domingo, 22 de novembro de 2020

Há um ano. Contos Bizarros, de João Pedro Porto

 

Escrita incomum, Leitura estimulante (*)

Antes de vos falar do livro e do autor, razão maior que nos mobilizou para, nesta tarde quase noite, nos juntarmos neste espaço que, sendo novo, é um lugar recuperado à nossa memória coletiva, permitam-me algumas palavras de agradecimento.

E agradeço, desde logo, a Vossa presença. Presença sem a qual pouco sentido faria este momento. Os livros cumprem a sua finalidade por via dos leitores e, neste caso, os leitores não faltaram à chamada.

Estamos num lugar de livros, de leitores, de escritores, de editores e livreiros e, por isso, quero deixar um agradecimento, na pessoa do Senhor Ernesto Resendes, ao Grupo Publiçor/Nova Gráfica/editora LetrasLAVAdas que hoje inaugura oficialmente  esta livraria, num espaço retomado para o presente da cidade de Ponta Delgada e que, permitam-me a ousadia, é um contributo para nos devolver a alma da cidade. Não só, mas também por isso, fica o meu reconhecimento público à LetrasLAVAdas.

Ao João Pedro Porto, não sei se agradeça o convite para esta empreitada, afinal eu gosto muito mais de estar do Outro Lado, gosto muito mais de ouvir do que falar. Mas sim, agradeço convicta e sinceramente o convite do João Pedro para fazer, em partilha com a Leonor Sampaio, a apresentação pública do seu livro Contos Bizarros

Convite que me surpreendeu, mas que me muito me honra e ao qual acedi sem reservas, mas com a consciência de que pendia sobre mim uma enorme responsabilidade. Ainda assim aceitei o desafio pois, não sou pessoa de recuar perante os reptos que me colocam, sejam eles de que natureza forem.

O João Pedro Porto e a sua obra não necessitam de apresentações, contudo, não posso deixar de referir que este jovem escritor, sendo micaelense de nascimento, é antes de mais e depois de tudo um autor do Mundo, com vasta obra já publicada. Este é o seu sétimo título, e é tido no contexto nacional como um dos autores de referência da nova geração de escritores portugueses. 

O João Pedro tem quatro romances publicados. O Rochedo que Chorou, 2011, O 2egundo M1nuto, 2012, Porta Azul para Macau, 2014, A Brecha, 2017.

O João Pedro publica agora o seu terceiro livro de contos, para trás ficam O Homem da Mansarda, 2014, e Fruta do Chão, 2018, este último em versão bilingue, traduzido para o espanhol por Blanca Martin-Calero. Mas as experiências literárias do João Pedro não se ficam por aqui, são, também, suas as letras dos álbuns musicais Terra do Corpo e Sol de Março, de Medeiros e Lucas. A produção literária do João Pedro Porto não se esgota apenas nos seus títulos, mas avancemos.

O seu último romance A Brecha, de 2017, foi finalista do Prémio Casino da Póvoa, Correntes d'Escritas. O blogue literário “Somos Livros”, referencia João Pedro Porto como um dos cinco autores portugueses a conhecer, sobre João Pedro e o seu último romance disse Valter Hugo Mãe: “Reverberam séculos nas suas construções. Um invasor absoluto, um denunciador. João Pedro Porto é cénico, performativo, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer.”

Também por cá foram produzidas algumas opiniões sobre o último romance de João Pedro Porto de entre as quais destaco o magnífico texto de Leonardo Sousa, “Atrelai o pensamento à popa destes navios – uma abordagem ao universo d’A Brecha”, publicado no blogue “um elefante na loja de cerâmica”.

E foi com a Brecha, ainda antes dos concursos e das opiniões oriundas dos meios literários regionais e nacionais que conheci o João Pedro Porto escritor e cidadão, ou seja, esta é uma relação que nasceu da leitura do seu último romance. Foi o gosto pela leitura e pela escrita que nos aproximou. Essa será, quem sabe, a razão pela qual estou aqui para vos apresentar Contos Bizarros.

Mas, ainda antes de vos falar destes contos, e assim como uma espécie de aperitivo, permitam-me citar A Brecha e Fruta do Chão para se perceber de que escrita laboriosa e densa, mas encantadora, estamos a falar.

