatro ventos
soube calar e ouvir
o peso dos silêncios

por aqui
fui criança e aprendi a olhar
a vastidão do Mundo
para além dos altos cumes
    rasguei horizontes

por aqui
ganhei amigos
dispersos pelos trilhos da vida
mas presentes na memória

por aqui
foi morada de infância
em recantos graníticos e pinheirais
em ruas ladeadas de muros
onde crescia musgo e esperança

as veredas do passado
permanecem na lembrança
como ecos de um lugar da infância
distante no tempo e no espaço
mas sempre presente

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, junho de 2025

sábado, 14 de junho de 2025

aprender

Aníbal C. Pires - do arquivo pessoal
olhando o Mundo


não aprendi nos quadros
nem nos manuais gastos 
por verdades prontas a servir

aprendi no chão que piso
nos passos que me levam pelo Mundo
que a cartografia coloca à margem
e a história cobre de brumas

a vida não tem currículo fixo
tem perguntas sem resposta
tem tardes de vento e silêncio
tem o rumor da água
tem outras verdades

a escola que me molda
é feita de um tempo lento
de escutar o voo dos pássaros
de sentir o coração das pedras
que guardam memórias

aprendi com o peito aberto
e a ver para lá do olhar
aprendo com o mundo
sento-me nas margens 
ouço os silêncios
aprendo

educar não é repetir
é questionar
é acordar
é saber que a cidadania
não se escreve a giz
nem se digita
a cidadania vive-se
nos caminhos da vida 
na luta 
no sonho que é esperança

Aníbal C. Pires, junho de 2025

quinta-feira, 12 de junho de 2025

da memória do tempo

foto Aníbal C. Pires
geografias da pele


os rostos contam histórias

e gosto

das histórias que os rostos me contam
são imagens 
traçadas a carvão
na memória do tempo

olhos que guardam histórias
carregam a poeira dos caminhos
e brilham como o lume
que aquece
ilumina 
e aconchega

não imploro por nomes
nem datas
nem lugares
só quero as memórias
e as histórias
que os rostos me contam

leio as geografias da pele
como um livro
feito de histórias
silenciadas

são narrativas
que contam sem dizer
a história dos rostos
que só o silêncio
sabe ler

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 12 de junho de 2025

domingo, 1 de junho de 2025

mulheres da Palestina - a abrir junho

imagem retirada da internet
Podia trazer uma outra imagem de mulheres palestinianas para marcar o início do mês de junho. Imagens de morte e terror, optei por uma imagem de heroísmo, luta e resistência.

São mulheres palestinianas, são mulheres que lutam e resistem. São lindas como todas as mulheres que lutam.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

O Mundo mudou, mas o Ocidente continua em negação.

imagem retirada da internet
    Os resultados eleitorais foram dissecados até ao tutano, ainda que, nem sempre ou quase sempre, o que lhe está verdadeiramente na origem não tenha sido tomado em devida conta. Nada tenho a acrescentar ao que, desde há muito, vou deixando grafado nestes e outros textos sobre as causas que podem justificar estes resultados eleitorais e, este não é o momento, de tentar desconstruir as narrativas dominantes.

    A proximidade do ato eleitoral, a euforia de alguns, a demissão de outros e a afirmação, institucional e na rua, de quem não se verga, nem desiste, mas resiste, dizem bem da forma como os diferentes partidos políticos se posicionam, ao que veem e ao que estão. E julgo que, para já, é suficiente, pois, qualquer tentativa de expressar opinião sobre o assunto seria completamente improdutiva, não passou tempo suficiente, a poeira ainda não assentou e, como tal, a visibilidade está aquém do que é desejável para tecer considerações sobre as contradições em que este novo quadro parlamentar se irá, com naturalidade, enredar. 

    Resta a firmeza da luta a que os resistentes nos habituaram ao longo dos seus 104 anos de existência em unidade com os amantes da liberdade, da democracia e de um Estado que continue a garantir os direitos sociais, laborais, culturais e políticos, tendo como referencial a Constituição da República Portuguesa que, apesar das sete revisões a que foi sujeito o texto fundador do Portugal de Abril e de todas as tentativas para lhe retirar o essencial das conquistas da Revolução, ainda mantém a matriz que a afirmou como uma das mais progressistas da Europa.

