quarta-feira, 16 de outubro de 2024

por amor, fiquei.

foto de Paulo R. Cabral
Estou aposentado. Gosto mais do termo jubilado, mas o vocábulo em Portugal não se generalizou e aplica-se apenas a algumas profissões, este estado ou estatuto de aposentado, como prefiram, libertou-me dos deveres profissionais, mas não das obrigações que tenho para com a comunidade onde há mais de 41 anos decidi viver. Para evitar ambiguidades devo esclarecer que as “obrigações” a que me refiro decorrem, tão-somente, da minha vontade e disponibilidade para continuar a cooperar com organizações que intervêm em distintos aspetos da vida social, cultural e política da Região. Não é um encargo, é a forma que encontrei de retribuir o acolhimento que este povo me concedeu e sem grandes delongas temporais me fez sentir como se por aqui tivesse nascido. Poderia fazer outras opções retirando-me para a tranquilidade do sofá, mas isso seria contrariar toda uma vida de intervenção cívica.

Diz-se dos forasteiros que se fixam por aqui: ilhanizados ou açorianófilos; e assim será para quem passado, um período de descontinentalização, assume a condição de ilhéu. Ou seja, é-se ilhéu após um processo de compreensão e assunção do viver e sentir insular. Tenho um amigo que me colocou o epíteto, é público não estou a cometer nenhuma inconfidência, de “ilhéu continental” e eu aceito, sem reservas, o sentimento da minha pertença a estas ínsulas é, para ele, uma evidência e também sabe que isso é compaginável com os meus regressos (físicos ou através da escrita) às origens beirãs.

foto de Aníbal C. Pires

Vim por acaso, fiquei por amor a estas ilhas, outro amor já tinha, por aqui o cultivei, fortaleci e sazonou. Quando cheguei em 1983 fiquei deslumbrado com a orografia, a luz e os matizes de verde e azul, por vezes, cobertos por um espesso manto cinzento, mas não foi a paisagem que me fez ficar, ninguém fica só pela paisagem. Se foi e é importante, não duvido. Mas os lugares são as pessoas que os habitam e a forma como se adaptam e recriam os saberes ancestrais. Os açorianos construíram uma matriz cultural distinta, marcada pelo isolamento que a geografia ditou, pelo abandono do poder central, pela natureza, nem sempre amigável, pelo seu posicionamento no Atlântico Norte que expõe estas ínsulas à violência das tempestades atmosféricas e oceânicas, daí nasceu a profunda religiosidade deste povo ilhéu e da qual o culto ao Divino Espírito Santo se manifesta de forma transversal na Região e na diáspora. Fiquei por amor a estas ilhas e a este povo, aqui quero continuar a viver.   

Cedo iniciei um percurso que me permitiu visitar todo o arquipélago com o qual me encantei, o conhecimento consolidou-se ao longo dos anos e a sedução não se desvaneceu. As ilhas açorianas e o seu povo continuam a deslumbrar-me. A cada vez que mergulho na ilha onde vivo, ou quando viajo e permaneço alguns dias numa qualquer outra das ilhas açorianas consolido o amor que me fez ficar e surpreendo-me com novas descobertas, de lugares, de usos e de pessoas. São as pessoas que corajosamente teimam em manter vivos os lugares emprestando-lhe o seu labor e criatividade para que a sua ilha, as nossas ilhas, não caiam no esquecimento, são essas as pessoas que me entusiasmam e continuam a surpreender. E eu gosto de ser maravilhado, emociono-me e gosto. As gentes e os lugares continuam a enternecer-me como só agora tivesse aportado a estas ilhas.

foto de Aníbal C. Pires
A viagem e estadia mais recente foi na ilha de Santa Maria onde participei no 39.º Colóquio da Lusofonia. A ilha de “Gonçalo Velho, a “ilha Mãe”, a “ilha mal lembrada”, a “little America”, ou qualquer outra designação que se dê à primeira ilha dos Açores a ser povoada, fica-lhe bem e reflete ideias e períodos de apogeu ou declínio da sua história.

Os Colóquios da Lusofonia são enriquecedores para os intervenientes e para quem se dispõe a assistir às diferentes sessões e atividades. A sua realização fora da habitual tripolaridade, herança de que a autonomia não se conseguiu libertar, é sempre de saudar e tem relevância para as comunidades que albergam o evento. Se podia ser melhor!? Claro que sim, pode sempre aperfeiçoar-se e, face à informação que disponho, os seus organizadores desejam fazê-lo contando para isso com o contributo e sugestões de quem participa, habitualmente ou não. A próxima edição dos Colóquios da Lusofonia será, em abril, na ilha das Flores. A celebração da Revolução de Abril será, julgo eu, alvo de particular atenção na 40.ª edição deste evento cultural que continua a mobilizar vontades.

À margem das sessões dão-se outros encontros, criam-se dinâmicas, desenham-se projetos multi ou bilaterais e cria-se a oportunidade de rever amigos, conhecer novas pessoas que, por vezes, nos surpreendem pela sua sensibilidade, criatividade e trabalho desenvolvido nas artes ou pela sua intervenção social e cívica. E eu sinto que ainda tenho muito para conhecer dos Açores e das suas gentes.

Santa Maria continua a surpreender-me, mesmo sem ter ido onde não me canso de ir e de não poder ter estado com algumas pessoas que muito estimo. Estive, como já referi, em Santa Maria e vim uma vez mais maravilhado pelo que aprendi e pelo que ignorava e fiquei a saber, eu que penso(ava) deter um conhecimento aprofundado sobre Santa Maria e os marienses. Quando cuido que não há mais nada para aprender e conhecer na “ilha Mãe” sou maravilhado com a novas descobertas. Tive oportunidade de rever velhos amigos e conversar sobre o “clima” político, pré-autárquico, que se vive em Santa Maria, ou apenas jogar palavras fora sem outro intuito para além da conversa pela conversa que pode até aparentar ser vaga, mas tem sempre um propósito e proporciona novas aprendizagens e, como eu sou um eterno aprendiz, gosto de conversar, deixar fluir as palavras livremente e, aprender. 

Foto de Aníbal C. Pires

Se com os velhos amigos a comunicação se retoma com naturalidade, o tempo e a distância não se constituem como barreiras para retomar uma conversa, com as pessoas com quem falamos a primeira vez percebemos, passados alguns momentos, se a arquitetura das pontes nos une e, quando assim é, as palavras brotam, a cumplicidade instala-se, e é bom. E foi bom estar e sentir o pulsar de Santa Maria.

É bom regressar e continuar a descobrir novos lugares e pessoas, é bom continuar a aprender como é ser ilhéu nas Flores, na Graciosa, em Santa Maria, na Terceira, ilhas onde estive durante este ano, ou S. Miguel onde vivo, ou em qualquer outra onde regresso sempre que me é possível. São realidades geográficas, sociais, culturais, económicas e políticas diversas, querendo com isto significar que: para realidades diferentes o investimento público tem, naturalmente, de ser diferenciado e os projetos de desenvolvimento sustentável distintos, como diferente é o potencial endémico de cada uma das ilhas deste arquipélago, por vezes ainda desconhecido e muitas vezes, demasiadas vezes, esquecido por remotos poderes.

Ponta Delgada, 15 de outubro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 16 de outubro de 2024

Sem comentários: