quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Complexo e preocupante

imagem retirada da internet
    O governo sírio caiu em pouco menos de duas semanas do recrudescimento da atividade visível dos grupos radicais islâmicos herdeiros da Al-Qaeda, hoje com outras designações adequadas à conjuntura internacional e agora designadas, pelo ocidente, “diversity-friendly jihadists”. A situação é de grande complexidade pois, os interesses e os conflitos, já existentes e os que advém da queda do governo e do presidente sírio, envolvem um conjunto de países e povos com interesses naquele território, desde logo a Turquia, os Estados Unidos e o estado sionista que dá pelo nome de Israel, por um lado, por outro a Rússia, o Irão, o Iraque e o Líbano, ainda que por razões diversas. Nesta equação não é despiciente o papel dos kurdos e de outras minorias que habitam o território daquilo que ainda se designa por Síria. Outra variável, que não é de somenos importância, será a concretização do gasoduto Qatar/Turquia que agora, veremos, deixou de ter oposição da Síria. 

    Não terei sido apenas eu, mas foi com alguma surpresa que me apercebi do rápido avanço das forças que derrubaram o poder instituído na Síria, mesmo considerando a capacidade e eficácia dos seus poderosos patrocinadores no derrube governos e a promoção dos seus apaniguados para a assunção do poder. Esta minha perplexidade fica a dever-se ao meu desconhecimento da deterioração interna Síria, após o acordo Astana o que, não sendo só, justifica a fraca resistência das forças armadas sírias e o reduzido apoio popular ao governo e ao presidente sírio agora depostos.

    A alteração das relações de poder nesta sensível zona do globo é complexa e preocupante pois, vem somar mais precariedade a uma região que tem vivido em permanente instabilidade. A apreensão quanto aos desenvolvimentos e às implicações nos países do médio oriente, mas também no Mundo, aumenta pela exposta incapacidade de intervenção de organismos como as Nações Unidas na mediação de conflitos, alguns deles por procuração de interesses, aliás como é o conflito sírio que só teve este rápido desfecho pela intervenção direta ou indireta dos Estados Unidos, do estado sionista e da Turquia, mas também a mãozinha da União Europeia.

    Os acontecimentos na Síria continuam a desenrolar-se com uma inusual rapidez, o que pressupõe, que tudo o que aconteceu nos últimos dias era esperado e resultou de uma cuidada preparação, eu diria que, face ao que a cada momento tem vindo a público, a única variável que terá surpreendido tudo e todos foi a celeridade a que os eventos se sucederam. Estou a escrever este texto no dia 8 de dezembro, Damasco foi tomada, Bashar al-Assad saiu do país e correm rumores, ainda não confirmados, que o avião onde viajava terá sido abatido, ou terá sofrido um acidente e o ex-presidente sírio terá morrido, afinal já chegou a Moscovo e foi-lhe concedido asilo, no norte da Síria as milícias pró turcas confrontam-se com os kurdos, o estado sionista que dá pelo nome de Israel, invadiu território sírio a partir dos Montes Golan e tem estado a bombardear instalações militares abandonadas e infraestruturas industriais que produziam material bélico. As forças armadas dos Estados Unidos e as bases militares russas permanecem em território sírio, sendo que os russos poderão, por iniciativa própria, retirar-se da base aérea de Hmeymim e da base naval de Tartus, quanto aos efetivos militares dos Estados Unidos, um dos países beneficiados com a chegada ao poder dos grupos jihadistas, permanecerão naquele território até que por ali tenham interesses.