    Como já se percebeu não é sobre os resultados eleitorais e do que que se lhe segue que versa o texto que hoje partilho com os leitores.

    O mundo gira, e gira cada vez mais rápido. E o que está a acontecer fora das nossas fronteiras, muitas vezes ignorado ou manipulado, terá um impacto muito mais profundo na vida dos povos do que os acordos parlamentares internos. Portugal à semelhança do chamado Ocidente parece descurar todas as alterações que estão a acontecer um pouco por todo o Mundo. 

imagem retirada da internet

    O Mundo está a mudar, mas o Ocidente continua a fingir, ou não quer perceber que o Eurocentrismo e o Atlantismo estão à beira de perder protagonismo e os privilégios que lhe advinham de um modelo herdado do colonialismo e que os instrumentos financeiros, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional e, bélicos, a OTAN, foram perpetuando.


    Vivemos tempos de viragem histórica. O mundo está a mudar diante dos nossos olhos, os centros de decisão estão a deslocar-se e os dirigentes políticos ocidentais atuam como se nada tivesse sido alterado e parecem continuar a viver no passado glorioso que já não existe. A arrogância geopolítica, a fé cega no dólar, a moral seletiva e a cegueira estratégica estão a deixar os dirigentes europeus e estado-unidenses à margem de uma nova ordem internacional em formação. Se os dirigentes políticos continuarem a ignorar as profundas alterações que se têm verificado no xadrez geopolítico mundial e a não participarem na mudança avizinham-se tempos difíceis para os povos do chamado ocidente ou, se preferirem, do Norte Global, embora existam diferenças concetuais entre um e outro, mas que neste caso, retirando as questões culturais e históricas, se pode considerar uma e a mesma coisa, pois, os países que não pertencem ao ocidente, mas fazem parte do chamado Norte Global, estão politicamente alinhados a ocidente. 

imagem retirada da internet

    Vejamos então algumas transformações e podemos começar pelos BRICS. Os BRICS alargaram-se e já deixaram de ser de ser apenas uma sigla económica para se tornar um projeto político em expansão, representa hoje uma alternativa real ao modelo imposto pelo Ocidente desde o fim da chamada Guerra Fria. A sua recente e continuada expansão, os movimentos coordenados para reduzir a dependência do dólar, a chamada desdolarização, e os acordos comerciais bilaterais em moedas locais, mostram que há vida (e poder) para lá de Washington e de Bruxelas. A multipolaridade deixou de ser um cenário hipotético e já está em construção, diria mais, o processo está em movimento acelerado.

    Enquanto isso, a União Europeia continua a agir como um apêndice político dos Estados Unidos. No caso do conflito na Ucrânia, os líderes europeus alinharam cegamente com a estratégia da OTAN, mesmo depois de se tornarem óbvios os custos económicos, sociais e energéticos dessa decisão. A diplomacia foi substituída por slogans, e o realismo geopolítico, pelo pensamento ilusório (wishful thinking). Veja-se por exemplo: a Rússia não foi derrotada, (como se desejava) a Ucrânia está devastada (como previa quem racionaliza o conflito) e a Europa mais dependente e dividida do que nunca, como era óbvio que viesse a acontecer face ao efeito boomerang das sanções impostas à Rússia.

imagem retirada da internet - Ibrahim Traoré,
Presidente do Burquina Faso

    Fora da bolha euro-atlântica, o mundo já começou a reagir. Em África, especialmente no Sahel e entre os países da CEDEAO, assistimos a um levantamento contra o neocolonialismo e as elites locais aliadas às antigas potências coloniais. Em alguns casos foram Golpes de Estado? Talvez. Mas também sinais claros de que uma nova geração rejeita o papel de marioneta num teatro montado em Paris, Londres ou Washington.


