quarta-feira, 2 de abril de 2025

a força imagética da palavra poética – Infinito sem Nome, Carlos Enes.

foto de Paulo R. Cabral
    Carlos Enes é um terceirense da Vila Nova, um açoriano da Terceira, um português dos Açores, mas Carlos Enes é, sobretudo, um cidadão do Mundo que não deixa o tempo e a vida passarem-lhe ao lado. Foi professor do ensino secundário e superior e continua a ser um ativista social, cultural e político.

A sua vasta obra publicada traduz um espírito atento e irrequieto, mas também a diversidade dos seus interesses, de onde resultaram obras em áreas tão diversas como a historiografia - colaboração na Enciclopédia Açoriana e na História dos Açores, e a publicação do livro Temas da História Açoriana -, na etnografia insular - Carnaval e as Festas do Espírito Santo, na ilha Terceira -, mas também da escrita fora dos cânones literários como seja o seu livro A Galope Numa Noite de Búzios, ou dentro do cânone pois, não sou muito dado a catalogar a forma como os autores utilizam e organizam as palavras. Há uma outra obra que gostaria de referenciar antes de referir as incursões do Carlos Enes na ficção e na poesia, e anteriores a este Infinito Sem Nome.

Trata-se da obra A Oposição Democrática em Ponta Delgada - Das eleições de 1969 à Cooperativa Sextante, onde Carlos Enes com o rigor do historiador, ainda que comprometido, grafou um importante período da história política e cultural dos Açores que permite aos leitores conhecerem alguns episódios e personalidades que, na Região, lutaram contra o fascismo português. Esta obra à semelhança do já referenciados livros A Galope Numa Noite de Búzios e Temas da História Açoriana foram editados com a chancela da Letras Lavadas. 

foto de Paulo R. Cabral

    Carlos Enes tem explorado outros territórios literários, como a ficção, no romance A Terra do Bravo, e na poesia, em Cicatriz de Chuva. Agora, regressa ao universo poético com Infinito Sem Nome.

    A capa merece, desde logo, uma apreciação pois é, diria, o primeiro contato que temos com o objeto literário. A composição gráfica utilizada e o título podem aproximar ou afastar, potenciais leitores e, por essa e outras razões deve ser devidamente considerada pelos autores e editores. Neste caso e no que diz respeito à imagem - uma colagem de recortes fotográficos, criada pelo autor -, muito se poderá dizer, mas eu ficar-me-ei apenas por alguns apontamentos mais ou menos subjetivos, que ouso a partilhar com os leitores.

- Em virtude da fragmentação de um corpo humano composto por elementos que dele não fazem parte e da sua própria assimetria, esta imagem convoca sentimentos de estranheza e até desconforto, poderá ser entendida como uma crítica à padronização dos corpos, por outro lado o uso de partes do corpo humano e a sua fusão com elementos naturais e artificiais podem induzir à reflexão sobre a relação do corpo com a natureza;

-  A mistura entre estes elementos cria um corpo que parece ao mesmo tempo orgânico e artificial, como se estivesse num estado de mutação ou adaptação. Os galhos secos que substituem os membros inferiores sugerem raízes, crescimento ou até mesmo fragilidade, enquanto os pés desiguais podem remeter à instabilidade ou a uma caminhada desigual pelo mundo.

- A imagem sugere, ou pode sugerir, que a comunicação não se limita à fala ou aos gestos convencionais, mas pode emergir de formas não lineares, simbólicas e até desconfortáveis. A boca entrelaçada ao cabelo pode representar uma expressão através da memória, da cultura ou da ancestralidade.

Por fim, no que concerne à imagem da capa, e por se tratar de um livro de poesia direi que a imagem poderá ainda significar que: - A forma poética que o autor utiliza não necessita, nem tem obrigação, de seguir padrões literários e líricos, sendo que esta é uma premissa que julgo ser comum a todos os poetas.

foto de Paulo R. Cabral

    Quanto ao título diria que, Infinito Sem Nome sugere um antagonismo poético estimulante. O infinito, por definição, escapa aos limites e classificações, mas ao qualificá-lo como sem nome, o título reforça a ideia de algo inatingível, impossível de definir, uma vastidão de silêncios, ou seja, de interioridade que o poeta ousa partilhar.

    A ausência de nome neste infinito pode remeter àquilo que existe antes ou além da linguagem, ao indizível que a poesia tenta capturar sem nunca se deixar aprisionar. Há uma musicalidade e uma leveza no título, mas também um certo mistério, como se o autor convidasse o leitor a explorar um território de liberdade sem limites.

    Sobre a poesia de Carlos Enes já muito foi dito, mormente, pelo Vítor Rui Dores e pelo Acácio Pinto, o que me deixa pouco espaço para tecer algumas considerações sem papaguear algumas apreciações já feitas ou ser tentado a dizer o óbvio, daí ter recorrido ao objeto gráfico,  em particular à imagem da capa, e ao título deste belo poemário que o autor, em boa hora, decidiu partilhar connosco.

Mas vamos aos poemas. Carlos Enes apresenta, em Infinito Sem Nome, uma poesia visceralmente táctil, marcada por imagens evocativas, onde o universo natural e as emoções se enlaçam. O autor transita entre a contemplação do efémero e a busca pelo essencial, traduzindo as suas inquietudes em imagens poéticas.

foto de Paulo R. Cabral
    A poesia de Carlos Enes navega entre a nostalgia e o desejo como se cada poema fosse uma tentativa de resgate do passado com o futuro presente.

    O mar, o vento, a luz e os ciclos naturais são uma presença constante, ocasionalmente como espelhos da condição humana e das suas transformações. O poeta questiona-se sobre o tempo, a memória e o amor, mas sem buscar respostas definitivas e conduz-nos pela incerteza como sendo, e assim é, uma parte das nossas vidas.

A linguagem, por vezes crua, por vezes delicada, confere um ritmo envolvente à obra. A fragmentação de imagens e a riqueza sensorial criam uma atmosfera que oscila entre o real e o utópico, mas Carlos Enes, na sua poesia, aflora também uma dimensão social e crítica que reflete um olhar atento às contradições do nosso mundo.

Os poemas de Carlos Enes têm uma força imagética poderosa e relevante à qual não se fica indiferente. A estrutura livre, com versos curtos e pausas potenciam a absorção de imagens e sentimentos, a ausência de rimas regulares deixa um espaço de liberdade para que o ritmo seja construído pela musicalidade própria das palavras.

Julgo poder afirmar-se que Infinito Sem Nome não se limita a uma única identidade poética, mas flutua entre o íntimo e o universal, entre a contemplação e a inquietação, num jogo constante de metáforas que nos desafiam a sentir, muito mais do que a qualquer tentativa de compreender. Neste Infinito Sem Nome, Carlos Enes oferece-nos uma poesia de múltiplas camadas, que desafia a perceção linear e convida a sentir antes de interpretar. Um livro para ser relido, sentido e reinventado a cada leitura.

Ponta Delgada, 28 de março de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 2 de abril de 2025

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