domingo, 13 de dezembro de 2020

programa do XIII governo – relações externas. Então e a Macaronésia!?

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Quem tenha lido o que já escrevi e publiquei sobre este documento de intenções do XIII Governo regional poderá dizer que o meu olhar se foca apenas no que é negativo. Pois bem, hoje tenho algo de positivo para dizer, ainda que tenha de me referir a uma omissão que espero, não seja uma opção, mas sim fruto de um lapso dos autores do documento.

O programa de governo para as relações externas, sem prejuízo de uma análise mais aturada, merece-me, de momento, dois comentários.

O primeiro, que registo com agrado, a enfâse colocada na necessidade de aprofundamento e aperfeiçoamento do estatuto das regiões ultraperiféricas da União Europeia (UE). A ultraperiferia não pode ser apenas reconhecimento, a ultraperiferia tem de ser diferenciação das políticas comuns, tem de ser discriminação positiva ao espaço continental da UE, tem de ser diferenciação entre as próprias regiões ultraperiféricas atendendo às caraterísticas de cada uma. O programa de governo transmite estas preocupações e, como tal, deixo aqui um registo positivo pela inclusão desta orientação estratégica do XIII Governo.

imagem retirada da internet
O segundo comentário, traduz uma preocupação. Em momento algum o programa refere o espaço da Macaronésia. Se é importante!? Diria que sim pois, a Macaronésia engloba as duas regiões autónomas portuguesas (Açores e Madeira), a comunidade autónoma das Canárias e a República de Cabo Verde que, não sendo membro da UE, tem celebrada, ao abrigo do Acordo de Cotonu, uma Parceria Especial de Cooperação com incidência em áreas como a: segurança, integração regional, sociedade do conhecimento e luta contra a pobreza.

Ignorar o esforço de aproximação e cooperação entre os povos insulares da Macaronésia, com todo potencial de desenvolvimento comum que lhe está associado, é um erro. Julgo que terá sido um lapso dos redatores, pressionados que estariam a tentar conciliar o pensamento dos diferentes partidos, assim o espero.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 13 de Dezembro de 2020


sábado, 12 de dezembro de 2020

programa do XIII governo – educação para “inglês ver” (parte 3/3)

 

foto by Aníbal C. Pires
(continuação)

Para concluir este breve olhar sobre o que o XIII Governo Regional nos propõe para a Educação abordo mais duas propostas. A primeira, ainda, no âmbito da promoção do sucesso e, por fim uma iniciativa para a valorização dos profissionais da educação.

“(…) No âmbito da promoção do sucesso,

… 

• promover, a título experimental e voluntário, o ensino bilingue, em português e inglês, no sistema educativo açoriano; (...)"

Como é evidente, para todos, profissionais da educação, encarregados de educação, alunos e para a comunidade educativa entendida em sentido lato, esta é uma medida que pelo seu vanguardismo e inovação vai ser determinante para a promoção do sucesso, e que, apesar da proposta de ensino bilingue poder ser entendida por alguns velhos do Restelo como mais uma desvalorização da língua materna, tudo vale a pena para promover o sucesso dos alunos açorianos. Isto terá sido (ou não) o que os mentores da proposta pensaram quando a verteram no programa. 

Num registo diferente, diria que, enquadrar esta ação “No âmbito da promoção do sucesso…”, só pode ter sido um erro. Pois, como está bom de ver, ninguém entende que o sucesso possa ser promovido com o ensino bilingue. Pode até ter alguma utilidade, mas não será a que o XIII Governo regional lhe pretende dar.

foto by Aníbal C. Pires
Concluo esta breve leitura do programa de governo para a Educação com uma proposta que o XIII Governo regional apresenta e que visa, pelo menos parece, repor justiça na carreira dos educadores e professores do 1.º ciclo. A medida está enquadrada no, 

“(…) No âmbito da valorização dos profissionais da educação,

• rever, até ao final da legislatura e em articulação com as associações sindicais, o horário de trabalho dos Educadores de Infância e dos Professores do 1.º ciclo do ensino básico, harmonizando a sua componente letiva e não letiva com a dos restantes docentes e adaptando-a nos domínios da colegialidade, acompanhamento dos alunos e integração das famílias na situação escolar dos seus educandos; (...)"

Pois, só parece que é, e o que é será para as calendas, ou seja, durante a legislatura o que, como bem se sabe, significa qualquer coisa como 2024. Digo eu, que lhes conheço as manhas.

Existem duas reivindicações sindicais, às quais o PSD, o CDS e o PPM têm vindo a dar sistematicamente o seu acordo, para repor justiça na carreira do educadores e professores do 1.º ciclo. A primeira, e que esta iniciativa constante do programa de governo dá satisfação, a uniformização dos horários destes docentes com os horários dos professores dos restantes ciclos de ensino; a segunda, reduções na componente letiva por antiguidade e pelo exercício de cargos (à semelhança dos professores do 2.º, 3.º ciclos e secundário. Esta, também assumida, foi esquecida.

Sobre estas reivindicações quer o PSD, quer o CDS, quer o PPM comprometeram-se a assumir iniciativas legislativas que resolvessem, de uma vez por todas, a reposição da justiça, ou seja, uniformizar horários e implementar as reduções de horário por antiguidade. O programa de governo deixou cair a redução de horário por antiguidade, espero que os grupos parlamentares destes 3 partidos assumam o compromisso e tomem a iniciativa parlamentar para honrar o que afirmaram no período pré-eleitoral.

Aguardemos!

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 12 de Dezembro de 2020


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

programa do XIII governo – educação para “inglês ver” (parte 2/3)

foto by Madalena Pires
(continuação)

Vejamos agora mais três novidades curriculares, também no âmbito da promoção do sucesso.

“(…)

• introduzir o ensino de tecnologias de informação e comunicação desde o 1º ano de escolaridade;

• garantir a oferta de uma segunda língua estrangeira como complemento escolar, de frequência facultativa, no primeiro Ciclo do Ensino Básico e como oferta curricular de escola no segundo ciclo;

• promover, a título experimental e voluntário, o ensino bilingue, em português e inglês, no sistema educativo açoriano; (…)”

As tecnologias de informação e comunicação (TIC) devem fazer parte da formação geral dos cidadãos, julgo que estaremos de acordo. Mas qual será a vantagem desta introdução precoce na matriz curricular, ou seja, logo no 1º ciclo!? Mais tempos curriculares, mais tempos no espaço formal de sala de aula. Se há alguma coisa que os alunos do 1.º ciclo necessitam não será, por certo, mais carga horária formal. Mais tempo na Escola sim, mas em atividades lúdicas que favoreçam a aprendizagem das áreas curriculares estruturantes.

foto by Aníbal C. Pires
Mas como leram não é só. O governo PSD/CDS/PPM propõe-se, ainda que com caráter facultativo, promover a iniciação a uma segunda língua estrangeira no 1.º ciclo (atualmente existe oferta e frequência obrigatória de Inglês).  A oferta de uma segunda língua estrangeira no 1.º ciclo, à semelhança da introdução das TIC, corresponde a uma sobrecarga curricular que, salvo melhor opinião, irá prejudicar outras aprendizagens básicas, mas fundamentais para que o percurso escolar dos alunos tenha sucesso. Por outro lado, a aparente liberdade associada à oferta facultativa no 1.º ciclo terá como efeito a marginalização dos alunos que não aderirem a esta oferta educativa.

Não nego a importância, bem pelo contrário valorizo um currículo que contemple o ensino de línguas estrangeiras, mas é óbvio que mais importante será a aprendizagem e o domínio da língua materna. Como é do conhecimento público o sucesso educativo na Região e no País está aquém do aceitável e uma das razões, possivelmente a que mais contribui para insucesso escolar, é a fraca competência, da generalidade dos alunos, nos diferentes domínios da língua materna. Não é possível aprender conteúdos e conceitos da Matemática, da Biologia, da Física, da Química, da História, ou do que quer que seja, sem saber ler, escrever e falar corretamente português.