    Na América Latina, o mapa político mudou. México, Colômbia, Venezuela e Brasil estão a afirmar soberania e a questionar décadas de submissão ao Fundo Monetário Internacional e aos interesses estado-unidenses, não são mais o quintal do seu vizinho do Norte. O Sul Global está a criar as suas próprias alianças, os seus próprios fóruns, a sua própria linguagem política, e veja-se o despropósito, não está à espera da aprovação de ninguém.

imagem retirada da internet
    Mas talvez o exemplo mais gritante da falência moral do Ocidente seja a Palestina. O que está a acontecer em Gaza é um genocídio transmitido em direto. E mesmo assim, os líderes ocidentais hesitam, relativizam, justificam. O direito internacional, que durante décadas foi brandido como argumento de superioridade civilizacional, tornou-se irrelevante quando os aliados do Ocidente o pisam com as botas cardadas do sionismo. A hipocrisia é total. A humanidade, ausentou-se e os direitos humanos suspenderam-se.

    E no meio de tudo isto, a China observa, investe, negocia, constrói infraestruturas, assegura matérias-primas e alarga a sua esfera de influência sem precisar de usar bombas. Pequim não precisa de ser perfeita, basta-lhe ser consistente. E está a conseguir impor-se, pacificamente, como uma potência económica e tecnológica, mas também militar para afastar qualquer devaneio na agonia da unipolaridade.

    O mundo unipolar, centrado nos Estados Unidos, está a morrer. Diria que está no estertor final, ou já só lhe faltará a certidão de óbito. Os herdeiros desse mundo, os dirigentes ocidentais, recusam-se a aceitar o óbvio e o óbito e continuam a discursar como se tudo fosse reversível, como se bastasse manter as sanções, repetir mantras democráticos e financiar mais umas guerras por procuração de que a história está repleta, mas não precisamos recuar no tempo para encontrar exemplos, acontece na Ucrânia e, mais recentemente na Síria.

imagem retirada da internet

    O problema é que o mundo já não está a ouvir a Kaja Kallas, a Ursula von der Leyen, o António Costa, ou a Administração estado-unidense e muito menos os analistas que, por cá, repetem as palavras dos grandes centros de poder com atraso e a convicção que lhes é paga. O Sul Global está a libertar-se do jugo neocolonial e a afirmar-se sem tutelas. Não perceber, ou pelo menos, não prestar atenção às alterações na geopolítica mundial e, sobretudo, não participar e aceitar o fim da unilateralidade e participar no processo de construção de uma nova ordem mundial ancorada na multipolaridade é um erro. E os erros, como sabemos, costumam pagar-se bem caros.

Ponta Delgada, 27 de maio de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 28 de maio de 2025

terça-feira, 27 de maio de 2025

o mundo em mudança e... a Palestina

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Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.




(...) Fora da bolha euro-atlântica, o mundo já começou a reagir. Em África, especialmente no Sahel e entre os países da CEDEAO, assistimos a um levantamento contra o neocolonialismo e as elites locais aliadas às antigas potências coloniais. Em alguns casos foram Golpes de Estado? Talvez. Mas também sinais claros de que uma nova geração rejeita o papel de marioneta num teatro montado em Paris, Londres ou Washington.

Na América Latina, o mapa político mudou. México, Colômbia, Venezuela e Brasil estão a afirmar soberania e a questionar décadas de submissão ao Fundo Monetário Internacional e aos interesses estado-unidenses, não são mais o quintal do seu vizinho do Norte. O Sul Global está a criar as suas próprias alianças, os seus próprios fóruns, a sua própria linguagem política, e veja-se o despropósito, não está à espera da aprovação de ninguém.

Mas talvez o exemplo mais gritante da falência moral do Ocidente seja a Palestina. O que está a acontecer em Gaza é um genocídio transmitido em direto. E mesmo assim, os líderes ocidentais hesitam, relativizam, justificam. O direito internacional, que durante décadas foi brandido como argumento de superioridade civilizacional, tornou-se irrelevante quando os aliados do Ocidente o pisam com as botas cardadas do sionismo. A hipocrisia é total. A humanidade, ausentou-se e os direitos humanos suspenderam-se. (...)


domingo, 18 de maio de 2025

Nakba - a catástrofe.

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No discurso dominante ocidental, o conflito na Palestina parece ter nascido a 7 de outubro de 2023. Desde essa data, os noticiários e o mainstream passaram a repetir análises simplificadas e simplistas, retratando Israel como uma democracia alvo de ataques por forças bárbaras. Muitas imagens foram instrumentalizadas e algumas, no mínimo, manipuladas para induzir repulsa seletiva, desumanizar os palestinianos, legitimar uma campanha militar genocida em Gaza e um silêncio cúmplice, fez-se ouvir no Mundo, perante os crimes de guerra, perante a barbárie. Mas quem olha para o mundo para além da espuma mediática reconhece outra realidade. A narrativa dominante é falsa e serve para legitimar um processo colonial e genocida promovido pelo sionismo. A génese deste conflito não começou em 2023, nem em 2000, nem em 1967. O conflito não começou com o Hamas. O conflito começou com a Nakba, a Catástrofe palestiniana, e a origem deste projeto colonial é muito anterior a 1948, remonta ao fim do século XIX.

A Palestina era, no final do século XIX, uma terra habitada maioritariamente por árabes palestinianos (muçulmanos, cristãos e judeus). Era parte do Império Otomano e, apesar das dificuldades inerentes à época e ao contexto político e económico, vivia-se ali com relativa estabilidade e harmonia inter-religiosa. Essa realidade começou a mudar com o surgimento do sionismo político, um movimento europeu que defendia a criação de um Estado judeu (leia-se: estado sionista, pois existem diferenças substantivas, diria mesmo incompatíveis, entre a religião judaica e a ideologia sionista).

No Congresso Sionista Mundial de 1897, em Basileia, Theodor Herzl lançou as bases desse projeto. A ideia era simples, mas a sua concretização brutal: resolver a questão judaica na Europa (perseguições, pogroms, discriminação) através da fundação de um Estado exclusivamente judeu, leia-se sionista. A Palestina, de entre outros que foram equacionados, foi o território escolhido, sem ter em devida conta que ali vivia um povo pacífico e com uma cultura secular. 

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Esta proposta foi ganhando apoio nas potências europeias, culminando na Declaração Balfour de 1917, quando o Império Britânico se comprometeu expressamente a apoiar a criação de um lar nacional para o povo judeu na Palestina. Tudo isto à margem do povo palestiniano, o destino daquele território e daquele povo foi decidido em Londres. A Palestina transformou-se, a partir daí, num território arquitetado para ser colonizado, com suporte político e militar de uma potência imperial, com os mesmos contornos e os mesmos efeitos de outros projetos coloniais. Este projeto colonial vem embrulhado numa mal disfarçada redenção europeia face às seculares perseguições aos judeus e ao Holocausto 

Durante o Mandato Britânico da Palestina (1920–1948), dezenas de milhares de judeus europeus migraram para a Palestina, na sua maioria financiados por organizações sionistas. Muitas dessas migrações foram pacíficas, mas outras envolveram compra forçada de terras, expropriação de camponeses e construção de enclaves fechados. As tensões foram-se avolumando. A população árabe resistia, organizava greves, revoltas e boicotes, mas era sufocada e reprimida com violência.

Foi neste contexto que ocorreu um episódio pouco conhecido e debatido, vá-se lá saber porquê, mas revelador da natureza sionista e do seu projeto colonial. Refiro-me ao Acordo de Haavara, assinado em 1933 entre o regime nazi alemão e alguns líderes sionistas. O objetivo era facilitar a emigração de judeus alemães para a Palestina, transferindo parte dos seus bens, o propósito alemão era contornar o boicote económico contra o nazismo, embora este boicote, ou sanções, tivesse sido incumprido por muitas empresas europeias e estado-unidenses. O Acordo de Haavara é sintomático da estratégia sionista, ou seja, longe de ser apenas uma resposta à perseguição do povo judeu, a migração de judeus para a Palestina era parte de um projeto sem valores nem princípios, pois, dispunha-se a fazer alianças moralmente questionáveis para alcançar o seu objetivo colonial.

Com o fim do mandato britânico e da Resolução 181/1947 das Nações Unidas, que criou dois estados, o movimento sionista, em 1948, deu corpo à criação do Estado de Israel (sionista), com a oposição dos países árabes. O nascimento desse estado aconteceu com a destruição de um território, de uma cultura e de uma sociedade onde muçulmanos, cristão e judeus tinham vivido, até então, em harmonia. Mais de 700 mil palestinianos foram expulsos, centenas de aldeias foram destruídas e apagadas do mapa, e massacres como o de Deir Yassin deram início ao regime de apartheid e do genocídio do povo palestiniano. Os bárbaros acontecimentos de 1948 ficaram conhecidos como Nakba, a Catástrofe. Que os palestinianos recordam e assinalam no dia 15 de maio.

