quarta-feira, 7 de setembro de 2022

prenúncio de Outono

foto by Aníbal C. Pires

O relógio do campanário anunciou as horas, era meio dia. Enquanto aguardava pelo grupo de amigos para o almoço sentei-me a ler e a usufruir daquele espaço onde um convite me fez chegar. Tenho cada vez mais dificuldade, talvez pelo avançar da idade, em sair dos lugares que habito, mas, talvez por ser tão acolhedor e recatado, enamorei-me daquele lugar. Foi amor à primeira vista. Cultivei essa relação de bem-querer, como se cuida de outros amores e deleitei-me com o espaço e o tempo como se estivesse numa outra dimensão. Sabe bem sair da urbe nervosa de uma suposta modernidade. Cidade hodierna cujos sinais se traduzem em roubos de céu à paisagem, muita agitação e ruídos que perturbam quem gosta de ouvir o dia, a noite e a passagem do tempo. Talvez seja isso o progresso, talvez. Mas eu prefiro outros conceitos de cidade, prefiro outros modelos de progresso e de civilização. Os meus parâmetros de avaliação do progresso civilizacional não são compatíveis com a padronização dos espaços públicos e dos lugares, nem com a uniformização do consumo ou, do pensamento.

foto by Madalena Pires
No ar havia um voluptuoso perfume que exalava das uvas de “cheiro” depositadas num cesto sobre a mesa. Aquele odor é um indício da proximidade de um novo ciclo temporal. A época das vindimas aproxima-se e com elas o prenúncio do Outono, mas ainda é Verão e o mar faz-se ouvir naquele seu sereno vai e vem no calhau rolado de uma praia, logo ali, depois da sebe que resguarda o espaço onde me encontro. Numa pausa da leitura levanto o olhar para os íngremes e verdes montes que flanqueiam o casario rasgado por uma ribeira para onde correm as linhas de água que serpenteiam nas vertentes. Os cumes tocam o azul, as nuvens escoam-se pelas alcantiladas encostas matizadas de verde e dissipam-se na brisa suave que ameniza o Verão. A paisagem majestosa estende-se por jardins há beira mar, coroados por pedras negras afagadas pelo oceano num perpétuo movimento.

O almoço tardio prolongou-se nas palavras. Recordações e estórias em comum encheram a tarde, mas nem só do passado foram as falas, do presente que nos preocupa e do futuro que se avizinha complexo e, sobretudo, caro, também se conversou. 

Não fique o visitante desta “Sala de Espera” com ideia que a tarde foi macambúzia e saudosista, nada disso. Houve alguns momentos de nostalgia na revisitação do passado, sim houve, mas o que marcou a tarde e os dias fora do bulício da urbe e das rotinas de cada um de nós, foi mesmo a boa disposição cúmplice que só a benquerença pode proporcionar. Foi um fim de semana de celebração da amizade que acontece quando e onde calha, desta vez aconteceu num lugar idílico como poderia ter acontecido num qualquer outro lugar. Os lugares, sendo importantes, valem pelas pessoas que os habitam e quando se trata de reunir um grupo de amigos, o local pouco importa perante o contentamento de estar, partilhar afetos e cultivar a afeição que une pelos laços da amizade que não se explica, tal como o amor, acontece.

foto by Madalena Pires

Antes do cair da noite tempo houve para um prazeroso banho de mar num pequeno porto a oeste da enseada onde desagua a ribeira que atravessa pequeno núcleo urbano que nos acolheu. Banhos de mar que já tinham acontecido pela manhã e na tarde do dia anterior. Ser ilhéu tem algumas vantagens, a proximidade do mar é uma delas, nem que seja, apenas, para o contemplar.

A noite chegou enquanto a fogueira crepitava sob a grelha onde, após o braseiro estar pronto, se fizeram alguns grelhados a gosto e a pedido, mal, médio ou bem passado, sempre com a boa disposição em alta, como alta estava a música com que alguns campistas clandestinos, o aviso de proibição era bem visível e legível, resolveram brindar a vizinhança subtraindo os sons da noite a quem gosta de os ouvir. 

Ao invés do canto das cagarras, do marulhar do mar, da brisa nas faias e das estrelas que a límpida noite, iludindo os sentidos, nos trazia ao alcance da mão e quase se podiam tocar, foi-nos imposto um ruído impróprio, era música, a poluir a noite e que se prolongou para lá do aceitável. Não, não se trata de saber se a música era ou não do meu gosto, fosse a que fosse era imprópria para ser difundida naquele, ou noutro espaço onde se vai para ouvir o silêncio. Terá sido a modernidade a invadir o espaço rural, ou a ruralidade a importar hábitos urbanos. Não sei, não averiguei, mas não me pareceu um ato de urbanidade. Urbanidade entendida aqui como civilidade que, como sabemos, não é um atributo exclusivo de quem vive na urbe. Esta situação, não sendo agradável, não foi, contudo, suficiente para nos indispor ou retirar prazer na fruição do jantar que, tal como o almoço, se prolongou nas palavras e se adentrou pela noite. O choro das cagarras regressou, o mar continuava naquele seu sereno vai e vem no calhau rolado, a brisa agitava as faias, a ténue luz límpida da noite alteava as negras encostas alcantiladas, as estrelas desciam ao alcance da mão, era a noite a fazer-se ouvir.

Ponta Delgada, 6 de setembro de 2022

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 7 de setembro de 2022

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