Teatro Micaelense
Ponta Delgada, 27 de Novembro de 2019
E do velho se faz novo
Minhas senhoras e meus senhores,
Caros amigos,
Se outros motivos não houvesse a vossa presença, que muito agradeço, diz bem da importância e da ligação que diferentes gerações outorgam às nossas raízes culturais. Só por isso, pela Vossa presença, diria que é já motivo de grande satisfação este novo trabalho musical que o Rafael Carvalho partilha connosco. Não fossem a Viola da Terra, o novo disco e o Rafael Carvalho, motivos mais do que suficientes para este serão de encontros e reencontros com a sonoridade única da viola de arame.
Sim. A razão primeira pela qual estamos aqui, o Rafael que me desculpe, não é por ele. Estamos por ele, mas estamos, sobretudo, pela viola que nos toca. Estamos pela sonoridade de um instrumento musical popular com o qual nos identificamos e que faz parte da nossa memória coletiva. Claro que estamos pelo Rafael e, é a ele que dirijo um agradecimento especial pelo convite que me endossou para fazer a apresentação do seu último trabalho discográfico. Um convite que aceitei sem reservas e me honra, mas que me surpreendeu, pois, sendo um melómano, não sei uma nota musical que seja.
O Rafael não devia saber disto, se o soubesse teria procurado quem pudesse, com propriedade, falar da qualidade da execução e dos arranjos que fez para que, só com a viola da terra, percorrer temas tradicionais de Natal com origens populares tão diversas, aos quais acrescentou duas canções de autor e, ainda, um tema original.
Não sei quem corre o maior risco, se eu, se o Rafael. Eu, por vir meter a foice em seara alheia, o Rafael por colocar aqui um leigo a falar da sua música e, de alguma forma, a servir de suporte para a promoção e divulgação do seu trabalho enquanto músico e compositor. Mas vou tentar, lá isso vou.
Ainda antes de uma abordagem ao novo disco do Rafael Carvalho, permitam-me algumas referências ao instrumento musical em que este músico, professor e difusor da viola da terra, de dois corações, ou de arame, se exprime de forma exímia. Para o instrumento adotem a designação que preferirem, importante mesmo é que falamos do único instrumento musical típico dos Açores (A Viola de Arame nos Açores, João Alfredo Ferreira Almeida, Publiçor, 2.ª ed., 2010).
Trata-se de um cordofone que tem a sua origem nas violas de mão ou Vihuelas* e que em Portugal, consoante o gosto, os materiais disponíveis, mas também as técnicas de execução, adotou diferentes formas. As violas de arame serão, pela sua história e pela apropriação popular, até à introdução da guitarra clássica, ou viola, e da vulgarização da guitarra portuguesa** com a sua associação ao fado, os instrumentos musicais da classe dos cordofones, verdadeiramente portugueses. Sendo que, segundo alguns autores, estes instrumentos musicais são uma rara sobrevivência das violas que existiam no continente europeu (A Viola de Arame nos Açores, João Alfredo Ferreira Almeida, Publiçor, 2.ª ed., 2010)
As violas de arame em Portugal são conhecidas pelas seguintes designações: Braguesa, Amarantina, Toeira, (estas do Norte e litoral), a Beiroa e a Campaniça (do centro e Sul), e ainda, na Madeira a Viola Madeirense e o Machete, vulgo Braguinha (assim como uma espécie de cavaquinho, que terá sido o cordofone português mais disseminado pelo Mundo. O mais conhecido será o seu parente ukelele do Hawai. Mas a viola de arame também atravessou o Atlântico e viajou. No Brasil a Viola Caipira ou Sertaneja é, também, uma viola de arame que terá sido levada, quiçá dos Açores, para o sertão brasileiro.
Nos Açores as violas de arame, sim são duas, a Viola de Corações, talvez a mais divulgada e conhecida, e a Viola de Boca Redonda, da ilha Terceira. A Viola de Dois Corações, esta que o Rafael Carvalho maneja com uma mestria admirável, ainda tem algumas variações no tamanho e na afinação. Mas essas questões ficarão para os especialistas.Estarão, caros amigos, a perguntar-se porque estou a dedicar tanto tempo ao instrumento musical!? Têm razão, mas existe uma justificação, ou várias, para eu dedicar esta parte da apresentação do disco Um Natal à Viola à história das violas de arame. Passo a explicar.