Israel não nasceu num vazio. Nasceu sobre as ruínas de outra sociedade. Os refugiados palestinianos foram impedidos de regressar às suas casas, contra todas as resoluções das Nações Unidas, configurando um crime internacional. A sua terra, as suas casas, os seus campos foram apropriados pelo novo Estado, que se autodefiniu como judeu, excluindo assim os nativos não judeus, ou seja, a maioria da população antes de 1948.

No seu início o movimento sionista era um movimento político laico, mas rapidamente incorporou a religião como legitimador do projeto colonial. A ideia de que Deus prometeu esta terra ao povo judeu foi, e tem sido, usada para justificar a expulsão de palestinianos. Os colonos armados na Cisjordânia, continuam a usar essa lógica messiânica para atacar, queimar, desalojar e matar palestinianos, com o apoio e a complacência do exército sionista.

Mas não são apenas os sionistas judeus a alimentar essa ideia. O sionismo cristão, especialmente no mundo evangélico dos EUA, é uma força determinante no apoio incondicional ao estado sionista de Israel. Ancorados em interpretações bíblicas apocalípticas, os sionistas cristãos, acreditam que o regresso dos judeus à Terra Santa é uma condição essencial para o retorno de Cristo à Terra. Os sionistas cristãos contribuem para o financiamento militar, influenciam decisões políticas, promovem vetos diplomáticos e promovem o silêncio cúmplice dos crimes de guerra e de lesa humanidade perpetrados pelo estado sionista. 

Chamar conflito ao que se passa na Palestina é, por si só, uma falsificação. Não se trata de dois lados iguais em guerra. Trata-se de um povo colonizado e ocupado, e de um Estado que exerce dominação militar, territorial e legal sobre milhões de pessoas. Israel controla fronteiras, água, ar, eletricidade, deslocações, nascimentos, agricultura, comércio. Implementou um regime de apartheid denunciado por diferentes organizações internacionais e por alguns Estados.

A Nakba não foi um evento do passado. A Nakba é um processo em curso. A cada demolição de casa em Jerusalém Oriental, a cada colono que se apropria de terras na Cisjordânia, a cada veto dos EUA no Conselho de Segurança, a cada bomba em Gaza, a cada veto ao retorno dos refugiados, a cada criança palestiniana morta, a cada oliveira arrancada, é a Nakba a perpetuar-se com o silêncio cúmplice do Mundo.

Ignorar a história e reduzir a atual situação que se verifica em Gaza e nos territórios da Palestina ocupada a um evento do calendário recente é aceitar a opressão, o apartheid, o colonialismo e o genocídio, é aceitar a desumanização de um povo, é ser cúmplice do colonialismo, do apartheid e do genocídio. Datar o 7 de outubro de 2023 como o início do conflito é construir uma narrativa que mais não serve do que apagar décadas de colonização e de barbárie. A memória da Nakba não é apenas uma questão histórica, a Nakba é do presente e trazê-la para a discussão pública é lutar por justiça e pela humanidade. E a justiça exige que a verdade histórica seja reposta: a violência teve o seu início muito antes de 7 de outubro, a violência começou com a colonização da Palestina.

Ponta Delgada, 13 de maio de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 14 de maio de 2025

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Pepe Mujica - 1935/2025

Imagem retirada da internet

José Alberto Mujica Cordano
, popularmente conhecido por Pepe Mujica partiu hoje para a última viajem, e o Mundo ficou mais pobre.

Sobre este Homem singular já tudo terá sido dito e são conhecidos os seus pensamentos e ensinamentos. Nada tenho a acrescentar deixo, porém, uma sugestão cinéfila: “A Noite de 12 Anos”. Ver este filme é, não só, perceber a fibra de que são feitos alguns Homens, mas também um tributo a Pepe Mujica.

