quarta-feira, 29 de outubro de 2025

periferias

foto de Aníbal C. Pires
Portugal é, sempre foi, uma fronteira. Uma fronteira entre o Atlântico e a Europa, entre o passado que o molda e o futuro que lhe prometem, entre o que produz e o que consome, entre o que sonha e o que lhe é permitido sonhar. A sua condição periférica, tantas vezes mascarada de europeísmo triunfante, tornou-se uma forma de dependência consentida, ou se preferirmos, uma espécie de modernidade tutelada pelos tecnocratas que pululam nos gabinetes das instâncias da União Europeia e onde, para satisfação de alguns, um ou outro português vai rotativamente assumindo cargos políticos e vergam a coluna aos interesses privados que dominam em Bruxelas e Washington.

A adesão ao projeto europeu foi celebrada, com pompa e circunstância, como o ingresso num clube de civilização e progresso, mas o que se consolidou foi uma modernização dependente. As decisões estratégicas, energia, indústria, agricultura, pescas e transportes, foram sendo transferidas para fora das fronteiras nacionais, e com elas a possibilidade de decidir o próprio destino. 

A soberania, palavra quase profana no vocabulário político contemporâneo, cedeu lugar à gestão de fundos, programas e indicadores que sustentam a ficção do desenvolvimento. Portugal deixou de produzir o essencial e passou a consumir o acessório, deixou de planear o futuro e passou a executor de programas europeus, com as finalidades desenhadas em centros de decisão longínquos da realidade nacional, seja ela a continental ou a insular.

Mas a periferia não é apenas geopolítica. Dentro do país há outro mapa, invisível e persistente, que desenha as fronteiras da exclusão, seja pelo litoral saturado e o interior desertificado, seja pela capital que concentra e centraliza, seja pelos territórios esquecidos. Bruxelas decide, Lisboa também, mas cada vez menos, o resto do território continental, em particular o interior e os arquipélagos atlânticos, aguardam de mão estendida pelas sobras.

foto de Aníbal C. Pires

A centralização, herança de um Estado que nunca soube acolher plenamente a sua diversidade, continua a reproduzir desigualdades e a produzir pobres e excluídos. Nos Açores, a condição ultraperiférica, produz efeitos ainda mais nefastos agravados por uma governação titubeante entre a satisfação de projetos políticos pessoais e a perpetuação no poder, pelo poder, mas, sobretudo, ineficaz e negligente na defesa deste território distante, disperso e, por este povo sofrido, e onde resistem alguns cidadãos que continuam a acreditar que a ultraperiferia não é uma fatalidade e que o desenvolvimento e a coesão social, económica e territorial não são uma miragem.

A condição periférica, seja do continente ou das regiões insulares, não é, como já foi referido uma fatalidade, talvez seja nessa condição de margem e à margem, que resida a possibilidade de um novo centro. A periferia, quando se reconhece e se assume, pode tornar-se lugar de criação e consciência. A distância permite ver o que o centro não vê, da escassez nasce a imaginação, da exclusão, a força de propor outros caminhos. É das margens que, por vezes, se redesenham futuros diferentes, assim saibamos recuperar a soberania e a autonomia para decidir por nós, no continente, nos Açores e na Madeira, assim nos saibamos libertar da tutela de governos agenciados ao consenso neoliberal (cortes na Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes, perdas de direitos sociais, etc.), e, por no seu lugar um governo patriota capaz de romper com a uniformidade do modelo de desenvolvimento imposto por  agendas externas, num país tão diverso como o nosso. 

A aparente, ou real aceitação, deste consenso, que tem como resultado mais visível a votação maioritária em partidos agenciados ao neoliberalismo, tenham as siglas que tiverem, não resulta da livre discussão de ideias e dos debates públicos, mas advém de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital, das corporações mediáticas e das grandes empresas que dominam o mercado da tecnologia e inovação, como sejam a Apple, o Google, a Amazon, a Microsoft e a Meta.

Portugal precisa de reaprender a estar nas margens sem se resignar à periferia. Não se trata de reivindicar o centro, mas de o questionar. Um país que sempre viveu entre mundos, entre continentes, entre línguas, entre memórias, pode reencontrar aí a chave da sua soberania e autonomia. A verdadeira modernidade não é seguir o modelo dominante, mas criar a partir da diferença e, sobretudo, encontrar os caminhos da libertação do consenso neoliberal que, estando ainda bem implantado, começa a dar sinais de esgotamento.

Enquanto medir o seu sucesso pela aceitação dos outros seja pelo cumprimento dos Planos de Estabilidade e Crescimento, ou outros instrumentos que cerceiam a soberania, Portugal será apenas o que o centro permitir: uma periferia dócil, útil e descartável. Mas se entender que da margem se pode construir um mundo mais justo, mais atento às suas raízes e à sua escala humana, então talvez reencontre o sentido perdido entre tratados e promessas por cumprir. A periferia não é fatalidade, é consciência.

foto de Aníbal C. Pires
Consciência do lugar que ocupamos no mundo e da forma como o mundo nos ocupa. É o exercício de ver o centro com a distância necessária para o compreender, sem cobiça nem subserviência. É das margens que se percebe melhor o desenho do poder, os seus silêncios, as suas promessas e os seus enganos. E talvez Portugal precise, mais do que nunca, de reencontrar essa lucidez periférica que o fez voltar-se para o mar. E não, não há aqui nenhum saudosismo pelo passado colonial, nem qualquer estratégia neocolonial, bem pelo contrário, aquilo a que me refiro é à cooperação e estabelecimento de relações multilaterais com um mundo policêntrico e abandonar uma relação unidirecional com a União Europeia que nos espartilha.

Hoje navegar já não é conquistar os mares, é resistir à corrente. É recusar a lógica que transforma cidadãos em consumidores, comunidades em mercados e países em plataformas logísticas. É defender a dignidade do trabalho, a terra que alimenta, o mar que sustenta, a cultura que nos distingue e nos liga.

Portugal não precisa de competir com o centro, precisa de reencontrar o seu ritmo, o seu compasso humano, a sua escala justa, nem pequena demais para se humilhar, nem grande demais para se perder.

Nas regiões insulares atlânticas e no interior, nas aldeias que resistem e nas escolas que ainda ensinam a pensar, há sementes dessa consciência. Não é uma nostalgia rural nem um nacionalismo redutor e reacionário, é a compreensão de que o futuro não pode ser importado, tem de ser cultivado. O país que souber olhar para si, com a serenidade de quem conhece os seus limites e a coragem de quem recusa o servilismo, poderá transformar a sua margem em farol.

Talvez seja essa a nova centralidade portuguesa, talvez seja essa a nova centralidade madeirense e açoriana, a de um povo que, mesmo periférico, nunca perdeu o sentido da travessia. A de um país que não precisa de pedir licença para existir.

Porque a verdadeira soberania não se decreta, constrói-se, todos os dias, na forma como pensamos, produzimos e sonhamos.

E se um dia voltarmos a ser capazes de sonhar com a mesma audácia com que outrora partimos, talvez a periferia deixe de ser uma marca negativa e volte a ser o lugar onde o mundo se reinventa.

Ponta Delgada, 28 de outubro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 29 de outubro de 2025

terça-feira, 28 de outubro de 2025

na rota do consenso neoliberal

do arquivo pessoal


Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.






(...) A soberania, palavra quase profana no vocabulário político contemporâneo, cedeu lugar à gestão de fundos, programas e indicadores que sustentam a ficção do desenvolvimento. Portugal deixou de produzir o essencial e passou a consumir o acessório, deixou de planear o futuro e passou a executor de programas europeus, com as finalidades desenhadas em centros de decisão longínquos da realidade nacional, seja ela a continental ou a insular.

Mas a periferia não é apenas geopolítica. Dentro do país há outro mapa, invisível e persistente, que desenha as fronteiras da exclusão, seja pelo litoral saturado e o interior desertificado, seja pela capital que concentra e centraliza, seja pelos territórios esquecidos. Bruxelas decide, Lisboa também, mas cada vez menos, o resto do território continental, em particular o interior e os arquipélagos atlânticos, aguardam de mão estendida pelas sobras.

A centralização, herança de um Estado que nunca soube acolher plenamente a sua diversidade, continua a reproduzir desigualdades e a produzir pobres e excluídos. Nos Açores, a condição ultraperiférica, produz efeitos ainda mais nefastos agravados por uma governação titubeante entre a satisfação de projetos políticos pessoais e a perpetuação no poder, pelo poder, mas, sobretudo, ineficaz e negligente na defesa deste território distante, disperso e, por este povo sofrido, e onde resistem alguns cidadãos que continuam a acreditar que a ultraperiferia não é uma fatalidade e que o desenvolvimento e a coesão social, económica e territorial não são uma miragem. (...)


sábado, 25 de outubro de 2025

Laborinho Lúcio (1941-2025)

imagem retirada da internet
Com pesar recebi a notícia do falecimento do Dr. Álvaro Laborinho Lúcio. Tive a oportunidade de o conhecer durante o período em que exerceu funções como Ministro da República para os Açores, enquanto eu desempenhava as de Coordenador da Organização da Região Autónoma dos Açores do PCP. Desde então, a nossa relação pautou-se sempre por grande cordialidade e respeito mútuo.

