Texto da entrevista publicada hoje no Diário Insular.
1. Como nasceu este Manifesto contra a Legalização da Sorte de Varas nos Açores?
Quero começar por uma declaração de princípio. As respostas que se seguem só me vinculam a mim e não aos subscritores do “Manifesto”, pois, de entre as muitas pessoas que já o subscreveram existem cidadãos que terão visões muito diferentes da minha. O que nos une é a luta contra qualquer tentativa de legalizar a “sorte de varas” e foi esse o motivo da mobilização destes cidadãos entre os quais se encontram aficionados das touradas de praça e da apropriação popular da “festa brava”, conhecida como “tourada à corda”.
Eu diria que nasceu da mesma forma que aconteceu em janeiro de 2015, quando nos bastidores da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores correram rumores de que estava em preparação uma iniciativa parlamentar com o propósito de legalizar as “touradas picadas/sorte de varas”, ou seja, houve uma reação cidadã espontânea que gerou uma grande mobilização em torno de um manifesto com o mesmo teor do que agora apresentamos. Em janeiro de 2015 o aparecimento do manifesto e a mobilização social e política foi suficiente para que os propósitos se esfumassem nos corredores e gabinetes da ALRAA.O presente anúncio da eventual apresentação de uma iniciativa legislativa encontrou eco nas declarações de um membro do governo e num contexto muito particular. Esse facto não significa, necessariamente, que venha a concretizar-se a iniciativa parlamentar, mas vamos prevenir pois, como diz a sabedoria popular, vale mais do que remediar.
Desta vez, e para sermos justos, antes do manifesto apareceu, também com a espontaneidade que estas questões provocam, uma petição contra a legalização da sorte de varas que, como é do domínio público, conta já com mais de 2000 mil assinaturas, o que por si só garante a discussão em plenário do seu conteúdo e propósito pois, também como é do domínio público sobre os propósitos das petições não há decisões. A discussão da petição servirá apenas e tão-somente para que sobre ela se façam declarações de ordem política e se marquem posicionamentos.
A petição e o manifesto não competem entre si e muitos dos subscritores da petição são-no também do manifesto e vice-versa. A diferença é que o manifesto se mantém em aberto e a petição perde o seu impacto logo que venha a ser discutida, embora os subscritores se mantenham atentos e mobilizados contra qualquer tentativa de apresentação de uma iniciativa parlamentar que vise a legalização da “sorte de varas”.
2. Considera que em causa está um possível retrocesso?
A introdução da “sorte de varas” ou “touradas picadas” a que corresponde o primeiro “tercio” da “tourada à espanhola”. E começo por referir este aspeto para que se perceba que a introdução desta variante nas touradas de praça nada tem a ver com a tradição e cultura tauromáquica nos Açores e no País, ou seja, tratar-se-ia da importação de uma prática para introduzir nas lides tradicionais portuguesas e, por conseguinte, de uma aculturação, se isto seria ou não um retrocesso depende sempre do ponto de vista pois, se queremos salvaguardar o que nos diferencia de outros povos então, trata-se de um retrocesso, apesar de já ter sido praticada na ilha Terceira durante alguns anos. Por outro lado, a evolução social da humanidade tem vindo a defender valores da não violência e da ética e isto aplica-se à defesa do bem-estar animal. Assim e, também, desse ponto de vista a legalização da “sorte de varas”, pelo aumento da violência e dos maus-tratos sobre os animais representaria um retrocesso.
Há, porém, um outro aspeto que não é de somenos importância e se relaciona com a atividade económica. O destino Açores é “vendido” como um destino ambientalmente limpo e sustentável onde as ações antrópicas se desenvolveram, com impacto é certo, mas mantendo uma relação amigável com o meio ambiente de onde resultou uma cultura e paisagem únicas. E esse é (ou será) o fator que garante atratividade ao setor. A introdução da “sorte de varas” viria manchar a imagem do destino e possivelmente a procura turística cairia, de onde resultaria algum declínio para um setor económico que representa já um contributo muito importante para a formação do PIB regional.
3. Mesmo assim, da leitura que faz da composição atual do parlamento açoriano, é possível que uma iniciativa desta natureza vá a debate e seja aprovada?
Sobre a atual composição da ALRAA não vou dizer mais do que o seguinte: é mais conservadora do que era nas legislaturas em que tive assento (2008/2012 e 2012/2016). O que não significa que uma iniciativa deste teor possa ser aprovada, ou mesmo que venha a ser apresentada.
4. O que torna a sorte de varas algo que, do vosso ponto de vista, não deve ser legalizado?
A resposta que dei à segunda pergunta já adianta alguns aspetos, quiçá, os mais importantes para que não se legalize a “sorte de varas”, todavia, poderei aduzir mais alguns que nem sempre são bem explicitados e que desconstrói alguns dos argumentos dos defensores desta prática.
“Picar” o touro antes da lide apeada tem um propósito que nunca é referido, ou melhor, o propósito a que me refiro conflitua com o argumento de que “picar” o touro tem como objetivo torná-lo mais agressivo preparando-o assim para que a lide seja mais emotiva e, fundamenta-se esta prática com o despertar da nobreza do touro, ou seja, um animal nobre não foge à “vara” e depois de ser “picado” investe melhor, ou seja, é garante de uma boa lide. Pois bem, durante esse processo estima-se que um touro perca, em média, entre 1 a 2 litros de sangue. O sangramento provoca, naturalmente, a debilidade do animal e é aqui que reside a falácia, a “sorte de varas” serve para enfraquecer o touro e não para lhe despertar a natural e nobre agressividade atrás da qual os defensores desta variante tauromáquica se justificam. Na verdade, trata-se de uma forma cruel de debilitar o nobre animal para que o nobre lidador não corra os riscos de uma lide com um animal na posse de toda a sua pujança e nobreza.
Por estes dias e em conversa com uma cidadã terceirense que podendo não ser uma aficionada de primeira água, mas gosta de touradas como se verá pelas suas palavras. Dizia-me então a referida cidadã: “Sim! É dessas que eu não gosto. Uma vez em Madrid saí a meio da tourada. É horrível! Vemos o sangue a sair em esguicho do corpo do toiro. É horrível.”
Julgo ser suficiente esta pequena descrição para que a sua pergunta fique cabalmente respondida.
5. Como encara os argumentos dos defensores das touradas picadas?
Percebo-os e compreendo-os, mas são inaceitáveis e não têm qualquer fundamento do ponto de vista da criação dos animais ou da continuidade da atividade tauromáquica. Eu diria que estas insistências lhes são prejudiciais pois, contribuem para que cada vez mais cidadãos se afastem das touradas de praça. A seleção dos animais para as lides utiliza as “tentas” como uma das técnicas para garantir bons animais para as lides, mas não confundamos uma e outra coisa, embora esta técnica para a seleção dos animais não deixe de ser condenável por alguns cidadãos.
6. Como vê o discurso do secretário regional da Agricultura a respeito desta temática?
O senhor Secretário Regional da Agricultura no contexto em que proferiu as declarações conhecidas e, certamente, no calor do ambiente, para colher apoios e ficar bem no retrato, não refletiu e mostrou um grande desconhecimento do pulsar da sociedade açoriana, desde logo a terceirense. As posições e gostos individuais do senhor Secretário são suas e deve manifestá-las no seu círculo de amigos e indefetíveis apoiantes, manifestar-se publicamente como membro de um governo que não tem uma posição sobre o assunto parece-me grave e merecedor de um reparo pelo Presidente do Governo Regional.
O Secretário regional deveria preocupar-se com os setores que tutela e trabalhar para garantir a segurança alimentar e os rendimentos dos trabalhadores do setor.
Aníbal C. Pires, Angra do Heroísmo, 6 de fevereiro de 2025