Até sempre Pepe!


terça-feira, 13 de maio de 2025

não é de agora

imagem retirada da internet


Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.




(...) Durante o Mandato Britânico da Palestina (1920–1948), dezenas de milhares de judeus europeus migraram para a Palestina, na sua maioria financiados por organizações sionistas. Muitas dessas migrações foram pacíficas, mas outras envolveram compra forçada de terras, expropriação de camponeses e construção de enclaves fechados. As tensões foram-se avolumando. A população árabe resistia, organizava greves, revoltas e boicotes, mas era sufocada e reprimida com violência.

Foi neste contexto que ocorreu um episódio pouco conhecido e debatido, vá-se lá saber porquê, mas revelador da natureza sionista e do seu projeto colonial. Refiro-me ao Acordo de Haavara, assinado em 1933 entre o regime nazi alemão e alguns líderes sionistas. O objetivo era facilitar a emigração de judeus alemães para a Palestina, transferindo parte dos seus bens, o propósito alemão era contornar o boicote económico contra o nazismo, embora este boicote, ou sanções, tivesse sido incumprido por muitas empresas europeias e estado-unidenses. O Acordo de Haavara é sintomático da estratégia sionista, ou seja, longe de ser apenas uma resposta à perseguição do povo judeu, a migração de judeus para a Palestina era parte de um projeto sem valores nem princípios, pois, dispunha-se a fazer alianças moralmente questionáveis para alcançar o seu objetivo colonial. (...)


“ENTRE PAUSAS – Crónicas do Dário Insular (2022-2024)”

Não sei se será o último, mas é o mais recente e já se encontra disponível, na Livraria Letras Lavadas, para quem o desejar adquirir.

Apenas três apontamentos extraídos da nota introdutória que abre o livro.


(…) A edição deste livro não era uma prioridade. Outros livros de crónicas, contos e poesia já estavam – e estão – em preparação. No entanto, o convite, que muito me honrou, e a oportunidade de integrar a coleção da Letras Lavadas, coordenada por Vamberto Freitas e com capa(s) de Urbano, foram razões suficientes para dar primazia a este trabalho. (…)


(…) Não passou tempo suficiente para que alguns textos, que abordam temas e acontecimentos datados, perdessem interesse, ou se verificassem alterações que colocassem em causa a oportunidade da sua publicação. (…)


(…) Este livro reúne as crónicas publicadas no Diário Insular entre janeiro de 2022 e dezembro de 2024. Embora tenham passado por uma cuidada revisão, as alterações não mudaram a essência nem o propósito original de cada texto. Estão aqui reunidas, por ordem cronológica, todas as crónicas publicadas no intervalo de tempo referido, o que significa que não houve seleção de textos, (…)


sexta-feira, 9 de maio de 2025

pelo 80.º aniversário do Dia da Vitória

“Todo o ser humano que ama a liberdade deve ao Exército Vermelho mais do que conseguirá pagar em uma vida”

Ernest Hemingway




O Exército Vermelho, oficialmente designado por: “Exército Vermelho dos Operários e dos Camponeses.

O Exército Vermelho" lutou contra 200 divisões nazis. Para se ter ideia da magnitude do conflito e do papel do Exército Vermelho, importa saber que, os Estados Unidos e o Reino Unido enfrentaram 10 divisões nazis.

A União Soviética foi o país que mais contribuiu para a derrota do nazismo, tendo o maior contingente de combatentes (2,6 vezes mais do que todos os outros aliados somados). A União Soviética foi o país que mais sofreu baixas: cerca de 27 milhões de soviéticos foram mortos durante a guerra, o equivalente a quase 14% da população do país.

A Segunda Guerra Mundial recebeu, na União Soviética, o nome de “Grande Guerra Patriótica”, porque afetou toda a população do país. Todas as famílias soviéticas perderam alguém ou teve familiares feridos ou desaparecidos.

A narrativa ocidental tem vindo, desde há muito, a menorizar o papel da União Soviética na derrota do nazismo. Nada que não tivesse sido previsto pelo Marechal Georgy Zhukov que afirmou:  “Libertamos a Europa do fascismo, mas eles nunca nos perdoarão por isso”.