Al-Julani - antes e agora (imagem retirada da internet
    Há aspetos caricatos e que demonstram a hipocrisia de alguns estados. O líder, ou um dos líderes dos “diversity-friendly jihadists” dá pelo nome de Abu Mohammad al-Julani a quem os Estados Unidos listaram, em 2013, como um “Terrorista Global Especialmente Designado”, por quem, em 2017, ofereciam uma recompensa de 10milhões de dólares por informações que pudessem conduzir à sua captura. A liderança de al-Julani no processo do derrube do governo e do presidente sírio branqueou todo o seu passado e limpou-lhe os epítetos, isto a julgar como boas as posições, já conhecidas, dos Estados Unidos bem assim como da nova responsável da União Europeia para as Relações Exteriores e Segurança, a inefável Kaja Kallas, sobre a situação na Síria. E não se pense que a satisfação ocidental tem alguma coisa ver com o bem-estar do povo sírio, este estado de contentamento está relacionado com um suposto enfraquecimento da Rússia e do Irão. Uma coisa é certa: as resistências palestinianas e libanesas às agressões do estado sionista sofreram um duro golpe pois, os apoios vindos do Irão eram canalizados pelo território sírio e, contra todas as lógicas para os grupos extremistas islâmicos os interesses sionistas são intocáveis, o que significa que essas rotas poderão deixar de estar “abertas”, pois não há notícia, nem memória, de que a Al-Qaeda, ou qualquer dos seus sucedâneos tivessem, uma vez que fosse, mexido com a segurança ou os interesses do estado sionista.

    Um olhar, ainda que ligeiro, para a cartografia da região onde se situa a Síria é elucidativo do que se “joga” naquele tabuleiro geopolítico, de quem beneficia e de quem fica em desvantagem. Se a região já era um barril de pólvora com este novo cenário o que se pode dizer é que o pavio ficou mais curto e o perigo de deflagração é agora muito maior. Mas sobre a questão Síria, em tudo semelhante a outros processos, nada mais acrescentarei a não ser reforçar a minha inquietação sobre o futuro próximo, não só na Síria, mas em relação aos efeitos perniciosos que se irão repercutir nos países da vizinhança e no Mundo, tal como aconteceu depois das intervenções ocidentais, diretas ou por procuração, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. 

imagem retirada da internet 
    Os leitores devem ter ficado algo perplexos. Estamos na época natalícia e eu trago para a “Sala de Espera” um assunto pouco adequado à quadra festiva. É verdade, mas as crianças palestinianas continuam a ser massacradas e não olvido que Jesus nasceu na Palestina.

    A situação internacional degrada-se a passos largos e, para além da Síria, da Palestina, do Líbano, da Ucrânia, da Geórgia e da Roménia, para referir apenas os casos que têm dominado as agendas mediáticas, existem muitos outros focos de tensão que alimentam a guerra híbrida em curso e demonstram, à saciedade, que o colonialismo e o imperialismo de novo tipo não desiste de manter os seus privilégios a qualquer preço. 

    A minha inquietação sobre o futuro próximo impede que o estado de espírito natalício se instale, não sei mesmo se serei capaz de formular os habituais votos de Boas Festas que caraterizam esta quadra de celebração da natalidade e da entrada num novo ciclo anual. A cada ano que passa as quadras festivas perdem, para mim, significado pelas razões já expostas, mas também pela mercantilização das crenças e dos afetos num processo de onde o humanismo está arredado, só serve como estratégia de marketing, ou seja, para promover o consumo e uma sensação temporária de bem-estar. Depois, bem depois tudo se esvai com os primeiros dias de janeiro.

    Gosto de me sentar para escrever e, por norma, trago já o tema estruturado mentalmente. Tenho procurado afastar-me dos assuntos da política regional, nacional e internacional. Hoje não foi o caso, nem foi prazeroso, não segui a estrutura mental que tinha desenhado para este escrito e não guardei distanciamento temporal em relação ao assunto sobre o qual deixei alguns factos e juízos. É sempre um risco, ou melhor um risco acrescido pois, publicar opinião, por mais inócua que seja, e expor as nossas cogitações quando pensamos fora do padrão é sempre arriscado e pouco popular. Quanto aos perigos, não os temo e, não troco a minha liberdade e o direito ao pensamento crítico por popularidade.

Ponta Delgada, 10 de dezembro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 11 de dezembro de 2024

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