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Estas duas propostas parecendo importantes e inovadoras demonstram, desde logo, uma visão deturpada do que deve ser o currículo no ensino básico e vão-se constituir como um forte contributo para a desvalorização da já depauperada condição da língua portuguesa.


A obrigatoriedade de frequência no 2.º ciclo contribuirá, como já afirmei para o 1.º ciclo, a uma sobrecarga horária desnecessária e perniciosa. O esforço devia centrar-se em atividades que favoreçam a aprendizagem da língua materna, não com mais horas curriculares, mas com atividades didáticas fora do formalismo da sala de aula.

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Enfim são opções que carecem de melhor esclarecimento, mas que, para já, só as posso classificar como mais uma inutilidade.



(continua)

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 11 de Dezembro de 2020


programa do XIII governo – educação para “inglês ver” (parte 1/3)

foto by Aníbal C. Pires
A educação é sempre alvo de pomposas e apaixonadas declarações políticas. Mas, tratando-se de paixão, logo um estado irracional, neste caso tem associada a razão. 

A Educação é a génese de qualquer modelo de desenvolvimento, seja ele, retrógrado ou progressista. Julgo que é essa a premissa que une o espetro político nas suas unânimes declarações de amor à Educação. 

Foi, quiçá, a primeira área que procurei quando o programa de governo se tornou público, não por estar apaixonado por ela, mas por ser professor. E confesso: surpreenderam-me o alcance de algumas medidas propostas. Uma visão de futuro para que tudo se mantenha como está, ou até possa piorar.  

Não vou dissecar as medidas propostas nem as declarações de intenção. Seria fastidioso para quem vier a ler este escrito. Assim, vou apenas referir duas ou três ações (intenções) que o XIII Governo regional pretende implementar.

E vou começar por algumas preocupações de ordem estrutural e pedagógica para não ser acusado de ter uma visão corporativa do objeto em consideração.

foto by Aníbal C. Pires
Diz então a proposta de programa de governo:

“(…) Com este desiderato, o Governo irá:

No âmbito da promoção do sucesso

• criar um modelo de treino educativo que potencie o sucesso de cada aluno, integrando as famílias no processo educativo dos seus educandos, (…)”

Ora cá está!! Deixemo-nos de métodos retrógrados vamos aderir ao “coaching educativo” para alunos e famílias. Isto é que é vanguardismo.

Eu, como perceberam é que utilizei o anglicismo porque os redatores do programa, e muito bem, na salvaguarda da língua materna escreveram “treino educativo”.

foto by Aníbal C. Pires
Eu diria, num outro registo, que a metodologia utilizada é uma prerrogativa do professor. Assim e na salvaguarda da independência profissional dos docentes esta imposição da tutela não é, de todo, admissível. Por outro lado, favorecer contextos de aprendizagem cooperativos (associativos e colaborativos), leia-se “treino educativo”, é uma prática que alguns docentes nunca abandonaram. Isto é, a novidade faz parte de uma antiga prática docente. Haja paciência!

(continua)

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 10 de Dezembro de 2020


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

programa do XIII governo – o igualitarismo neoliberal e um secretário trauliteiro

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Ontem, no debate do programa do governo regional, ficou clara a natureza trauliteira e truculenta do novo executivo.

O Secretário Regional das Finanças, Bastos e Silva, protagonizou um lamentável incidente que gerou equívocos e induziu a comunicação social a produzir manchetes como esta: “Bruxelas considera ilegais ajudas de 73 milhões de euros à SATA”

Bastos e Silva numa intervenção, feita com a solenidade que a tribuna da ALRAA lhe confere, informou o Plenário que tinha na sua posse informação que a Comissão Europeia tinha declarado ilegais as ajudas de Estado feitas à SATA e, quando questionado, manteve a afirmação até que foi requerido, ao Presidente da ALRAA e ao abrigo do Regimento, que o Secretário Regional entregasse uma cópia do documento para ser distribuída por todos os deputados. Bem! Não é possível, dizia Bastos e Silva. Porquê pergunta o leitor? Apenas por não existir nenhum documento, nem nenhuma decisão. Bastos e Silva então esclareceu que se estava a referir a uma vídeo conferência em sede de audiência prévia sobre o assunto. Lamentável!

Nem há documento, nem decisão. 

Oh senhor Secretário! V. Ex.a já tinha iniciado o seu mandato com um incidente aquando da transição de pastas entre o anterior e o atual governo. Todos percebemos que Sérgio Ávila não esteve presente numa reunião em virtude de V. Ex.a o não ter convidado. Agora mais esta.

Sobre a SATA, a Comissão Europeia e a dúbia posição do XIII Governo Regional sobre o assunto, muito mais se poderá dizer, mas por ora fico por aqui. Passemos ao choque fiscal.

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Mas se a natureza trauliteira e truculenta do governo e da maioria das bancadas parlamentares, eu sei que há quem goste, é uma evidência para quem tem assistido ao debate do programa de governo existem outros aspetos, em todas as áreas da governação, que dizem bem da natureza ideológica deste governo e de quem o apoia, o que aliás é motivo de orgulho para José Manuel Bolieiro, segundo o próprio.

Vejamos então o “choque fiscal” o seu significado, alcance e efeitos.

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Como sabemos a Lei da Finanças Regionais conferem a possibilidade de a Região reduzir a carga fiscal até ao máximo de 30%, coisa que já se verifica na taxa reduzida e intermédia do IVA, no IRS para escalões de rendimento mais baixos, sendo gradativa para os escalões de rendimento mais elevados, quanto ao IRC a majoração, independentemente da dimensão e volume de negócios das empresas a majoração é, para todas, 20%.

O choque fiscal proposto pelo governo nivela tudo e todos pelos 30% de redução da carga fiscal. Se em relação à taxa superior do IVA, só posso aplaudir, já o mesmo não posso fazer em relação ao IRC pois, o que seria justo era graduar a redução em função da dimensão das empresas, ou seja, se para uma micro, pequena ou média empresa faz sentido a redução de 30%, para uma grande empresa ou grupo económico já não. As grande empresas e grupos económicos recebem a maior fatia dos apoios públicos e contribuem muito pouco em sede de tributação.

Quanto ao IRS julgo que já todos percebemos que a proposta do governo PSD/CDS/PPM em nada vai contribuir para o combate à pobreza, isto é, a aplicação do diferencial de 30% a todos os escalões vai beneficiar quem tem rendimentos mais elevados, quanto mais elevados forem maior será o benefício líquido.

Atualmente a redução de 30% aplica-se a rendimentos do 1.º escalão do IRS, sendo que o 2.º escalão de rendimentos tem uma redução de 25% e todos os outros uma redução de 20%. Não sendo o ideal é, em minha opinião, mais justo do que a proposta de igualizar todos os escalões de rendimento, até porque o efeito prático beneficia apenas os rendimentos do trabalho que se situam muito acima da média salarial que é praticada pelo setor privado na Região.

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Esta proposta do governo PSD/CDS/PPM diz bem da sua natureza ideológica e da matriz neoliberal que o conforma.






Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 10 de Dezembro de 2020


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A homilia de José Manuel Bolieiro

Na apresentação do programa do XIII Governo Regional José Manuel Bolieiro brindou-nos com uma homilia parlamentar propagandística. Frases curtas e enunciação de intenções sem explicar como o vai fazer.