Foi perante o Marechal Zhukov, às 0h43 (horário de Moscovo) do dia 9 de Maio de 1945 que General Wilhelm Keitel, em representação da Alemanha, assinou a rendição incondicional do exército nazi perante o Exército Vermelho, representado pelo Marechal Georgy Zhukov, pondo fim assim à Segunda Guerra Mundial. 

Há uma tentativa de reescrição da história, mas factos são factos, e por mais que a propaganda, emanada dos centros de poder herdeiros do nazismo, tente não vai conseguir apagá-los.

Viva o 80.º aniversário da vitória sobre o nazifascismo!

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Maria da Conceição Matos - a abrir Maio

Hoje celebra-se, em luta, o Dia Internacional dos Trabalhadores.

O “momentos” junta-se a esta celebração e luta com uma daquelas mulheres lindas, porque lindas são as mulheres que lutam.

A Maria da Conceição Matos é uma dessas mulheres lindas.

Os visitantes do “momentos” podem conhecer melhor a Conceição Matos clicando aqui


quarta-feira, 30 de abril de 2025

Privatização da ANA: o assalto aos aeroportos

    As edições “Avante” publicaram em livro o “Dossier Privatização da ANA – o assalto aos aeroportos”. Este livro é um trabalho estruturado e ancorado em factos, ou seja, sustenta as suas teses numa sólida e incontestável base documental e todos os dados nele contido são conferíveis.

    O propósito deste dossier é demonstrar que a privatização da ANA – Aeroportos de Portugal (ANA) foi prejudicial para o interesse público nacional, e todo o procedimento foi conduzido de forma opaca, com favorecimentos, omissões e manipulação do processo de concessão da exploração da ANA. Trata-se, pois, da denúncia política e económica, e, da exposição dos prejuízos que este processo acarretou para o interesse público nacional.

    A narrativa e a cronologia dos acontecimentos são rigorosas, mas simples e entendíveis por não especialistas, e mostra passo a passo todo o caminho trilhado, primeiro pelo PS, depois em ritmo mais acelerado pelo PSD e o CDS com a pressão e à sombra da troika, denuncia as alteração de última hora, para beneficiar a compradora e a análise económica demonstra, com clareza, como o escandaloso lucro da Vinci (empresa a quem foi entregue a concessão), resultou num obsceno prejuízo para o Estado português, em relação ao valor pago pela concessão, isto para além da passagem de um importante setor estratégico do domínio público para o domínio privado.

    Se é verdade que esta narrativa de denúncia que visa a responsabilização dos autores deste pode ser caraterizada pela carga ideológica, não é menos rigoroso que foram as opções ideológicas neoliberais que estiveram na base do processo de concessão da ANA e, como tal, a argumentação não poderia deixar de ser uma afirmação ideológica de defesa do setor público nacional, em particular de empresas estratégicas para a economia e soberania nacionais.

foto de Aníbal C. Pires

Um outro aspeto de que este estudo poderá vir a ser criticado relaciona-se com a ausência de uma enumeração de aspetos positivos desta transferência da ANA da esfera pública para a esfera privada. Não existe, ao longo do estudo, uma lista de vantagens ou benefícios por elas serem inexistentes, o que se verificou foi um aumento da exploração laboral e um aumento das taxas aeroportuárias.

Este estudo é importante pois, presta um serviço público e político ao registar, analisar e denunciar um processo que foi, de facto, conduzido de forma profundamente lesiva para o interesse nacional.

    A privatização da ANA — Aeroportos de Portugal foi um processo, à semelhança de outros, prejudicial para o interesse nacional. Mais do que um simples negócio de venda de ativos públicos, o que seria sempre questionável face à importância estratégica das infraestruturas aeroportuárias, representou a entrega, a preço de saldo, de uma empresa que pelas suas caraterísticas, objeto social e empresarial, é vital para o desenvolvimento do país e para a sua coesão territorial. Dos nove aeroportos da Região Autónoma dos Açores, quatro são da ANA (flores, Faial, S. Miguel e Santa Maria), o que para o povo açoriano não deixa de ser um fator que deverá ser tomado em conta na luta pela reversão da privatização.

