quarta-feira, 30 de abril de 2025

Privatização da ANA: o assalto aos aeroportos

    As edições “Avante” publicaram em livro o “Dossier Privatização da ANA – o assalto aos aeroportos”. Este livro é um trabalho estruturado e ancorado em factos, ou seja, sustenta as suas teses numa sólida e incontestável base documental e todos os dados nele contido são conferíveis.

    O propósito deste dossier é demonstrar que a privatização da ANA – Aeroportos de Portugal (ANA) foi prejudicial para o interesse público nacional, e todo o procedimento foi conduzido de forma opaca, com favorecimentos, omissões e manipulação do processo de concessão da exploração da ANA. Trata-se, pois, da denúncia política e económica, e, da exposição dos prejuízos que este processo acarretou para o interesse público nacional.

    A narrativa e a cronologia dos acontecimentos são rigorosas, mas simples e entendíveis por não especialistas, e mostra passo a passo todo o caminho trilhado, primeiro pelo PS, depois em ritmo mais acelerado pelo PSD e o CDS com a pressão e à sombra da troika, denuncia as alteração de última hora, para beneficiar a compradora e a análise económica demonstra, com clareza, como o escandaloso lucro da Vinci (empresa a quem foi entregue a concessão), resultou num obsceno prejuízo para o Estado português, em relação ao valor pago pela concessão, isto para além da passagem de um importante setor estratégico do domínio público para o domínio privado.

    Se é verdade que esta narrativa de denúncia que visa a responsabilização dos autores deste pode ser caraterizada pela carga ideológica, não é menos rigoroso que foram as opções ideológicas neoliberais que estiveram na base do processo de concessão da ANA e, como tal, a argumentação não poderia deixar de ser uma afirmação ideológica de defesa do setor público nacional, em particular de empresas estratégicas para a economia e soberania nacionais.

foto de Aníbal C. Pires

Um outro aspeto de que este estudo poderá vir a ser criticado relaciona-se com a ausência de uma enumeração de aspetos positivos desta transferência da ANA da esfera pública para a esfera privada. Não existe, ao longo do estudo, uma lista de vantagens ou benefícios por elas serem inexistentes, o que se verificou foi um aumento da exploração laboral e um aumento das taxas aeroportuárias.

Este estudo é importante pois, presta um serviço público e político ao registar, analisar e denunciar um processo que foi, de facto, conduzido de forma profundamente lesiva para o interesse nacional.

    A privatização da ANA — Aeroportos de Portugal foi um processo, à semelhança de outros, prejudicial para o interesse nacional. Mais do que um simples negócio de venda de ativos públicos, o que seria sempre questionável face à importância estratégica das infraestruturas aeroportuárias, representou a entrega, a preço de saldo, de uma empresa que pelas suas caraterísticas, objeto social e empresarial, é vital para o desenvolvimento do país e para a sua coesão territorial. Dos nove aeroportos da Região Autónoma dos Açores, quatro são da ANA (flores, Faial, S. Miguel e Santa Maria), o que para o povo açoriano não deixa de ser um fator que deverá ser tomado em conta na luta pela reversão da privatização.

    O Estado, ao invés de reforçar a sua capacidade de planificar e investir num setor fundamental, hipotecou o futuro dos seus aeroportos em troca de receitas imediatas — receitas que, como demonstra a auditoria do Tribunal de Contas, não compensam os prejuízos, para as finanças públicas. 

    O caso da privatização da ANA insere-se numa lógica mais vasta de entrega de setores estratégicos ao mercado, cujas consequências vão muito além das infraestruturas aeroportuárias. O apagão de 28 de abril é um exemplo alarmante das fragilidades criadas pela desregulação e pela perda de controlo público sobre setores estratégicos como seja o da energia.

    O apagão que se verificou no passado dia 28 de abril é uma prova indiscutível de que setores como o da energia não são compagináveis com o mercado, os interesse e a gestão privada. A ligação à rede elétrica europeia e a dependência de terceiros, quando o país tem capacidade instalada para garantir a soberania na produção de energia elétrica é incompreensível e deixa a descoberto os erros da privatização dos setores estratégicos como sejam, por exemplo os transportes aéreos, rodoviários, ferroviários e marítimos, ou ainda, sem que aqui se esgotem os exemplos, a distribuição postal, isto é, os CTT. Privatizações que importa impedir (TAP e SATA) ou reverter como seja a própria ANA e o já aludido serviço de distribuição postal.

foto de Aníbal C. Pires
    O processo de privatização da ANA, como nos é descrito neste livro, foi conduzido num ambiente de opacidade, com sucessivas alterações às regras iniciais, sempre para beneficiar o comprador privado, a multinacional Vinci. A promessa de um novo Aeroporto de Lisboa, essencial para o país, foi adiada indefinidamente, refém da lógica de maximização de lucros privados. Os aeroportos regionais foram sujeitos a desinvestimento. As taxas aeroportuárias aumentaram significativamente. E os trabalhadores viram os seus direitos comprimidos em nome da rentabilidade. Por outro lado, a privatização da ANA não satisfez alguns dos argumentos utilizados pelos defensores da passagem deste ativo estratégico para o domínio privado, ou seja, não reduziu a dívida pública, não melhorou o serviço, não democratizou a gestão — fez apenas o que se previa: transformou um bem público numa fonte de lucro astronómico para um grupo privado estrangeiro.

    A Auditoria do Tribunal de Contas é clara: “a privatização não salvaguardou o interesse público e enfraqueceu a soberania nacional." Os responsáveis políticos pelo processo de privatização e os seus aliados face à Auditoria do Tribunal de Contas e à consequente proposta de um Comissão Parlamenta de Inquérito, proposta pelo PCP, inviabilizaram a sua constituição e assim o apuramento e, por conseguinte, a imputação de responsabilidades por este negócio danoso para Portugal.

    O processo de privatização da ANA, como evidenciado no Dossier agora publicado, foi conduzido num ambiente de opacidade e favorecimento dos interesses privados, hipotecando um ativo estratégico vital para o país. Este processo não serviu o interesse público, mas também comprometeu a capacidade de planificação e desenvolvimento de um setor determinante para a coesão nacional e a soberania económica. O impacto foi duplamente nocivo: impediu a modernização da infraestrutura aeroportuária nacional e entregou, por preço de saldo, uma fonte de receita e de decisão estratégica a um grupo privado estrangeiro.

    A Auditoria do Tribunal de Contas confirma: a privatização da ANA fragilizou o Estado, prejudicou o interesse nacional e serviu apenas interesses financeiros. De tão claro e contundente os responsáveis pela privatização chegaram mesmo a colocar em causa o próprio Tribunal de Contas.

    Perante esta realidade, é necessário ir além da denúncia. Impõe-se defender a renacionalização da ANA como parte de um processo político de recuperação dos setores estratégicos para o domínio público, em nome da soberania, do desenvolvimento harmonioso e do futuro de Portugal. Este dossier prova que a privatização da ANA não foi apenas um erro: foi um atentado contra o interesse nacional, que exige memória, denúncia e reversão. Não se trata apenas de corrigir um erro passado, trata-se de afirmar um caminho de responsabilidade, de soberania e de compromisso com as gerações futuras. Não estamos condenados a ser reféns da lógica do lucro.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de abril de 2025 


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