Houve no discurso uma dessas frases curtas que diz bem do seu pensamento político, o que não estranho, e que passo a citar: “Este Governo, orgulhoso das ideologias que o definem, fará do combate à exclusão e pobreza uma das suas prioridades, uma das suas destacadas bandeiras.” Como se isso fosse possível com tal matriz ideológica de que Bolieiro diz estar orgulhoso.

Não se trata de uma cortesia aos partidos que apoiam este governo, trata-se de reconhecer que está com o liberalismo económico e com o neofascismo, trata-se de, sem vergonha, afirmar que está do lado da barbárie social e económica, trata-se de uma traição à social democracia.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 9 de Dezembro de 2020


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Programa do XIII governo – “Autonomia” ou, das proclamações populistas e dos recuos

O “Compromisso com os Açores”, assim é designado o programa do XIII governo regional. É um documento que, como já referi em registos anteriores, mais não passa do que um enunciado de intenções e pouco mais. É possível encontrar algumas propostas concretas, mas todas elas se caraterizam por serem respostas que traduzem proclamações eleitorais ou visões unipessoais, como é o caso das finanças (redução de impostos) e da educação, sendo que no último caso, algumas das propostas nem sequer foram objeto de discussão durante a campanha eleitoral, refiro-me, por exemplo ao ensino bilingue (aulas em português e em inglês). Sobre estas e outras as opções programáticas e ideológicas vertidas no programa de governo virei, a seu tempo, com mais considerações, mas por hoje vou apenas centrar a minha atenção ao seu primeiro capítulo: “Autonomia”.

As propostas de reforma da autonomia provocam, quase sempre, apaixonadas, demagógicas e populistas discussões o que levanta algumas dificuldades para discutir o assunto com alguma racionalidade.

A autonomia constitucional é um processo dinâmico de aperfeiçoamento, desde logo no seu uso pelos órgãos de governo próprio. Nem sempre os órgãos de governo próprio exercem todas as competências que estão consagradas constitucionalmente, nem as opções políticas que nos mantêm na cauda das regiões mais pobres do País e da União Europeia resultam diretamente de estrangulamentos constitucionais e estatutários.

Vejamos então o que propõe o XIII Governo Regional para aquilo a que designa de “Autonomia de Concretização” e de Autonomia de Responsabilização”:     

“(…) o Governo reconhece a necessidade de desenvolver e aprofundar a Autonomia, desde logo, nos seguintes aspetos:

• Revisão Constitucional, contemplando a clarificação e ampliação das competências legislativas regionais, uma adequada repartição de competências entre o Estado e as Regiões Autónomas quanto ao domínio público marítimo, a designação de um juiz para o Tribunal Constitucional por cada Região Autónoma e o fim da proibição da existência de partidos regionais;

• Revisão do Estatuto Político-Administrativo em consequência da revisão constitucional;

• Revisão das leis eleitorais, contemplando a redução do número de Deputados à Assembleia Legislativa, estudando a limitação dos seus mandatos, e a criação de um círculo eleitoral próprio no âmbito da eleição dos Deputados ao Parlamento Europeu.

• Alteração da lei que estabelece o regime do estado de sítio e do estado de emergência, atribuindo à Região competência para a sua execução no território regional.

• Aprovação de uma lei, no quadro da emergência sanitária, que clarifique as competências das autoridades de saúde regionais na prevenção e resposta à situação de pandemia. (…)

Pois é! Muito aquém do que foi dito em campanha eleitoral. Mas não tem importância a amnésia coletiva e a impunidade política e eleitoral tudo branqueiam.

Não me vou referir ao que não consta. Quanto ao que é proposto é bom que se diga que nenhuma das medidas propostas, se vierem a ser concretizadas, contribuirá para resolver os problemas sociais e económicos que mais nos afligem e que o próprio governo, em certa medida, reconhece e, para as quais, apresenta propostas de resolução.

Vejamos:

Todas as medidas propostas para a reforma da autonomia (com exceção das leis eleitorais, mas dentro dos limites constitucionais), só se podem concretizar no quadro de uma revisão constitucional. Revisão sem data marcada e, mesmo que venha a acontecer durante a vigência deste governo regional, a necessitar de apoio político e parlamentar qualificado dos partidos representados na Assembleia da República (AR) pois, como se sabe, é à AR que compete a revisão constitucional. Mas esqueçamos os aspetos formais e procuremos verificar que vantagens podem advir para a Região com o que é proposto. A eficácia das medidas propostas resolverá, por exemplo: a crónica dependência económica da Região; o elevado insucesso e abandono escolar; o elevado risco de pobreza; diminuirá o número de cidadãos que empobrece a trabalhar; ou, as assimetrias regionais e mesmo dentro da própria ilha (S. Miguel). Não me parece.

Quanto às leis eleitorais direi que para diminuir o número de deputados terá de se abdicar ou do círculo de compensação e, se assim for, é necessário encontrar uma forma de evitar a desproporcionalidade eleitoral, ou então acabar com os círculos eleitorais de ilha e garantir a proporcionalidade direta com a sua substituição por um único círculo eleitoral. Quer uma, quer outra solução, como se constata, têm subjacentes perigos reais para a democracia açoriana.

Quanto à existência de círculos eleitorais uninominais, em minha opinião não são desejáveis, mas que fique claro que isso só é possível após uma revisão constitucional que acabe com a sua proibição. Quanto aos partidos regionais atente-se à experiência e ao histórico do PDA e, facilmente se percebe, que o caminho, podendo ser, não é por aí. Por fim o círculo açoriano ao Parlamento Europeu que tantos apoios colhe é mais uma das falácias alimentadas, quer pelo PSD quer pelo PS, isto é, os deputados eleitos para o PE integram-se nas suas famílias políticas europeias e seguem com fidelidade canina as suas diretrizes políticas. Orientações que como sabemos servem o diretório político e financeiro da UE das quais não fazem parte os Açores. Esta é uma das tais propostas para alimentar o populismo.

Neste primeiro capítulo nada de novo. O XIII Governo Regional à semelhança do anterior dedica-se, no que à autonomia diz respeito, à demagogia e ao populismo escudando-se na necessidade da “reforma da autonomia” para justificar as dificuldades que o Povo açoriano vai continuar a sentir. Outros escudos estão preparados como seja a pandemia e, sobretudo, a pesada herança que receberam do longo período de governação do PS.


O novo ciclo político nos Açores a que o XIII Governo Regional chama de Autonomia de Concretização e de Responsabilização inicia-se sem garantia de realização, pois, as medidas propostas no capítulo “Autonomia” dependem de vontades e decisões externas. Ou seja, o XIII Governo Regional abre o seu programa a “sacudir a água do capote”.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 8 de Dezembro 2020



  


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

programa do XIII governo – ou (mais) uma enunciação proclamatória

Depois de uma leitura superficial da proposta de programa do XIII governo (virão outras), diria que: a coligação e os apoiantes parlamentares ainda não passaram da fase das proclamações, o programa de governo, da forma como está concebido, mais parece um programa eleitoral. Repetem-se intenções, umas assim outras assim assim, mas na generalidade são, apenas, intenções. Propósitos nem sempre bem-intencionados, como procurarei ir demonstrando. 

Virei, nos próximos dias, com uma análise, tão detalhada quanto me for possível, à proposta de programa a médio prazo que vais ser discutida durante a semana na ALRAA. Por agora vou limitar-me a uma questão que tenho vindo a adiar, mas como merece referência no programa do XIII governo regional, julgo ser o momento adequado para expressar a minha opinião sobre o formato proposto para a Autoridade Regional de Saúde. Evitando, na medida do possível, referir-me à personalidade que para isso está indigitada. Não será fácil pois, o Tato Borges, “Membro da Ordem Carmelitas Descalços Seculares” (retirado do FB do próprio), é daqueles personagens com pouco tato e, como tal, propício ao anedotário político regional. Veremos!


O Programa do XIII governo regional para justificar a criação de mais um “pelouro”, na área da saúde, diz o seguinte (pp 18): 

“(…) - É também na experiência adquirida que temos de encontrar as respostas que se impõem. Na governação em pandemia é preciso autoridade e capacidade de decisão. O Governo defende, neste Programa de Governo, a separação entre o cargo de Diretor Regional da Saúde e a Autoridade Regional de Saúde, que será concretizada pela apresentação à Assembleia Legislativa de uma proposta de decreto legislativo regional, com a urgência que as circunstâncias impõem.

- Para este Governo a opção é clara: cabe à Direção Regional da Saúde o rigor na gestão, a qualidade dos serviços prestados, a eficácia na organização e nos procedimentos do Sistema Regional de Saúde. Compete à Autoridade Regional de Saúde a planificação estratégica do combate epidemiológico e o exercício das competências reservadas a uma autoridade de saúde, de natureza independente. (…)”

A justificação está ancorada “… na experiência adquirida…” e na necessidade de “… autoridade e capacidade de decisão.” As perguntas que se colocam, desde logo, são: Onde ganhou este governo a experiência!? De quem é a autoridade e a capacidade de decisão!? A experiência é a que conhecemos, Nenhuma. A autoridade e a capacidade de decisão serão, sempre, do titular da pasta da Saúde ou, quiçá do presidente do governo. Isto é, bem podiam ter elaborado melhor a justificação para a criação deste novo departamento na área da saúde.

Mas as palavras chave neste arrazoado que pretende justificar a contratação de Tato Borges são as seguintes: “(…) uma autoridade de saúde, de natureza independente. (…)”. Como está bom de ver isto é uma tramoia pois, a Autoridade Regional de Saúde dependerá sempre do Governo. Como tal não vejo onde esteja a independência. Se alguém vir agradeço que me informe onde está essa tal independência.

Face à arquitetura dos poderes autonómicos só vejo uma possibilidade de conferir independência à Autoridade de Saúde, face ao governo. Isto se é mesmo um órgão independente que se pretende criar. Eu diria que, salvo melhor opinião e uma vez que o poder reside na ALRAA, o titular da Autoridade de Saúde devia ser eleito na ALRAA, por proposta do governo, e à ALRAA deveria ficar obrigado a responder politicamente.

Retirar à Direção Regional de Saúde as competências que estão afetas à Autoridade de Saúde é, como já disse, uma falácia que tem como objetivo garantir que nos próximos meses a pressão da opinião pública, nos assuntos que à Covid-19 dizem respeito, se vão centrar no Tato Borges poupando politicamente a tutela da saúde (Secretário e Diretor Regional). Apenas isso, mais os custos financeiros que estão inerentes a esta tomada de decisão.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 7 de Dezembro de 2020




sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dar importância ao que não é relevante

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Já são conhecidos algumas das personalidades nomeados/designados para assumir a função de Diretores Regionais. Estas personalidades são titulares de um cargo que é tutelado por um membro do Governo, ou seja, serão meros executores das políticas que o XIII governo regional vier a adotar. E, uma vez que grande parte da atividade social, cultural, política e económica está enquadrada legalmente a margem para a discricionariedade de um Diretor Regional é muito reduzida. Sim, sei que existe alguma, mas, ainda assim, e como disse, está restringida e é facilmente escrutinada.

Isto a propósito das ondas de choque que a indigitação do Padre Ricardo Tavares para Diretor Regional da Cultura provocou. Ao que parece circula por aí uma petição (já com centenas de subscritores) contra a nomeação desta personalidade. Sei que sim, as pessoas são importantes, mas que diabo não o são tanto assim.

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Quem espera que Ricardo Tavares acabe com as touradas, pode esperar sentado. Este governo não vai tomar nenhuma posição sobre o assunto, ou seja, os apoios vão continuar e nada vai ser alterado, ou se o vier a ser só poderá ir no sentido do reforço dos apoios. Quem se lembra da discussão parlamentar sobre a “sorte de varas” sabe quem eram os seus mais acérrimos defensores, quem não se lembra pode sempre ir informar-se e ler o “diário das sessões” da ALRAA.

As políticas públicas para a cultura, assim como para outras áreas, são desenhadas pela tutela (Secretários), por outro lado as eventuais alterações ao quadro legal terão de ser aprovadas pela ALRAA, não porque o governo é sustentado por apoios de incidência parlamentar, mas porque sempre assim foi. 

Ser o Padre Ricardo Tavares o Diretor Regional da Cultura, ou outra personalidade qualquer é, para mim, completamente indiferente. Preocupa-me mais que a Cultura seja tutelada por uma personalidade, Susete Amaro, da qual não se conhece um único pensamento sobre cultura ou, sobre qualquer outra das áreas que vai tutelar. Ao menos do Padre Ricardo Tavares, concordando-se ou não, sempre é conhecido algum pensamento.

A polémica à volta de Ricardo Tavares serve apenas para alimentar ódios de estimação e distrair a malta.

Importante mesmo é perceber como vai se estruturar o XIII governo, espero pela orgânica. 

Importante mesmo é conhecer o programa do XIII governo, aguardando.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 3 de Dezembro de 2020


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

mulheres do Mundo - a abrir Dezembro

Palestina durante a Nakba (1948)



Para iniciar o mês que põe fim ao ano. 

Mês de renovada esperança 

e... 

luta. 




nativas americanas (Detroit, USA)




Sim! 

Luta 

Só com esperança não vamos lá.





Guatemala






Bonitas são as mulheres que lutam

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Há um ano. "Um Natal à Viola", de Rafael Carvalho

 



Texto de apresentação do CD

Um Natal à Viola, de Rafael Carvalho

Teatro Micaelense

Ponta Delgada, 27 de Novembro de 2019





E do velho se faz novo

Minhas senhoras e meus senhores, 

Caros amigos,

Se outros motivos não houvesse a vossa presença, que muito agradeço, diz bem da importância e da ligação que diferentes gerações outorgam às nossas raízes culturais. Só por isso, pela Vossa presença, diria que é já motivo de grande satisfação este novo trabalho musical que o Rafael Carvalho partilha connosco. Não fossem a Viola da Terra, o novo disco e o Rafael Carvalho, motivos mais do que suficientes para este serão de encontros e reencontros com a sonoridade única da viola de arame.

Sim. A razão primeira pela qual estamos aqui, o Rafael que me desculpe, não é por ele. Estamos por ele, mas estamos, sobretudo, pela viola que nos toca. Estamos pela sonoridade de um instrumento musical popular com o qual nos identificamos e que faz parte da nossa memória coletiva. Claro que estamos pelo Rafael e, é a ele que dirijo um agradecimento especial pelo convite que me endossou para fazer a apresentação do seu último trabalho discográfico. Um convite que aceitei sem reservas e me honra, mas que me surpreendeu, pois, sendo um melómano, não sei uma nota musical que seja.

O Rafael não devia saber disto, se o soubesse teria procurado quem pudesse, com propriedade, falar da qualidade da execução e dos arranjos que fez para que, só com a viola da terra, percorrer temas tradicionais de Natal com origens populares tão diversas, aos quais acrescentou duas canções de autor e, ainda, um tema original.

Não sei quem corre o maior risco, se eu, se o Rafael. Eu, por vir meter a foice em seara alheia, o Rafael por colocar aqui um leigo a falar da sua música e, de alguma forma, a servir de suporte para a promoção e divulgação do seu trabalho enquanto músico e compositor. Mas vou tentar, lá isso vou.

Ainda antes de uma abordagem ao novo disco do Rafael Carvalho, permitam-me algumas referências ao instrumento musical em que este músico, professor e difusor da viola da terra, de dois corações, ou de arame, se exprime de forma exímia. Para o instrumento adotem a designação que preferirem, importante mesmo é que falamos do único instrumento musical típico dos Açores (A Viola de Arame nos Açores, João Alfredo Ferreira Almeida, Publiçor, 2.ª ed., 2010).

Trata-se de um cordofone que tem a sua origem nas violas de mão ou Vihuelas* e que em Portugal, consoante o gosto, os materiais disponíveis, mas também as técnicas de execução, adotou diferentes formas. As violas de arame serão, pela sua história e pela apropriação popular, até à introdução da guitarra clássica, ou viola, e da vulgarização da guitarra portuguesa** com a sua associação ao fado, os instrumentos musicais da classe dos cordofones, verdadeiramente portugueses. Sendo que, segundo alguns autores, estes instrumentos musicais são uma rara sobrevivência das violas que existiam no continente europeu (A Viola de Arame nos Açores, João Alfredo Ferreira Almeida, Publiçor, 2.ª ed., 2010)

As violas de arame em Portugal são conhecidas pelas seguintes designações: Braguesa, Amarantina, Toeira, (estas do Norte e litoral), a Beiroa e a Campaniça (do centro e Sul), e ainda, na Madeira a Viola Madeirense e o Machete, vulgo Braguinha (assim como uma espécie de cavaquinho, que terá sido o cordofone português mais disseminado pelo Mundo. O mais conhecido será o seu parente ukelele do Hawai. Mas a viola de arame também atravessou o Atlântico e viajou. No Brasil a Viola Caipira ou Sertaneja é, também, uma viola de arame que terá sido levada, quiçá dos Açores, para o sertão brasileiro.

Nos Açores as violas de arame, sim são duas, a Viola de Corações, talvez a mais divulgada e conhecida, e a Viola de Boca Redonda, da ilha Terceira. A Viola de Dois Corações, esta que o Rafael Carvalho maneja com uma mestria admirável, ainda tem algumas variações no tamanho e na afinação. Mas essas questões ficarão para os especialistas.

Estarão, caros amigos, a perguntar-se porque estou a dedicar tanto tempo ao instrumento musical!? Têm razão, mas existe uma justificação, ou várias, para eu dedicar esta parte da apresentação do disco Um Natal à Viola à história das violas de arame. Passo a explicar.

A Viola da Terra, mas também a Beiroa, foram caindo em desuso por razões diversas, esta última de forma quase dramática (a Viola Beiroa esteve preste a tornar-se um objeto museológico não fossem alguns músicos e instituições a recuperar-lhe o uso). Com a Viola da Terra também se assistiu ao declínio do seu uso e no final da década de 90, do século passado, o número de violas e de mestres violeiros era quase residual. Em S. Miguel, diz-nos José Alfredo Ferreira Almeida, e cito: “(Não é exagero afirmar-se que, atualmente e pelo menos em S. Miguel – que melhor conhecemos – a viola da terra, como é habitualmente designada, é quase uma raridade, algumas vezes convertida em relíquia de família, com funções meramente decorativas, confinada a museus, coleções particulares, grupos folclóricos e a uns quantos apreciadores, apaixonados pelo seu timbre. (…)”. Fim de citação.

É certo que alguns mestres violeiros dos quais destaco, Carlos Quental e, em particular Miguel Pimentel desenvolveram um ciclópico trabalho, através do seu ensino e consequente difusão das técnicas de execução, para contrariar o declínio do uso da Viola da Terra. O mestre Miguel Pimentel durante parte das décadas de 80 e 90 manteve no Conservatório de Ponta Delgada cursos livres apara aprendizagem deste instrumento musical.

E o Rafael Carvalho a par de outros exímios executantes de viola da terra, como o Ricardo Melo, são exemplos vivos desse legado de Carlos Quental e Miguel Pimentel. 


Sobre Proteção e Valorização do Património Material e Imaterial, afinal também é disso, ou sobretudo disso, que estamos a falar, diria que  não sou um conservacionista apenas pelo valor simbólico do património, seja ele móvel ou imóvel, seja ele material ou imaterial, embora considere que a sua salvaguarda apenas na perspetiva conservacionista assume, em si mesmo, grande relevância e, diria mesmo que relativamente a alguns desses bens a intervenção e salvaguarda, não poderá ir além disso, Preservar e conservar. Defendo uma perspetiva de preservação e conservação do património cultural ligado ao seu uso e fruição pelos cidadãos. E é possível modernizar e adequar aos nossos tempos sem perder a alma. Deixo-vos dois exemplos de preservação, de valorização e até de recuperação de património cultural regional, sem nenhuma adulteração às suas formas originais, conseguidas e julgo que bem conseguidas, por uso diverso do original num dos casos e, no outro caso mantendo o uso que lhe conferiu valor, mas dando-lhe novos palcos.

Depois do declínio da caça à baleia e da sua total proibição, os botes baleeiros, tendo-se-lhe acabado o uso, estavam predestinados a serem meras peças estáticas de museus e núcleos museológicos, a assim foi durante um largo período de tempo. Hoje e, devido à introdução de um novo uso, as regatas e o turismo, damos conta que muitos deles foram totalmente recuperados e é com agrado que os vemos de velas enfunadas a sulcar o mar das nossas baías. A viola da terra, de arame ou de dois corações nunca tendo estado em verdadeiro perigo de desuso pois as festas populares, os ranchos folclóricos e outras manifestações populares assim o garantiriam, todavia verifica-se uma evolução no seu uso, ou seja, continuando a marcar a sua indispensável presença nas festas populares este instrumento musical, sem que tivesse tido nenhuma alteração é hoje ensinado nos conservatórios regionais de música, procura novas sonoridades, novos instrumentos parceiros, atrai novos aprendizes e, por consequência, atrai novos públicos.

E esse tem sido o trabalho inexcedível de Rafael Carvalho. Este rapaz da Ribeira Quente tem dado um valioso contributo, não só para a salvaguarda da Viola da Terra, mas sobretudo para a reafirmação do instrumento musical que melhor traduz a alma açoriana. 

O Rafael para além de ser um exímio executante de viola da terra, tem desenvolvido um trabalho complementar no ensino formal e informal, conseguindo o reconhecimento oficial do ensino de Viola da Terra no Conservatório Regional, promove encontros anuais da Viola da Terra com as violas de arame, do território continental, da Madeira e do Brasil, dinamiza orquestras, concertos, encontros de músicos de Viola da Terra de toda a Região, criou a Associação de Jovens Viola da Terra, e, por fim, embora não seja só, tem promovidos e participado em momentos musicais onde seria impensável a entrada deste instrumento de música popular. Um dos últimos, para não referir outros, foi a sua participação num espetáculo que, como disse Vânia Dilac, mais parecia uma improbabilidade, juntar o Soul com a Viola da Terra. E era uma improbabilidade, até acontecer. Este é apenas um exemplo de que a Viola da Terra, pelas mãos do Rafael, tem vindo a fazer. Ou seja, um percurso de afirmação em palcos que até há alguns anos lhe estavam vedados.

Mas se o Rafael Carvalho é tudo isto, é também, um autor de livros didáticos sobre o ensino da viola da terra, tem três livros publicados, uma coleção que tem por título Método para a Viola da Terra, níveis Iniciação, Básico e Avançado.