    O Estado, ao invés de reforçar a sua capacidade de planificar e investir num setor fundamental, hipotecou o futuro dos seus aeroportos em troca de receitas imediatas — receitas que, como demonstra a auditoria do Tribunal de Contas, não compensam os prejuízos, para as finanças públicas. 

    O caso da privatização da ANA insere-se numa lógica mais vasta de entrega de setores estratégicos ao mercado, cujas consequências vão muito além das infraestruturas aeroportuárias. O apagão de 28 de abril é um exemplo alarmante das fragilidades criadas pela desregulação e pela perda de controlo público sobre setores estratégicos como seja o da energia.

    O apagão que se verificou no passado dia 28 de abril é uma prova indiscutível de que setores como o da energia não são compagináveis com o mercado, os interesse e a gestão privada. A ligação à rede elétrica europeia e a dependência de terceiros, quando o país tem capacidade instalada para garantir a soberania na produção de energia elétrica é incompreensível e deixa a descoberto os erros da privatização dos setores estratégicos como sejam, por exemplo os transportes aéreos, rodoviários, ferroviários e marítimos, ou ainda, sem que aqui se esgotem os exemplos, a distribuição postal, isto é, os CTT. Privatizações que importa impedir (TAP e SATA) ou reverter como seja a própria ANA e o já aludido serviço de distribuição postal.

foto de Aníbal C. Pires
    O processo de privatização da ANA, como nos é descrito neste livro, foi conduzido num ambiente de opacidade, com sucessivas alterações às regras iniciais, sempre para beneficiar o comprador privado, a multinacional Vinci. A promessa de um novo Aeroporto de Lisboa, essencial para o país, foi adiada indefinidamente, refém da lógica de maximização de lucros privados. Os aeroportos regionais foram sujeitos a desinvestimento. As taxas aeroportuárias aumentaram significativamente. E os trabalhadores viram os seus direitos comprimidos em nome da rentabilidade. Por outro lado, a privatização da ANA não satisfez alguns dos argumentos utilizados pelos defensores da passagem deste ativo estratégico para o domínio privado, ou seja, não reduziu a dívida pública, não melhorou o serviço, não democratizou a gestão — fez apenas o que se previa: transformou um bem público numa fonte de lucro astronómico para um grupo privado estrangeiro.

    A Auditoria do Tribunal de Contas é clara: “a privatização não salvaguardou o interesse público e enfraqueceu a soberania nacional." Os responsáveis políticos pelo processo de privatização e os seus aliados face à Auditoria do Tribunal de Contas e à consequente proposta de um Comissão Parlamenta de Inquérito, proposta pelo PCP, inviabilizaram a sua constituição e assim o apuramento e, por conseguinte, a imputação de responsabilidades por este negócio danoso para Portugal.

    O processo de privatização da ANA, como evidenciado no Dossier agora publicado, foi conduzido num ambiente de opacidade e favorecimento dos interesses privados, hipotecando um ativo estratégico vital para o país. Este processo não serviu o interesse público, mas também comprometeu a capacidade de planificação e desenvolvimento de um setor determinante para a coesão nacional e a soberania económica. O impacto foi duplamente nocivo: impediu a modernização da infraestrutura aeroportuária nacional e entregou, por preço de saldo, uma fonte de receita e de decisão estratégica a um grupo privado estrangeiro.

    A Auditoria do Tribunal de Contas confirma: a privatização da ANA fragilizou o Estado, prejudicou o interesse nacional e serviu apenas interesses financeiros. De tão claro e contundente os responsáveis pela privatização chegaram mesmo a colocar em causa o próprio Tribunal de Contas.

    Perante esta realidade, é necessário ir além da denúncia. Impõe-se defender a renacionalização da ANA como parte de um processo político de recuperação dos setores estratégicos para o domínio público, em nome da soberania, do desenvolvimento harmonioso e do futuro de Portugal. Este dossier prova que a privatização da ANA não foi apenas um erro: foi um atentado contra o interesse nacional, que exige memória, denúncia e reversão. Não se trata apenas de corrigir um erro passado, trata-se de afirmar um caminho de responsabilidade, de soberania e de compromisso com as gerações futuras. Não estamos condenados a ser reféns da lógica do lucro.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de abril de 2025