Mesmo depois de termos deixado as funções que nos aproximaram, cruzámo-nos em várias ocasiões, nos Açores e em Lisboa. Nessas breves conversas, que nunca foram apenas de circunstância, partilhávamos preocupações e reflexões sobre temas que ambos considerávamos essenciais para a vida pública e para o país.

Recordo o Dr. Laborinho Lúcio como um homem de diálogo, com sentido de Estado e profundo respeito pelos outros.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

a propósito da proibição da burka

imagem retirada da internet
(…) proíbem o véu
ignoram a fome
a solidão
o frio das ruas vazias (…)







O Parlamento português aprovou hoje, por proposta da extrema-direita, uma lei que proíbe o uso da burka em espaços públicos. A decisão, envolta em retórica de segurança e libertação da mulher, revela sobretudo um sintoma inquietante: a facilidade com que se legisla sobre o que quase não existe. 

Em Portugal, raramente se vê uma mulher coberta por esse traje, mas, em contrapartida, cresce visivelmente o número de pessoas mergulhadas na pobreza, na exclusão e na precariedade, vítimas de políticas que não se ocupam da dignidade real da vida.

Mais do que discutir panos e véus, seria urgente debater as condições que empurram milhares de famílias para a carência, os jovens para a emigração e os idosos para a solidão. 

A obsessão com símbolos e vestuários serve, tantas vezes, para disfarçar o vazio de políticas estruturais. É mais fácil legislar sobre corpos alheios do que enfrentar as desigualdades e as injustiças que corroem a sociedade.

imagem retirada da internet
Há ainda um paradoxo que importa sublinhar, enquanto se condena, em nome da liberdade, a imposição de certas roupas às mulheres muçulmanas, naturaliza-se no Ocidente uma cultura que explora e sexualiza o corpo feminino até à exaustão. Entre o véu e o espelho, entre a ocultação e a exibição, o corpo da mulher continua a ser um campo de batalha simbólico e, raramente é um território de liberdade para as mulheres.

Talvez fosse tempo de deixarmos de decidir pelas mulheres muçulmanas, talvez fosse tempo de as ouvir, com respeito, as mulheres que dizem usar o hijab ou o chador por fé, por identidade, ou simplesmente por escolha. 

A liberdade não se impõe, reconhece-se e garante-se. E é isso, rigorosamente, que esta lei não faz.

António Borges Coelho (1928–2025)

Partiu hoje António Borges Coelho, historiador, escritor e resistente antifascista. Homem de saber vasto e palavra clara, dedicou a vida ao estudo da História de Portugal e à defesa intransigente da liberdade. Prisioneiro político do Estado Novo, nunca separou o trabalho do historiador da consciência do cidadão.

Na sua obra procurou dar voz aos que a história oficial calou. Mestre de várias gerações, Borges Coelho foi exemplo raro de integridade intelectual e de coerência humana, um historiador militante no sentido mais nobre do termo: aquele que serve a verdade, a justiça e a memória.

Com a morte de António Borges Coelho a reserva moral e cívica de Portugal extingue-se um pouco mais.

Até sempre!

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

“Nova Guerra Fria”

do arquivo pessoal
O termo “nova Guerra Fria” circula hoje com uma inquietante naturalidade. Volta a falar-se de blocos, alianças, sanções, ameaças e cercos, como se o século XXI tivesse voltado a tropeçar nos fantasmas do XX. Mas será que vivemos, de facto, um cenário semelhante, ou apenas caminhamos para ele!?

Alguns analistas e académicos das Relações Internacionais consideram que a expressão não se adequa à realidade, pois faltariam as marcas ideológicas que caracterizaram a Guerra Fria. Argumentam que os conflitos latentes atuais se centram noutras dimensões: tecnológica, económica e geopolítica. Eu diria, mesmo não sendo especialista, que tentar despojar esta disputa de uma carga ideológica é um erro.