(…) A terra terá sido sempre lida com as páginas e as cabeças erigidas a Norte, salvo pelos povos da meia-lua. Desse Norte se disse, por anos, ser o hemisfério superior, que é como quem diz: de superior condição. O Sul será sempre algo selvático, onde se dançam os tangos e se matam os homens por ninharias. A futilidade é mortal, no Sul. Será por isso que lá vamos. Não há banalidade no Sul. Se o mistério tiver esconderijo, esse será sempre austral. Até o órgão mais carnal e o pórtico mais recôncavo de todo o éden moram no lugar sulino do corpo dos homens e das mulheres. (…)

Dirão que bem podia ser dito de uma outra e simples forma. Sim podia, mas, para nosso deleite, a linearidade não é uma caraterística da escrita de João Pedro Porto.

A propósito deste trecho de A Brecha, do qual gosto particularmente, acrescento da minha lavra: O meu Norte é o Sul. 

Fica um outro fragmento da escrita de João Pedro, agora de um dos contos de Fruta do Chão.

(…) A filha da lavadeira, essa, era cereja-brava, embrulhada em alfazema. Dançavam-lhe as bordas da saia num vento que não fazia. Parei de olhar sem modéstia nem tempo. Ela olhou também, e sorriu vermelha. Como uma cereja, pensei, e olhei mais um pouco. Oh quantas glórias trocariam beligerantes guerreiros por uma vida de alfazema. (…)

Há, certamente, muitas formas de descrever e cantar o balancear do corpo feminino. Vinicius de Moraes aborda esse balancear na conhecida canção A Garota de Ipanema quando diz: “(…) o seu balançado é mais que um poema (…)”, mas João Pedro Porto fá-lo de um jeito inigualável e sem recurso à utilização de uma referência, que seja, à anatomia feminina, e recordo: 

(…) Dançavam-lhe as bordas da saia num vento que não fazia (…). Esta é uma escrita que não está ao alcance de todos. Valter Hugo Mãe tem razão quando afirma que o João Pedro Porto é: (…) “cénico, performativo, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer.” (…).

Depois desta breve introdução à escrita de João Pedro Porto vamos então ao que nos traz e junta aqui, os Contos Bizarros.

Este livro tem algumas peculiaridades que importa, antes de mais, referir. 

É uma edição bilingue, mas não tem tradutor. Pois é, o João Pedro Porto escreveu, também, em inglês. Não faço outras considerações sobre esta, julgo que, invulgaridade pois, para isso temos aqui a Leonor Sampaio. Mas sempre direi que este é um ato de coragem, quer do autor, quer do editor.

A ilustração da capa é do João Pedro Porto.

Estes dois aspetos de pormenor dizem, só por si, muito do espírito inquieto, culto, criativo e corajoso deste miúdo, sim um miúdo de 35 anos, que hoje partilha connosco os seus Contos Bizarros.

À semelhança dos que o precederam, também, este livro necessita de tempo. Estes contos não são para leitores apressados, cada uma das onze estórias que o compõem são para ser saboreadas. Se preferem uma refeição rápida então peguem num policial, se pelo contrário se deleitam com um repasto de degustação, então leiam os Contos Bizarros

Não será a melhor abordagem para divulgar um produto!? Talvez não. Vivemos num tempo de pressas e de imediatismo e eu estou a pedir-vos tempo. Tempo que é o nosso bem mais precioso. Mas é por isso, por o tempo ser escasso e precioso que não o devemos desperdiçar com o lixo mediático e virtual descartável, mas que degrada, tal como a fast food danifica o nosso equilíbrio fisiológico. Regressemos, pois, à dieta mediterrânica que é como quem diz: à literatura, ao pensamento crítico e ao equilíbrio entre a razão e a emoção.

Quando acabei a leitura de Contos Bizarros publiquei, em diferentes redes sociais, uma foto da capa com a seguinte legenda: Escrita incomum, Leitura estimulante. E assim é a escrita de João Pedro Porto, diria que esta forma de escrever, goste-se ou não, é um ato de rebeldia que poderá afrontar os clássicos cânones literários, E eu gosto, e admiro, quem não se resigna.