A Viola da Terra, mas também a Beiroa, foram caindo em desuso por razões diversas, esta última de forma quase dramática (a Viola Beiroa esteve preste a tornar-se um objeto museológico não fossem alguns músicos e instituições a recuperar-lhe o uso). Com a Viola da Terra também se assistiu ao declínio do seu uso e no final da década de 90, do século passado, o número de violas e de mestres violeiros era quase residual. Em S. Miguel, diz-nos José Alfredo Ferreira Almeida, e cito: “(Não é exagero afirmar-se que, atualmente e pelo menos em S. Miguel – que melhor conhecemos – a viola da terra, como é habitualmente designada, é quase uma raridade, algumas vezes convertida em relíquia de família, com funções meramente decorativas, confinada a museus, coleções particulares, grupos folclóricos e a uns quantos apreciadores, apaixonados pelo seu timbre. (…)”. Fim de citação.
É certo que alguns mestres violeiros dos quais destaco, Carlos Quental e, em particular Miguel Pimentel desenvolveram um ciclópico trabalho, através do seu ensino e consequente difusão das técnicas de execução, para contrariar o declínio do uso da Viola da Terra. O mestre Miguel Pimentel durante parte das décadas de 80 e 90 manteve no Conservatório de Ponta Delgada cursos livres apara aprendizagem deste instrumento musical.
E o Rafael Carvalho a par de outros exímios executantes de viola da terra, como o Ricardo Melo, são exemplos vivos desse legado de Carlos Quental e Miguel Pimentel.
Sobre Proteção e Valorização do Património Material e Imaterial, afinal também é disso, ou sobretudo disso, que estamos a falar, diria que não sou um conservacionista apenas pelo valor simbólico do património, seja ele móvel ou imóvel, seja ele material ou imaterial, embora considere que a sua salvaguarda apenas na perspetiva conservacionista assume, em si mesmo, grande relevância e, diria mesmo que relativamente a alguns desses bens a intervenção e salvaguarda, não poderá ir além disso, Preservar e conservar. Defendo uma perspetiva de preservação e conservação do património cultural ligado ao seu uso e fruição pelos cidadãos. E é possível modernizar e adequar aos nossos tempos sem perder a alma. Deixo-vos dois exemplos de preservação, de valorização e até de recuperação de património cultural regional, sem nenhuma adulteração às suas formas originais, conseguidas e julgo que bem conseguidas, por uso diverso do original num dos casos e, no outro caso mantendo o uso que lhe conferiu valor, mas dando-lhe novos palcos.
Depois do declínio da caça à baleia e da sua total proibição, os botes baleeiros, tendo-se-lhe acabado o uso, estavam predestinados a serem meras peças estáticas de museus e núcleos museológicos, a assim foi durante um largo período de tempo. Hoje e, devido à introdução de um novo uso, as regatas e o turismo, damos conta que muitos deles foram totalmente recuperados e é com agrado que os vemos de velas enfunadas a sulcar o mar das nossas baías. A viola da terra, de arame ou de dois corações nunca tendo estado em verdadeiro perigo de desuso pois as festas populares, os ranchos folclóricos e outras manifestações populares assim o garantiriam, todavia verifica-se uma evolução no seu uso, ou seja, continuando a marcar a sua indispensável presença nas festas populares este instrumento musical, sem que tivesse tido nenhuma alteração é hoje ensinado nos conservatórios regionais de música, procura novas sonoridades, novos instrumentos parceiros, atrai novos aprendizes e, por consequência, atrai novos públicos.
E esse tem sido o trabalho inexcedível de Rafael Carvalho. Este rapaz da Ribeira Quente tem dado um valioso contributo, não só para a salvaguarda da Viola da Terra, mas sobretudo para a reafirmação do instrumento musical que melhor traduz a alma açoriana.O Rafael para além de ser um exímio executante de viola da terra, tem desenvolvido um trabalho complementar no ensino formal e informal, conseguindo o reconhecimento oficial do ensino de Viola da Terra no Conservatório Regional, promove encontros anuais da Viola da Terra com as violas de arame, do território continental, da Madeira e do Brasil, dinamiza orquestras, concertos, encontros de músicos de Viola da Terra de toda a Região, criou a Associação de Jovens Viola da Terra, e, por fim, embora não seja só, tem promovidos e participado em momentos musicais onde seria impensável a entrada deste instrumento de música popular. Um dos últimos, para não referir outros, foi a sua participação num espetáculo que, como disse Vânia Dilac, mais parecia uma improbabilidade, juntar o Soul com a Viola da Terra. E era uma improbabilidade, até acontecer. Este é apenas um exemplo de que a Viola da Terra, pelas mãos do Rafael, tem vindo a fazer. Ou seja, um percurso de afirmação em palcos que até há alguns anos lhe estavam vedados.
