quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Mundos diferentes

imagem retirada da internet
O humanismo é um valor inalienável e deve ser entendido pelas instituições como o primado da promoção do bem-estar e dignidade dos seres humanos em qualquer rincão do planeta. Quando foi que perdemos o humanismo!? Quando foi que a humanidade deixou de o ser!?

Os humanos vivem no mesmo planeta, mas em mundos diferentes. Não se trata de diversidade cultural. Também, mas não só. Os mundos diferentes de que falo são: o mundo dos excessos, do luxo, da futilidade, do acessório; e o mundo da escassez onde as necessidades básicas não são satisfeitas. E não deixa de ser paradoxal que o mundo da escassez seja o que detém as maiores reservas de metais preciosos e, não me refiro apenas ao ouro. Minerais como o lítio, o cobalto e o níquel são igualmente preciosos pois, constituem-se como os principais componentes das baterias dos telemóveis e dos carros elétricos, para além de outros produtos que se constituem como fundamentais para alcançar as metas de emissões de carbono zero até 2030, no mundo dos excessos. O mundo da escassez não tem metas para reduzir as emissões de carbono, as metas do mundo da escassez são mais básicas: acesso a água potável, a alimentos, à educação e à saúde.

Não é meu propósito, e assim vai ser, aprofundar muito a questão da transição energética, mas algumas questões ligadas à exploração mineira o lítio do cobalto e do níquel colocam-me sérias dúvidas sobre o balanço ambiental e social dessa mudança de paradigma, desde logo em virtude das reservas desses minerais se situarem, na sua maioria, nos países do Sul global e as vantagens económicas se destinarem ao Norte global e outras economias emergentes.

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É importante, é necessário, é imperativo que se encontrem alternativas aos combustíveis fosseis, mas a transição energética que está desenhada na União Europeia, pela dependência dos minerais que referi, não é ambientalmente sustentável. As maiores reservas mundiais de lítio situam-se no chamado triângulo andino, ou do lítio, (Argentina, Chile e Bolívia) e, para a produção de uma tonelada de lítio consomem-se dois milhões de litros de água que não pode ser reutilizada para consumo humano, nem para a agricultura. Existem outros aspetos a considerar sobre a extração de lítio, de cobalto e de níquel, como por exemplo a queima de várias toneladas de combustíveis fósseis para obter uma tonelada destes metais, e todos eles não são nada amigos do ambiente, isto para não referir os graves aspetos sociais que, também, têm associados, mas só o facto do desperdício de água e o consumo de combustíveis fosseis julgo serem suficientes para nos interrogarmos, apenas numa perspetiva ambiental, sobre este modelo de transição energética e quem beneficia com ele. O planeta não é certamente, e, por isso, fico sem entender muito bem alguns ativistas da defesa do ambiente, julgo que existem por aí algumas confusões como por exemplo a ideia de que este modelo de transição energética nos conduz a zero emissões, ou então, o cliché profusamente veiculado que a continuarmos assim o planeta acaba. E o planeta acabará, não tenho dúvidas, mas não será pelos motivos associados a essa premissa, o que acabará se nada for feito, muito antes do fim do planeta, é a espécie humana da qual o planeta não necessita para rigorosamente nada, connosco acabarão outras espécies e outras irão sobreviver como tem vindo a acontecer no planeta durante os milhões de anos em que a espécie humana não existia.

E não são, apenas, a geografia e as caraterísticas culturais diferenciadoras dos grupos humanos que separam estes mundos que coexistem no mesmo planeta. Por estes dias aconteceu a entrega de prémios, promovida por uma televisão nacional, aos vencedores de distintas áreas das artes, por estes dias aconteceu uma manifestação reivindicando habitação e dignidade para quem vive e trabalha em Lisboa, por estes dias o número de cidadãos a dormir nas ruas e praças da capital aumentou, por estes dias, também aconteceu uma manifestação racista e xenófoba que só teve impacto público pela cobertura mediática que foi dada a pouco mais de uma centena de pessoas que foram manifestar a sua intolerância, pode ler-se ignorância, aliás a exposição da insciência está na moda e ganha cada vez mais adeptos. Os donos disto tudo gostam, apoiam e promovem. Estes são alguns exemplos, na mesma geografia, de mundos diferentes. 

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Os cidadãos vibram com o glamour da distribuição dos prémios televisivos e com o vestido da Ana Moura (nada a comentar, a Ana Moura veste-se como muito bem entender), ignoram a luta pelo direito à habitação e contra a gentrificação de Lisboa e lamentam que a manifestação racista e xenófoba não tivesse mais apoiantes presentes, pois, no sofá abundam.

O recurso a acontecimentos que nos são próximos e de que todos ouvimos falar, até eu que não vejo televisão, não foi por acaso. Podia até referenciar alguns exemplos da cidade onde vivo para dar maior proximidade a realidades que vão ao encontro da ideia central com que iniciei este texto: vivemos todos no mesmo planeta, mas em mundos diferentes; tais são as assimetrias que se verificam e onde uns têm mais valor que outros.

E não, não me estou a referir à desvalorização social dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção RSI, nem aos inúmeros sem abrigo que vivem nas ruas e praças de Ponta Delgada e que tanto incomodam as consciências da “classe média”, ou seja, a consciência dos cidadãos assalariados com salários acima da média regional e nacional, o salário médio regional é tão baixo que para estabelecer o paralelismo socorri-me do salário médio nacional, mas a questão central são as diferenças sociais e económicas que, dentro da mesma cidade, nos separam. Para os mais distraídos e para não perder o fio à meada estou a referir-me aos pobres, sejam eles os beneficiários do RSI, os sem abrigo, os trabalhadores, os reformados e as crianças. Também na nossa proximidade há um mundo de excessos, de luxo e de acessórios a conviver, mantendo uma distância de segurança, com o mundo da escassez.

Se nos alheamos do que se passa à nossa volta e continuamos a valorizar, no sentido de manter tudo como está, o que é acessório e fútil, então a indiferença aos dramas humanitários, mais ou menos distantes, não nos inquieta e a desumanização instala-se.


A agenda 2030, aprovada pela Organização das Nações Unidas, contem um conjunto de Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), são 17, e, como não podia deixar de ser, não se limitam, apenas e só, às questões ambientais, conquanto lhes dê uma particular enfâse. Os objetivos e as medidas que constam deste documento estão por aí à distância de um clique, mas sempre direi que acabar com a pobreza e com a fome são os dois primeiros objetivos, a saúde, o trabalho, a educação, a redução das desigualdades, fazem parte desta “generosa” lista de intenções que, como nos temos habituado não passará disso mesmo: uma lista de intenções. Não quero dizer com isto que não é importante, claro que é; antes ter estas referências do que nenhumas, mas não sou ingénuo e tenho consciência de que só é possível atingir os ODS com alterações profundas na ordem mundial, e essas demoram o seu tempo, não sei sequer se virão a tempo, o que não me inibe de continuar a acreditar e lutar por essas transformações.


Ponta Delgada, 1 de outubro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 2 outubro de 2024

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