Uma outra ideia que retive foi a de que, neste como em outros livros, o autor utiliza uma criativa paleta de cores para construir ambientes. Eu diria, se me permitem, que estes contos são, também, uma construtiva orgia cromática, vejamos: cor de cimboa, avioletada, azul prussiano, um turquesa, e o outro de areia-molhada-a-seca, azul meia noite, hialinos e esbranquiçados, cabelos cor de vime ratã, azul cobalto a caribenho, veneno e morte anil, fato pardo a gris, caravelas garrafa-azul, avermelhar a cor lívida da morte, um mar malhado de céu, cor de cardo, exangue e alabastrino, cor de gamboge-a-tangelo-vivo, um céu daquele azul que não faz fronteira com o mar. 

Estas são algumas das cores dos Contos Bizarros, outras há, sendo que os gradientes de azul são criativamente infindáveis.

Estes contos, não sendo só, são estórias que se aproximam muito de notas autobiográficas. Se em todas as narrativas e em todas as geografias se pode encontrar muito do que foi, e é, o seu autor, nestes contos deparamos com o João Pedro ao virar de cada página. Nem sempre será fácil encontrá-lo, mas ele está por aqui, nestas páginas, ou pelo menos um pouco de si. O que já é muito. Nem todos os escritores, aos 35 anos terão coragem para se desnudar perante os seus leitores.

O primeiro dos contos, a Torre de Palha, tem um protagonista. Um daqueles seres que não encaixa no padrão com que os Homens costumam categorizar tudo, e todos. Catalogação que está na origem dos muitos males que se perpetuaram à sombra da medieva ignorância e da pós-moderna estupidificação global.

Anton Moller assim se chama o jovem que tinha “sede por torcer o pescoço ao mundo”, ia a Sorenga pelas madrugadas sublimar a “dor jovem do desprezo” nadando nas águas frias do fiorde no estreito de Skagerrak, talvez assim como o equivalente ao nosso Pesqueiro.

Não vou dissecar, nem este, nem os restantes contos, isso seria retirar-vos um pouco do prazer da vossa leitura, mas Torre de Palha despertou o meu interesse particular pelo facto de se iniciar com a saída de um navio cargueiro do porto norueguês de Narvik que trazia no bojo minério e hulha, e, no convés o protagonista que viaja clandestinamente, com a cumplicidade do imediato do navio. Narvik fica no Noroeste da Noruega, no círculo polar ártico, e por aí se escoa o minério de ferro extraído nas minas suecas de Kiruna e Gallivare.

Mas se estes territórios são bem reais, outros como Halm destino temporário de Anton Moller, quer outras geografias, são lugares criados pelo autor, territórios imaginados e descritos, como se de lugares reais se tratassem para servirem o objeto de cada uma das estórias.

Os Contos Bizarros, não serão tão estranhos como título nos pode fazer crer. O nascimento, a infância e a juventude mais ou menos invulgar, a descoberta da leitura e as viagens que esse e outros novos nasceres nos permitem, que Oleandro Sandoz, faz e cito: “Montado no dorso dos verbos mais corridos. Aos ombros de adjetivos alados”. Ou a tentativa do médico legista de fugir à morte porque, e volto a socorrer-me das palavras do autor, “viver era a coisa mais importante das coisas importantes” e “demasiada morte estava a matá-lo”.

Mas Contos Bizarros também nos fala do drama dos escritores quando são atormentados por momentos de bloqueio criativo, ou como diz o autor “… um embargo da imaginação.” Não vai, caro leitor, encontrar a solução, porque receitas não existem, mas ficam muitas pistas para vencer o bloqueio, desde logo não desistir, lutar contra o embargo ainda que seja escrever às escuras, de costas ou com a mão esquerda. Fazer o pino pode ser uma hipótese, não muito aconselhável, está bom de ver, porque lhe farão falta as mãos.

O autor de uma forma mais ou menos explícita não deixa a sua ilha e cidade fora destes contos e surpreende-nos com a “crónica de um futuro ido” onde nos fala do passado, não muito distante. Mas também do presente e do futuro, assim, com esta formulação, e cito, 

“Se o presente já durava pouco, agora também o futuro é vivido com a urgência de o tornar passado”.