É certo que a dicotomia capitalismo/comunismo desapareceu, mas a Guerra Fria tinha associada uma competição pela liderança económica, pelo bem-estar social, pela tecnologia e pela influência geopolítica entre dois blocos antagónicos. A nova configuração do poder mundial não repete o passado, é a mutação de um sistema que, após o anunciado e previsível colapso da ordem unipolar estado-unidense, procura desesperadamente recompor-se.

As disputas, ainda que com formas diferentes, continuam a refletir visões distintas da ordem mundial. Trata-se, pois, de um conflito ideológico, mesmo que sem os antagonismos declarados de outrora. Alteraram-se a semântica e as formas tecnológicas do poder, mas não a sua lógica. À primeira vista, pode parecer que não existe uma “nova Guerra Fria”, que não se trata de convencer o mundo de uma ideia, mas de o controlar através de fluxos de energia, de dados, de matérias-primas raras e, naturalmente, de capital. Mas nem tudo é assim tão linear.

O eixo central deste novo confronto é a competição entre os Estados Unidos e a China, o que, por si só, põe em causa o alegado despojamento ideológico das tensões mundiais num campo de batalha que é global. Em torno desta questão gravitam outras potências emergentes e outros interesses: Índia, Rússia, Irão, Turquia, Brasil, mas também países da América Central e do Sul, de África e do Médio e Extremo Oriente, que procuram afirmar margens de autonomia na nova ordem mundial, tendo como horizonte a criação de um mundo multipolar.

imagem retirada da internet

Trata-se, pois, de uma guerra em múltiplos tabuleiros, sem linhas de frente definidas, onde o poder se exerce tanto pela diplomacia e pela tecnologia quanto pela força militar, muitas vezes através de conflitos bélicos por procuração.

A disputa pela primazia tecnológica é a face mais visível desta tensão: semicondutores, inteligência artificial, telecomunicações 5G/6G, biotecnologia, controlo das cadeias produtivas. Quem dominar a tecnologia dominará o século. O domínio económico segue a mesma lógica: sanções, tarifas, bloqueios e a lenta, mas significativa, desdolarização do comércio internacional.

Nas margens, emergem novos blocos, como os BRICS ampliados, que desafiam a supremacia ocidental e ensaiam alternativas de cooperação financeira e política, bem como modelos de desenvolvimento cooperativo.

No plano geopolítico, a Ucrânia e Taiwan surgem como símbolos dessa nova cartografia do confronto. A guerra no leste europeu transformou-se num campo de desgaste prolongado entre o Ocidente e a Rússia, enquanto o Pacífico se militariza em torno da contenção da China. A expansão da OTAN, apresentada como estratégia de segurança, alimenta o medo e o ressentimento, e a diplomacia americana, travestida de defesa da liberdade e da democracia, oculta a persistência da velha lógica imperial: o controlo das rotas, dos recursos e das consciências.

Mas o mais inquietante talvez não esteja nas frentes de guerra, e sim na guerra híbrida que atravessa o quotidiano. O controlo digital, a manipulação da informação, a vigilância algorítmica e a militarização do espaço mediático criam uma atmosfera de suspeita e conformismo. A guerra tornou-se difusa e permanente: não precisa de ser declarada para existir. A sua presença normaliza-se, infiltrando-se nas economias, nas escolas, nas redes sociais. Vivemos num mundo em que a lógica do conflito se tornou infraestrutura da política.

imagem retirada da internet

Neste contexto, a União Europeia surge como um continente hesitante, despojado de voz própria. Enredada na dependência militar e energética dos Estados Unidos, renunciou à sua autonomia estratégica e à promessa de ser um terceiro caminho entre impérios. A política externa europeia é hoje ditada por Washington, e o preço dessa submissão mede-se em recessão económica, perda de soberania e erosão moral dos valores humanitários do Ocidente.

O Presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, sintetizou de forma brilhante a decadência desses valores ao afirmar sobre o genocídio perpetrado na Palestina:

“Ali também estão sepultados o direito internacional humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo. Em Gaza, a fome é usada como arma de guerra.”

A guerra na Ucrânia revelou a fragilidade da União Europeia, incapaz de pensar fora da lógica atlantista e prisioneira de uma solidariedade que se confunde com obediência aos militaristas da OTAN e aos humores da administração estado-unidense.

Portugal, periférico e pequeno, vive nesta teia de dependências. Sem estratégia própria, segue o rebanho europeu, justificando tudo em nome da pertença ao “mundo livre”. Mas a liberdade que se invoca é cada vez mais retórica: nas decisões fundamentais, energia, segurança, política externa, o país limita-se a repetir o que vem de Bruxelas, e Bruxelas o que vem de Washington. Esquecemos que a neutralidade ativa, o diálogo e a diplomacia multilateral poderiam ser caminhos de relevância e não sinais de fraqueza. Portugal, pela sua história e posição atlântica, poderia ser ponte, e não um mero eco subserviente.