Como qualquer outro músico instrumentista o Rafael Carvalho é também um compositor. Tem cinco discos disponíveis. Estamos aqui, embora até agora não pareça, para conhecer o seu mais recente disco, Um Natal à Viola. Os trabalhos que antecedem este, são: Origens, 2012, Paralelo 38, 2014, Relheiras, 2017, e, 9 Ilhas 2 Corações, 2018. Com exceção do quarto trabalho discográfico, 9 Ilhas 2 Corações que percorre exclusivamente o cancioneiro tradicional açoriano, todos os outros integram temas originais da autoria do Rafael Carvalho. Com especial destaque para Relheiras que não sendo exclusivamente de originais é-o, na sua essência, dos dez temas de Relheiras, sete são originais da autoria do Rafael Carvalho.

A composição de temas originais faz parte, em minha opinião, da constante procura de novas sonoridades para a viola da terra e resulta da apuradíssima técnica de execução, de domínio e de conhecimento de todas as potencialidades deste instrumento musical. Os originais de Rafael Carvalho são experimentais, exploratórios, revelam todo o seu virtuosismo e contribuem para a criação de um novo e elaborado reportório para a Viola da Terra.

Um Natal à Viola, foi o pretexto para nos juntarmos neste magnífico espaço cultural de Ponta Delgada. São 14 temas executados pelo Rafael Carvalho onde apenas se ouve o som da Viola da Terra, a viola de arame dos Açores da qual se libertam sons que se ouvem no Alentejo, na Beira Baixa, em Trás os Montes, na Madeira e, naturalmente, nos Açores. Todos estes temas são alusivos à quadra natalícia e provêm do cancioneiro popular.  Mas o Rafael que não deixa os seus créditos por mãos alheias, não se fica apenas pelo cancioneiro popular e presenteia-nos com a interpretação de dois temas de autor, Noite Feliz, de Franz Gruber e, Adeste Fideles, de John Wade. E, na minha humilde opinião, isto não acontece por acaso. O Rafael Carvalho, na sua permanente ação de valorização da Viola da Terra, serve-se destes dois temas clássicos e sobejamente conhecidos para nos dizer, a nós e ao Mundo, que a Viola da Terra não está confinada a ser um mero repositório da música tradicional.

Continua a sê-lo, e ainda bem, mas pelas mãos do Rafael e dos seus jovens alunos, a Viola da Terra já caminha por outros territórios musicais e isso só pode ser objeto da nossa satisfação e louvor. Por fim uma breve referência ao original que dá o nome ao quinto CD do Rafael Carvalho, ou seja, música que encerra este trabalho do Rafael Carvalho, Um Natal à Viola. Este original confirma o que tenho vindo a dizer sobre os novos caminhos da Viola da Terra e o trabalho exploratório e experimental que o Rafael tem vindo a desenvolver. Tem o timbre inconfundível da Viola da Terra e uma toada que nos faz viajar pela quadra natalícia, mas esta música está liberta dos sons tradicionais. Mesmo para um ouvido duro como o meu é possível encontrar diferenças substantivas, entre as duas músicas tradicionais do Natal micaelense que integram este disco, e por consequência adaptadas à Viola da Terra, e o original que o Rafael Carvalho compôs para fechar o seu quinto trabalho discográfico. Certamente teremos oportunidade de verificar isso mesmo quando o autor executar esse tema. Não sei se está no alinhamento, mas conto com isso.

Resta-me agradecer, uma vez mais a vossa presença, mas também a atenção que me dispensaram. Obrigado!

* Instrumento de cordas ibérico. A primeira menção a estes cordofones data do Século XV.

**Resulta da evolução e adaptação do “cistre europeu renascentista”. O cistre, ao contrário da cítara, tem as cordas esticadas para além da sua caixa de ressonância.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 27 de Novembro de 2019


terça-feira, 24 de novembro de 2020

Suspensa. Nem negativo, nem positivo.

O XIII Governo regional tomou hoje posse. Os discursos de circunstância foram isso mesmo, de ocasião e, como tal, não vou perder tempo com eles. Interessam-me mais as intenções que serão vertidas no programa de governo a apresentar à ALRAA e, sobretudo, a sua execução após a aprovação.

Hoje ao princípio da noite foi divulgada a primeira, ou uma das primeiras decisões, do novel governo, o tal da mudança e da humildade, e veja-se suspende por via de um Decreto Regulamentar Regional, uma norma de um outro Decreto Regulamentar Regional que entra em vigor amanhã (25 de Novembro) e que foi publicado no Diário da República de hoje (24 de Novembro). Ou seja, a obrigatoriedade de apresentação de teste negativo ao Sars-Cov2 pelos passageiros que viajam de S. Miguel e Terceira para as outras ilhas, que entra em vigor amanhã (25 de Novembro), foi suspensa até estarem reunidas condições para que os passageiros possam aceder aos laboratórios convencionados (não se sabem quais) para a realização do teste.

O que menos precisamos, nesta e noutras questões, é de falta de clareza. O XIII Governo regional iniciou o seu mandato a contrariar uma decisão que, sendo do anterior Governo, também era sua (José Manuel Bolieiro foi ouvido). Tenho consciência que não podia ser de outra forma mas, já a tinha quando a decisão foi tomada.

Amanhã veremos qual vai ser a atitude da transportadora aérea regional perante os passageiros que viajam de S. Miguel e Terceira para as outras ilhas do arquipélago.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 24 de Novembro de 2020


escolher o alvo certo

Imagem retirada da internet
As medidas decorrentes da regulamentação da prorrogação do “estado de emergência” provocaram alguma indignação nos Açores, ou melhor, em alguns cidadãos ilhéus. A revolta está direcionada para o Representante da República e para o governo de António Costa e tem subjacente a ideia do centralismo lisboeta.

Não vou tecer grandes considerações sobre este assunto, mas, salvo melhor e douta opinião, não são estes os alvos. A situação decorre do decreto presidencial que determinou o “estado de emergência”, embora o decreto seja do presidente, como se sabe, foi validado, à semelhança dos anteriores, pela Assembleia da República, depois de ouvidas a Regiões Autónomas. Ou seja, quem o aprovou, conhecendo o quadro constitucional, é, em primeira instância, responsável pela situação que está na origem da indignação.

E a votação da Assembleia da República que aprovou a proposta presidencial de renovação da declaração do estado de emergência foi a seguinte:

A favor: PS, PSD e 1 deputada não inscrita;

Contra: PCP, PEV, Chega, IL e 1 deputada não inscrita;

Abstenção: BE, CDS e PAN

A discussão sobre a existência, ou não, de Representante da República para as Regiões Autónomas é uma outra e tem sede num processo de revisão constitucional. A presente questão, quer se goste quer não, decorre da atual arquitetura do Estado.

Quanto aos efeitos do “estado de emergência” nos Açores responsabilize-se o seu autor e quem viabilizou a sua renovação.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 24 de Novembro de 2020


domingo, 22 de novembro de 2020

Há um ano. Contos Bizarros, de João Pedro Porto

 

Escrita incomum, Leitura estimulante (*)

Antes de vos falar do livro e do autor, razão maior que nos mobilizou para, nesta tarde quase noite, nos juntarmos neste espaço que, sendo novo, é um lugar recuperado à nossa memória coletiva, permitam-me algumas palavras de agradecimento.

E agradeço, desde logo, a Vossa presença. Presença sem a qual pouco sentido faria este momento. Os livros cumprem a sua finalidade por via dos leitores e, neste caso, os leitores não faltaram à chamada.

Estamos num lugar de livros, de leitores, de escritores, de editores e livreiros e, por isso, quero deixar um agradecimento, na pessoa do Senhor Ernesto Resendes, ao Grupo Publiçor/Nova Gráfica/editora LetrasLAVAdas que hoje inaugura oficialmente  esta livraria, num espaço retomado para o presente da cidade de Ponta Delgada e que, permitam-me a ousadia, é um contributo para nos devolver a alma da cidade. Não só, mas também por isso, fica o meu reconhecimento público à LetrasLAVAdas.

Ao João Pedro Porto, não sei se agradeça o convite para esta empreitada, afinal eu gosto muito mais de estar do Outro Lado, gosto muito mais de ouvir do que falar. Mas sim, agradeço convicta e sinceramente o convite do João Pedro para fazer, em partilha com a Leonor Sampaio, a apresentação pública do seu livro Contos Bizarros

Convite que me surpreendeu, mas que me muito me honra e ao qual acedi sem reservas, mas com a consciência de que pendia sobre mim uma enorme responsabilidade. Ainda assim aceitei o desafio pois, não sou pessoa de recuar perante os reptos que me colocam, sejam eles de que natureza forem.

O João Pedro Porto e a sua obra não necessitam de apresentações, contudo, não posso deixar de referir que este jovem escritor, sendo micaelense de nascimento, é antes de mais e depois de tudo um autor do Mundo, com vasta obra já publicada. Este é o seu sétimo título, e é tido no contexto nacional como um dos autores de referência da nova geração de escritores portugueses. 

O João Pedro tem quatro romances publicados. O Rochedo que Chorou, 2011, O 2egundo M1nuto, 2012, Porta Azul para Macau, 2014, A Brecha, 2017.

O João Pedro publica agora o seu terceiro livro de contos, para trás ficam O Homem da Mansarda, 2014, e Fruta do Chão, 2018, este último em versão bilingue, traduzido para o espanhol por Blanca Martin-Calero. Mas as experiências literárias do João Pedro não se ficam por aqui, são, também, suas as letras dos álbuns musicais Terra do Corpo e Sol de Março, de Medeiros e Lucas. A produção literária do João Pedro Porto não se esgota apenas nos seus títulos, mas avancemos.

O seu último romance A Brecha, de 2017, foi finalista do Prémio Casino da Póvoa, Correntes d'Escritas. O blogue literário “Somos Livros”, referencia João Pedro Porto como um dos cinco autores portugueses a conhecer, sobre João Pedro e o seu último romance disse Valter Hugo Mãe: “Reverberam séculos nas suas construções. Um invasor absoluto, um denunciador. João Pedro Porto é cénico, performativo, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer.”

Também por cá foram produzidas algumas opiniões sobre o último romance de João Pedro Porto de entre as quais destaco o magnífico texto de Leonardo Sousa, “Atrelai o pensamento à popa destes navios – uma abordagem ao universo d’A Brecha”, publicado no blogue “um elefante na loja de cerâmica”.

E foi com a Brecha, ainda antes dos concursos e das opiniões oriundas dos meios literários regionais e nacionais que conheci o João Pedro Porto escritor e cidadão, ou seja, esta é uma relação que nasceu da leitura do seu último romance. Foi o gosto pela leitura e pela escrita que nos aproximou. Essa será, quem sabe, a razão pela qual estou aqui para vos apresentar Contos Bizarros.

Mas, ainda antes de vos falar destes contos, e assim como uma espécie de aperitivo, permitam-me citar A Brecha e Fruta do Chão para se perceber de que escrita laboriosa e densa, mas encantadora, estamos a falar.

(…) A terra terá sido sempre lida com as páginas e as cabeças erigidas a Norte, salvo pelos povos da meia-lua. Desse Norte se disse, por anos, ser o hemisfério superior, que é como quem diz: de superior condição. O Sul será sempre algo selvático, onde se dançam os tangos e se matam os homens por ninharias. A futilidade é mortal, no Sul. Será por isso que lá vamos. Não há banalidade no Sul. Se o mistério tiver esconderijo, esse será sempre austral. Até o órgão mais carnal e o pórtico mais recôncavo de todo o éden moram no lugar sulino do corpo dos homens e das mulheres. (…)

Dirão que bem podia ser dito de uma outra e simples forma. Sim podia, mas, para nosso deleite, a linearidade não é uma caraterística da escrita de João Pedro Porto.

A propósito deste trecho de A Brecha, do qual gosto particularmente, acrescento da minha lavra: O meu Norte é o Sul. 

Fica um outro fragmento da escrita de João Pedro, agora de um dos contos de Fruta do Chão.

(…) A filha da lavadeira, essa, era cereja-brava, embrulhada em alfazema. Dançavam-lhe as bordas da saia num vento que não fazia. Parei de olhar sem modéstia nem tempo. Ela olhou também, e sorriu vermelha. Como uma cereja, pensei, e olhei mais um pouco. Oh quantas glórias trocariam beligerantes guerreiros por uma vida de alfazema. (…)

Há, certamente, muitas formas de descrever e cantar o balancear do corpo feminino. Vinicius de Moraes aborda esse balancear na conhecida canção A Garota de Ipanema quando diz: “(…) o seu balançado é mais que um poema (…)”, mas João Pedro Porto fá-lo de um jeito inigualável e sem recurso à utilização de uma referência, que seja, à anatomia feminina, e recordo: 

(…) Dançavam-lhe as bordas da saia num vento que não fazia (…). Esta é uma escrita que não está ao alcance de todos. Valter Hugo Mãe tem razão quando afirma que o João Pedro Porto é: (…) “cénico, performativo, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer.” (…).

Depois desta breve introdução à escrita de João Pedro Porto vamos então ao que nos traz e junta aqui, os Contos Bizarros.

Este livro tem algumas peculiaridades que importa, antes de mais, referir. 

É uma edição bilingue, mas não tem tradutor. Pois é, o João Pedro Porto escreveu, também, em inglês. Não faço outras considerações sobre esta, julgo que, invulgaridade pois, para isso temos aqui a Leonor Sampaio. Mas sempre direi que este é um ato de coragem, quer do autor, quer do editor.

A ilustração da capa é do João Pedro Porto.

Estes dois aspetos de pormenor dizem, só por si, muito do espírito inquieto, culto, criativo e corajoso deste miúdo, sim um miúdo de 35 anos, que hoje partilha connosco os seus Contos Bizarros.

À semelhança dos que o precederam, também, este livro necessita de tempo. Estes contos não são para leitores apressados, cada uma das onze estórias que o compõem são para ser saboreadas. Se preferem uma refeição rápida então peguem num policial, se pelo contrário se deleitam com um repasto de degustação, então leiam os Contos Bizarros

Não será a melhor abordagem para divulgar um produto!? Talvez não. Vivemos num tempo de pressas e de imediatismo e eu estou a pedir-vos tempo. Tempo que é o nosso bem mais precioso. Mas é por isso, por o tempo ser escasso e precioso que não o devemos desperdiçar com o lixo mediático e virtual descartável, mas que degrada, tal como a fast food danifica o nosso equilíbrio fisiológico. Regressemos, pois, à dieta mediterrânica que é como quem diz: à literatura, ao pensamento crítico e ao equilíbrio entre a razão e a emoção.

Quando acabei a leitura de Contos Bizarros publiquei, em diferentes redes sociais, uma foto da capa com a seguinte legenda: Escrita incomum, Leitura estimulante. E assim é a escrita de João Pedro Porto, diria que esta forma de escrever, goste-se ou não, é um ato de rebeldia que poderá afrontar os clássicos cânones literários, E eu gosto, e admiro, quem não se resigna.

Uma outra ideia que retive foi a de que, neste como em outros livros, o autor utiliza uma criativa paleta de cores para construir ambientes. Eu diria, se me permitem, que estes contos são, também, uma construtiva orgia cromática, vejamos: cor de cimboa, avioletada, azul prussiano, um turquesa, e o outro de areia-molhada-a-seca, azul meia noite, hialinos e esbranquiçados, cabelos cor de vime ratã, azul cobalto a caribenho, veneno e morte anil, fato pardo a gris, caravelas garrafa-azul, avermelhar a cor lívida da morte, um mar malhado de céu, cor de cardo, exangue e alabastrino, cor de gamboge-a-tangelo-vivo, um céu daquele azul que não faz fronteira com o mar. 