Sobre o “Guardador de Ondas”, pouco direi. Ou melhor direi muito utilizando, ainda que parcas, mas, eloquentes palavras do autor.

E cito da página 69, o parágrafo que encerra este conto: “(…) Como se recebesse uma visita que esperava há muito, o homem arregaçou o linho e roçou a face. Sentiu o pêlo do fim do dia. Abandonou Úrsula com um único beijo nas obras mortas. A grande alforreca estendeu-lhe os galhos venenosos. O velho também. E naquele abraço, a noite surgiu e o sol desceu também abaixo das ondas.”

Entenderão agora razão pela qual eu estava reticente em agradecer ao João Pedro o convite para apresentar este livro, ainda que partilhando essa responsabilidade com a Leonor Sampaio. O que é que eu, um leitor comum, é o que sou, nem mais nem menos, tem para dizer de um autor que trabalha a escrita como o artesão lapida a forma alotrópica do carbono até obter dele um diamante.

Que falar de um autor que escreve desta forma sublime!? Mas cá estou a fazer o melhor que posso, afinal não sou homem de voltar as costas aos amigos e, muito menos de fugir perante as dificuldades que a vida nos apresenta.

O medo da mudança no quotidiano pacato, mas qualitativamente bom e os erros que podem ser cometidos na luta contra as alterações ao nosso modo de vida. São, digo eu, o mote do conto “Águas Assopradas”.

Já alguma vez pensaram como se deitam os Canários. Como será!? E o que isso poderá ter a ver com a feira de livros de Calcutá, uma porta que não abria, mas que depois do canário se deitar facilmente se franqueou para a libertação de uma jovem aprisionada e dependente de um certo modo de vida e de pensar. É no bizarro conto “Como se deitam os Canários” que encontrarão as respostas, se é que o são, ou tudo não passará de um conjunto de evidências que por serem tão visíveis nem nos damos conta delas. 

A procura da eternidade, o fim da vida na terra, um pinhão que já foi um homem, mas que sendo agora um pinhão cumpre o seu fim, ou seja, e volto a utilizar as palavras do autor, “Todos os pinhões fazem propósito em ir longe, e chegar sem saber aonde.”

Não resisto, e devia fazê-lo, para não vos privar do prazer da descoberta, quando lerem, mas aqui vai o trecho que encerra o conto “A cintura de Vénus”, “Agora a esfera de Collodi roda na imensidão com a sua incessante barriga brunida. Aproxima-se de um Vénus solitário. E sonha com gente.”

E estamos a chegar ao fim. Contos Bizarros encerra com o Homem de Andas. Aqui o autor fala-nos de alguém que caminhava, desde que tinha adquirido a verticalidade, sobre umas andas que um tio, “amante de todos os cumes”, lhe fez em madeira de pau santo. Olhar de cima, para gente rasa que habitava o chão, Talvez. Talvez denote uma atitude de superioridade e distanciamento, um afrontamento. Mas não é assim que o entendo. Prefiro outra leitura deste conto e que poderei referir como olhar de um outro ponto de vista. Uma opinião que contraria o pensamento e a cultura dominante. Alguém a quem é pedida uma opinião alternativa, uma justificação do que não se entende, mas na qual se acredita piamente. É claro que o destino final do Homem de Andas, irá ser o mesmo de todos os Homens e Mulheres que ousam ser diferentes, a pira onde se queimam os que ousam.  

Para terminar e a propósito, mas também com um propósito, diria numa adaptação livre dos primeiros versos da canção Manifesto de Vítor Jara que rezam assim: 

Yo no canto por cantar/Ni por tener buena voz/Canto porque la guitarra/Tiene sentido y razón

Diria que, João Pedro Porto/não escreve por escrever/escreve porque a escrita/tem de ter sentido e razão.

E a produção literária de João Pedro Porto, para além de muitos outros atributos, tem sentido e tem razão.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 22 de Outubro de 2019

(*) texto que serviu de base à apresentação pública de Contos Bizarros/Odd Tales), de João Pedro Porto, na Livraria Letras LAVAdas, Ponta Delgada, 22 de Novembro de 2019.

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