quarta-feira, 18 de setembro de 2024

o relatório

foto de Aníbal C. Pires
O mundo no limiar do segundo quartel do século XXI está em convulsão, não é uma novidade é, tão-somente, uma constatação à qual está associada uma profunda preocupação. Inquietante é, também, o alheamento de uma imensa mole de cidadãos face ao que nos rodeia e encerra perigos que julgava não pudessem voltar a desenhar-se no horizonte, e outros para os quais pouco ou nada se tem feito, para além da transferência da responsabilidade decisória para o domínio do indivíduo, o que comprovadamente não resolve alguns dos problemas ambientais que nos preocupam a todos e que fazem perigar a vida na Terra, tal como a conhecemos. 

A situação internacional é alarmante e, se quisermos ser rigorosos, podemos afirmar que não é nada de novo, era até expetável que, mais tarde ou mais cedo, as tensões provocadas pelas assimetrias no desenvolvimento humano, o neocolonialismo, o unilateralismo, a falência das instituições e, por conseguinte, o seu descrédito, bem assim como o processo de desdolarização, já há muito que havia sinais disso, a invasão do Iraque e da Líbia são apenas dois exemplos, de entre outros, da retaliação estado-unidense e da sua aliada União Europeia (ainda com o Reino Unido) contra a tentativa de por fim à hegemonia do dólar nas transações internacionais, em particular na compra e venda de petróleo. Mas não é só, a emergência de economias robustas, fora do eixo atlantista, que se afirmam no contexto mundial e agregam países do chamado Sul global são olhadas, pelo ocidente, como uma ameaça, e assim é no entendimento dos decisores atlantistas e eurocentristas. Os BRICS são um exemplo da organização de estados soberanos que deram início a uma nova ordem económica mundial fora da alçada dos EUA e da EU.  

imagem retirada da internet

A resposta do ocidente “civilizado” é conhecida. As decisões políticas e o posicionamento dos EUA, da UE e de alguns satélites que orbitam à sua volta e do seu braço armado, a OTAN, mantém uma guerra híbrida, com todas as variáveis que a caraterizam, com os países que económica e financeiramente estão a colocar em causa a subsistência do Mundo unipolar. E não deixa de ser anacrónico que os principais responsáveis pelo caminho que os países do Sul global esteja a ser acelerado pela cegueira dos dirigentes, em particular da UE, que se submetem aos ditames dos EUA que, como se sabe, não têm amigos têm interesses. 

O Sul global liberta-se gradualmente do neocolonialismo e deu-se início à construção de um mundo multipolar, esta é a “ameaça”. Podia ser uma oportunidade, mas os eurocentristas e atlantistas do alto da sua arrogância, mas também cegueira e insciência insistem em perpetuar a unipolaridade. 

Os cidadãos estão, uma vez mais, a pagar caro as opções políticas das diferentes instâncias da UE, a inflação e a alta dos juros são apenas as variáveis visíveis de uma profunda crise para a qual nos estão a conduzir, aliás Mario Draghi num recente relatório apresentado ao Parlamento Europeu fala claramente em "declínio lento e agonizante" da economia da UE e da necessidade de inverter o rumo para salvar este projeto político integrado por 27 países europeus.

Socorri-me de Mario Draghi para reforçar a ideia de que o espaço social, político e económico onde estamos inseridos atravessa uma crise sem precedentes e são necessárias profundas alterações no seu seio, o que não significa que eu esteja de acordo com o que, na opinião do ex-primeiro-ministro italiano, está na raiz dos problemas que a UE está a viver, nem com as soluções por ele propostas.

imagem retirada da internet
Mais do que um diagnóstico rigoroso da situação que se vive na UE e das causas que lhe estão na origem, Draghi faz constatações e procura justificar as opções da Comissão, do Conselho e do Parlamento procurando assim ilibar as políticas comuns e os seus efeitos negativos nos estados-membros, e no todo que representam, ou não fosse Mario Draghi um neoliberal ligado, desde sempre, ao setor financeiro mundial, e o relatório resultar de uma encomenda da Comissão Europeia, pela mão da senhora Von der Leyen, e que putativos comissários europeus, como por exemplo Maria Luís Albuquerque perita em empobrecimento dos portugueses. Por outro lado, as soluções apresentadas visam aumentar o financiamento ao setor privado, aumentar o orçamento para a defesa (leia-se: guerra) e a centralização decisória, ou seja, Draghi não aprendeu, ou não quis aprender com os erros do passado, e vem receitar mais do mesmo talvez para acelerar o agonizante declínio que ele próprio identificou.

O Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu, como não podia deixar de ser, estão exultantes e tudo farão para executar as recomendações de Mario Draghi. Nada de novo vem por aí, nem mesmo a hipocrisia de quem paulatinamente tem vindo a destruir a agricultura e a indústria na EU e a submeter-se a interesses dos globalistas, se constitui como uma novidade.  O entendimento das famílias políticas europeias vai continuar a limitar a soberania dos estados-membros e promover o empobrecimento dos cidadãos.

O relatório propõe 170 medidas enquadradas em 3 áreas e propõe, para a sua concretização, um investimento de 800 mil milhões de euros, por ano, até 2030. Financiamento que terá de ser obtido por aumento das contribuições dos países que integram a UE e por endividamento no mercado financeiro global.

E a que se destina este gigantesco investimento!? Inovação, descarbonização e defesa. 

Assim colocadas as áreas de intervenção podem ganhar amplos apoios na generalidade da população, e para reforçar esse potencial apoio o autor refere que este é um “desafio existencial”, ou seja, o relatório encerra uma ameaça velada: Ou é assim, ou estamos a chegar ao fim deste projeto que se encontra em agonia.

imagem retirada da internet
É necessário arrepiar caminho, e eu concordo. Não me parece é que o rumo seja o que Mario Draghi propõe que trilhemos, até porque a situação internacional, como já referi, alterou-se e o acesso a matérias-primas, que não existem no território da UE, deixou, por diferentes razões de estar acessível nas mesmas condições. E não me refiro ao gás e petróleo russos, mas a alguns minerais que são essenciais em qualquer tentativa de inovação, com o objetivo de recuperar o atraso em relação aos EUA e à China, mas também para tornar efetiva a transição energética reduzindo a utilização dos combustíveis fósseis, quanto ao aumento dos gastos com a defesa (guerra), ao invés de se investir na paz é, no mínimo destoante com a vontade dos povos que vão expressando em gigantescas manifestações a sua vontade de viver sem conflitos bélicos, mas também representa a cedência às pressões dos EUA que, não abdicando da sua principal indústria, querem aumentar o potencial bélico do seu braço armado para atingir objetivos que podiam se alcançados por via da paz e cooperação entre os povos, no respeito pelas suas diferenças e deixando, de uma vez por todas, de tentar impor um modo de vida e um modelo de desenvolvimento únicos que desumaniza e mata.

Ponta Delgada, 17 de setembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 18 de setembro de 2024

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