Mas se o Rafael Carvalho é tudo isto, é também, um autor de livros didáticos sobre o ensino da viola da terra, tem três livros publicados, uma coleção que tem por título Método para a Viola da Terra, níveis Iniciação, Básico e Avançado.
Como qualquer outro músico instrumentista o Rafael Carvalho é também um compositor. Tem cinco discos disponíveis. Estamos aqui, embora até agora não pareça, para conhecer o seu mais recente disco, Um Natal à Viola. Os trabalhos que antecedem este, são: Origens, 2012, Paralelo 38, 2014, Relheiras, 2017, e, 9 Ilhas 2 Corações, 2018. Com exceção do quarto trabalho discográfico, 9 Ilhas 2 Corações que percorre exclusivamente o cancioneiro tradicional açoriano, todos os outros integram temas originais da autoria do Rafael Carvalho. Com especial destaque para Relheiras que não sendo exclusivamente de originais é-o, na sua essência, dos dez temas de Relheiras, sete são originais da autoria do Rafael Carvalho.
A composição de temas originais faz parte, em minha opinião, da constante procura de novas sonoridades para a viola da terra e resulta da apuradíssima técnica de execução, de domínio e de conhecimento de todas as potencialidades deste instrumento musical. Os originais de Rafael Carvalho são experimentais, exploratórios, revelam todo o seu virtuosismo e contribuem para a criação de um novo e elaborado reportório para a Viola da Terra.Um Natal à Viola, foi o pretexto para nos juntarmos neste magnífico espaço cultural de Ponta Delgada. São 14 temas executados pelo Rafael Carvalho onde apenas se ouve o som da Viola da Terra, a viola de arame dos Açores da qual se libertam sons que se ouvem no Alentejo, na Beira Baixa, em Trás os Montes, na Madeira e, naturalmente, nos Açores. Todos estes temas são alusivos à quadra natalícia e provêm do cancioneiro popular. Mas o Rafael que não deixa os seus créditos por mãos alheias, não se fica apenas pelo cancioneiro popular e presenteia-nos com a interpretação de dois temas de autor, Noite Feliz, de Franz Gruber e, Adeste Fideles, de John Wade. E, na minha humilde opinião, isto não acontece por acaso. O Rafael Carvalho, na sua permanente ação de valorização da Viola da Terra, serve-se destes dois temas clássicos e sobejamente conhecidos para nos dizer, a nós e ao Mundo, que a Viola da Terra não está confinada a ser um mero repositório da música tradicional.
Continua a sê-lo, e ainda bem, mas pelas mãos do Rafael e dos seus jovens alunos, a Viola da Terra já caminha por outros territórios musicais e isso só pode ser objeto da nossa satisfação e louvor. Por fim uma breve referência ao original que dá o nome ao quinto CD do Rafael Carvalho, ou seja, música que encerra este trabalho do Rafael Carvalho, Um Natal à Viola. Este original confirma o que tenho vindo a dizer sobre os novos caminhos da Viola da Terra e o trabalho exploratório e experimental que o Rafael tem vindo a desenvolver. Tem o timbre inconfundível da Viola da Terra e uma toada que nos faz viajar pela quadra natalícia, mas esta música está liberta dos sons tradicionais. Mesmo para um ouvido duro como o meu é possível encontrar diferenças substantivas, entre as duas músicas tradicionais do Natal micaelense que integram este disco, e por consequência adaptadas à Viola da Terra, e o original que o Rafael Carvalho compôs para fechar o seu quinto trabalho discográfico. Certamente teremos oportunidade de verificar isso mesmo quando o autor executar esse tema. Não sei se está no alinhamento, mas conto com isso.Resta-me agradecer, uma vez mais a vossa presença, mas também a atenção que me dispensaram. Obrigado!
* Instrumento de cordas ibérico. A primeira menção a estes cordofones data do Século XV.
**Resulta da evolução e adaptação do “cistre europeu renascentista”. O cistre, ao contrário da cítara, tem as cordas esticadas para além da sua caixa de ressonância.
Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 27 de Novembro de 2019
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