A “nova Guerra Fria” não é apenas uma disputa entre potências: é também um conflito civilizacional. De um lado, um modelo que insiste em manter a hegemonia através da força e do medo; do outro, uma tentativa ainda incerta de reorganizar o mundo de forma multipolar. O perigo é que, entre ambas as visões, o planeta se torne refém de uma competição sem ética nem limites, em que a destruição ambiental, a corrida armamentista e a manipulação tecnológica se reforçam mutuamente.

imagem retirada da internet

Embora a ideia de um mundo policêntrico e cooperante seja mais aliciante, o risco está nos dirigentes políticos que, a Ocidente, insistem em preservar velhos domínios hegemónicos e num caminho cada vez menos seguro para os seus povos, que já pagam o preço das derivas de submissão ao capital. Mas o maior risco, o mais silencioso, é o da normalização da guerra. Quando o medo se torna rotina e o inimigo uma necessidade permanente, o pensamento crítico desaparece. A comunicação social oblitera e manipula a informação, as universidades silenciam-se e a sociedade aceita as decisões como inevitabilidades. A guerra deixa de ser exceção para se tornar condição estrutural de funcionamento das economias e dos Estados, e a paz passa a ser utopia. O desafio, portanto, não é escolher um lado, mas recusar a lógica bipolar que reduz o mundo a um tabuleiro. A humanidade precisa de reencontrar a medida política do equilíbrio, o espaço da diplomacia e a coragem de imaginar outro futuro. Enquanto as potências competem pela supremacia, o planeta aquece, as desigualdades agravam-se e a esperança esvai-se entre relatórios e cimeiras.

A “nova Guerra Fria” é o espelho de uma humanidade perdida na ilusão da supremacia de uns sobre outros, em projetos de dominação ancorados na uniformização do pensamento, dos costumes e das narrativas que tentam reescrever a história. E talvez o maior perigo não esteja nas armas, mas na indiferença. Indiferença, essa forma silenciosa de consentimento que permite que tudo se repita.

 Ponta Delgada, 14 de outubro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 15 de outubro de 2025

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

erosão dos valores

imagem retirada da internet



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.




(...) Mas o mais inquietante talvez não esteja nas frentes de guerra, e sim na guerra híbrida que atravessa o quotidiano. O controlo digital, a manipulação da informação, a vigilância algorítmica e a militarização do espaço mediático criam uma atmosfera de suspeita e conformismo. A guerra tornou-se difusa e permanente: não precisa de ser declarada para existir. A sua presença normaliza-se, infiltrando-se nas economias, nas escolas, nas redes sociais. Vivemos num mundo em que a lógica do conflito se tornou infraestrutura da política.

Neste contexto, a União Europeia surge como um continente hesitante, despojado de voz própria. Enredada na dependência militar e energética dos Estados Unidos, renunciou à sua autonomia estratégica e à promessa de ser um terceiro caminho entre impérios. A política externa europeia é hoje ditada por Washington, e o preço dessa submissão mede-se em recessão económica, perda de soberania e erosão moral dos valores humanitários do Ocidente.

O Presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, sintetizou de forma brilhante a decadência desses valores ao afirmar sobre o genocídio perpetrado na Palestina:

“Ali também estão sepultados o direito internacional humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo. Em Gaza, a fome é usada como arma de guerra.” (...)




quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Fernando Paulouro Neves (1947-2025)

Fernando Paulouro Neves, homem de palavra inteira e consciência socialmente comprometida. Jornalista de alma funda, moldou-se no rigor da linguagem e na fidelidade às causas que dão sentido à vida pública. No Jornal do Fundão foi mais do que um cronista do seu tempo, foi um intérprete atento das gentes e dos gestos, das pequenas grandezas que fazem a dignidade de uma terra.

Um dia depois de apresentar o seu último livro, como se tivesse cumprido um ciclo, partiu sem avisar, deixando nas páginas e na memória o rasto de uma lucidez comprometida com a liberdade, com a cultura e com a justiça. A sua escrita, limpa e justa, é testemunho de um país interior que não se resigna ao silêncio.

O Fernando foi um homem que não separou a vida da palavra, nem a palavra da responsabilidade de (re)pensar o mundo. 