Estas são algumas das cores dos Contos Bizarros, outras há, sendo que os gradientes de azul são criativamente infindáveis.

Estes contos, não sendo só, são estórias que se aproximam muito de notas autobiográficas. Se em todas as narrativas e em todas as geografias se pode encontrar muito do que foi, e é, o seu autor, nestes contos deparamos com o João Pedro ao virar de cada página. Nem sempre será fácil encontrá-lo, mas ele está por aqui, nestas páginas, ou pelo menos um pouco de si. O que já é muito. Nem todos os escritores, aos 35 anos terão coragem para se desnudar perante os seus leitores.

O primeiro dos contos, a Torre de Palha, tem um protagonista. Um daqueles seres que não encaixa no padrão com que os Homens costumam categorizar tudo, e todos. Catalogação que está na origem dos muitos males que se perpetuaram à sombra da medieva ignorância e da pós-moderna estupidificação global.

Anton Moller assim se chama o jovem que tinha “sede por torcer o pescoço ao mundo”, ia a Sorenga pelas madrugadas sublimar a “dor jovem do desprezo” nadando nas águas frias do fiorde no estreito de Skagerrak, talvez assim como o equivalente ao nosso Pesqueiro.

Não vou dissecar, nem este, nem os restantes contos, isso seria retirar-vos um pouco do prazer da vossa leitura, mas Torre de Palha despertou o meu interesse particular pelo facto de se iniciar com a saída de um navio cargueiro do porto norueguês de Narvik que trazia no bojo minério e hulha, e, no convés o protagonista que viaja clandestinamente, com a cumplicidade do imediato do navio. Narvik fica no Noroeste da Noruega, no círculo polar ártico, e por aí se escoa o minério de ferro extraído nas minas suecas de Kiruna e Gallivare.

Mas se estes territórios são bem reais, outros como Halm destino temporário de Anton Moller, quer outras geografias, são lugares criados pelo autor, territórios imaginados e descritos, como se de lugares reais se tratassem para servirem o objeto de cada uma das estórias.

Os Contos Bizarros, não serão tão estranhos como título nos pode fazer crer. O nascimento, a infância e a juventude mais ou menos invulgar, a descoberta da leitura e as viagens que esse e outros novos nasceres nos permitem, que Oleandro Sandoz, faz e cito: “Montado no dorso dos verbos mais corridos. Aos ombros de adjetivos alados”. Ou a tentativa do médico legista de fugir à morte porque, e volto a socorrer-me das palavras do autor, “viver era a coisa mais importante das coisas importantes” e “demasiada morte estava a matá-lo”.

Mas Contos Bizarros também nos fala do drama dos escritores quando são atormentados por momentos de bloqueio criativo, ou como diz o autor “… um embargo da imaginação.” Não vai, caro leitor, encontrar a solução, porque receitas não existem, mas ficam muitas pistas para vencer o bloqueio, desde logo não desistir, lutar contra o embargo ainda que seja escrever às escuras, de costas ou com a mão esquerda. Fazer o pino pode ser uma hipótese, não muito aconselhável, está bom de ver, porque lhe farão falta as mãos.

O autor de uma forma mais ou menos explícita não deixa a sua ilha e cidade fora destes contos e surpreende-nos com a “crónica de um futuro ido” onde nos fala do passado, não muito distante. Mas também do presente e do futuro, assim, com esta formulação, e cito, 

“Se o presente já durava pouco, agora também o futuro é vivido com a urgência de o tornar passado”.

Sobre o “Guardador de Ondas”, pouco direi. Ou melhor direi muito utilizando, ainda que parcas, mas, eloquentes palavras do autor.

E cito da página 69, o parágrafo que encerra este conto: “(…) Como se recebesse uma visita que esperava há muito, o homem arregaçou o linho e roçou a face. Sentiu o pêlo do fim do dia. Abandonou Úrsula com um único beijo nas obras mortas. A grande alforreca estendeu-lhe os galhos venenosos. O velho também. E naquele abraço, a noite surgiu e o sol desceu também abaixo das ondas.”

Entenderão agora razão pela qual eu estava reticente em agradecer ao João Pedro o convite para apresentar este livro, ainda que partilhando essa responsabilidade com a Leonor Sampaio. O que é que eu, um leitor comum, é o que sou, nem mais nem menos, tem para dizer de um autor que trabalha a escrita como o artesão lapida a forma alotrópica do carbono até obter dele um diamante.

Que falar de um autor que escreve desta forma sublime!? Mas cá estou a fazer o melhor que posso, afinal não sou homem de voltar as costas aos amigos e, muito menos de fugir perante as dificuldades que a vida nos apresenta.

O medo da mudança no quotidiano pacato, mas qualitativamente bom e os erros que podem ser cometidos na luta contra as alterações ao nosso modo de vida. São, digo eu, o mote do conto “Águas Assopradas”.

Já alguma vez pensaram como se deitam os Canários. Como será!? E o que isso poderá ter a ver com a feira de livros de Calcutá, uma porta que não abria, mas que depois do canário se deitar facilmente se franqueou para a libertação de uma jovem aprisionada e dependente de um certo modo de vida e de pensar. É no bizarro conto “Como se deitam os Canários” que encontrarão as respostas, se é que o são, ou tudo não passará de um conjunto de evidências que por serem tão visíveis nem nos damos conta delas. 

A procura da eternidade, o fim da vida na terra, um pinhão que já foi um homem, mas que sendo agora um pinhão cumpre o seu fim, ou seja, e volto a utilizar as palavras do autor, “Todos os pinhões fazem propósito em ir longe, e chegar sem saber aonde.”

Não resisto, e devia fazê-lo, para não vos privar do prazer da descoberta, quando lerem, mas aqui vai o trecho que encerra o conto “A cintura de Vénus”, “Agora a esfera de Collodi roda na imensidão com a sua incessante barriga brunida. Aproxima-se de um Vénus solitário. E sonha com gente.”

E estamos a chegar ao fim. Contos Bizarros encerra com o Homem de Andas. Aqui o autor fala-nos de alguém que caminhava, desde que tinha adquirido a verticalidade, sobre umas andas que um tio, “amante de todos os cumes”, lhe fez em madeira de pau santo. Olhar de cima, para gente rasa que habitava o chão, Talvez. Talvez denote uma atitude de superioridade e distanciamento, um afrontamento. Mas não é assim que o entendo. Prefiro outra leitura deste conto e que poderei referir como olhar de um outro ponto de vista. Uma opinião que contraria o pensamento e a cultura dominante. Alguém a quem é pedida uma opinião alternativa, uma justificação do que não se entende, mas na qual se acredita piamente. É claro que o destino final do Homem de Andas, irá ser o mesmo de todos os Homens e Mulheres que ousam ser diferentes, a pira onde se queimam os que ousam.  

Para terminar e a propósito, mas também com um propósito, diria numa adaptação livre dos primeiros versos da canção Manifesto de Vítor Jara que rezam assim: 

Yo no canto por cantar/Ni por tener buena voz/Canto porque la guitarra/Tiene sentido y razón

Diria que, João Pedro Porto/não escreve por escrever/escreve porque a escrita/tem de ter sentido e razão.

E a produção literária de João Pedro Porto, para além de muitos outros atributos, tem sentido e tem razão.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 22 de Outubro de 2019

(*) texto que serviu de base à apresentação pública de Contos Bizarros/Odd Tales), de João Pedro Porto, na Livraria Letras LAVAdas, Ponta Delgada, 22 de Novembro de 2019.