Recordá-lo é afirmar a persistência de uma ética rara. Uma ética tão necessária nos tempos que correm, mas tão ausente dos palcos mediáticos.

Fica o exemplo, discreto e firme, de quem soube assumir a vida como um ofício de cidadania.

Até sempre, Fernando!

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 07 de outubro de 2025


domingo, 5 de outubro de 2025

Dia Mundial do Professor

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Ser professor é mais do que ensinar. Ser professor é partilhar o conhecimento e cultivar a curiosidade e a vontade de aprender, é promover o gosto pela descoberta e da reflexão, é abrir caminho para o pensamento crítico.

A docência é um ofício que molda o futuro sem esperar glória, que se alimenta dos princípios que sustentam a educação e a cultura como poderes transformadores e libertadores.

Neste dia em que o mundo celebra os professores, importa lembrar que o reconhecimento simbólico só é pleno quando acompanhado da valorização concreta. As lutas travadas pelas organizações sindicais docentes, em defesa de um estatuto profissional digno, de condições de trabalho justas e de uma escola pública de qualidade, são parte essencial dessa dignidade. Defender os professores é defender o direito ao saber e à igualdade de oportunidades.

Num tempo em que a ignorância é muitas vezes travestida de opinião e a cultura desvalorizada, o professor permanece como guardião da lucidez e da esperança. É nele que se renova a confiança de que educar continua a ser um dos mais belos e exigentes atos de resistência.

 Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 5 de outubro de 2025

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A falácia da transição verde

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A crise climática deixou de ser uma previsão sombria para se tornar numa evidência quotidiana, mesmo considerando a existência de alguns fundamentalismos entre os chamados militantes climáticos, também eles uma falácia pois, o seu posicionamento e ação refere-se, tão-somente, aos efeitos e nunca às causas. 

As temperaturas médias globais sobem, os períodos de estio alargam-se, os incêndios tornam-se mais devastadores, neste caso importa juntar outras variáveis, as chuvas são torrenciais e a subida das águas oceânicas um facto comprovado. Já não falamos de um futuro distante, mas de uma realidade que molda o presente e condiciona o futuro imediato. É neste cenário que se ergue a narrativa da chamada transição verde, apresentada como panaceia capaz de reconciliar desenvolvimento económico e a sustentabilidade ambiental. Mas, por detrás da retórica otimista e das metas da neutralidade carbónica, esconde-se uma falácia que importa denunciar e desconstruir.

A lógica dominante da transição energética, tal como é desenhada pelo Norte Global, não rompe com o paradigma que nos trouxe até aqui. Pelo contrário, reproduz as mesmas assimetrias, os mesmos vícios de exploração e a mesma crença cega no crescimento ilimitado, que decorre da agenda neoliberal. 

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Substitui-se a dependência dos combustíveis fósseis pela dependência de recursos minerais críticos (lítio, cobalto, níquel, terras raras), cuja extração intensiva ameaça ecossistemas frágeis e as comunidades humanas que os habitam. Aquilo que se proclama como energia limpa esconde uma pegada ecológica e social profunda, projetada sobre territórios do Sul Global, de África à América do Sul, passando também por regiões periféricas da Europa, um impacto ambiental e social que nos devia fazer refletir sobre os discursos e práticas dos decisores políticos. 

Basta observar o que acontece em países como a República Democrática do Congo, onde o cobalto alimenta a indústria das baterias elétricas, mas à custa de trabalho infantil, destruição ambiental e violência armada. Ou olhar para o triângulo do lítio (Argentina, Bolívia e Chile), onde a exploração do lítio destrói aquíferos, ameaçando modos de vida ancestrais. Mas também, em Portugal se ensaiam projetos de mineração em nome da modernidade verde, e é legítimo questionar se não se trata de mais uma repetição do velho padrão da extração predatória, devastando territórios para satisfazer necessidades externas, deixando atrás de si cicatrizes irreversíveis.

A promessa de uma economia descarbonizada assenta, assim, num equívoco, ou seja, pretende resolver um problema criado pelo excesso de consumo e pela aceleração produtiva através de uma solução que mantém intactos os mesmos pilares. É o que poderíamos chamar de maquilhagem verde, pintar de sustentável aquilo que permanece estruturalmente insustentável. A indústria automóvel, por exemplo, não questiona o modelo de mobilidade assente no transporte individual, mas apenas substitui motores de combustão por baterias de lítio. As grandes multinacionais energéticas não abandonam a lógica monopolista, apenas diversificam o portefólio para instalar parques solares e eólicos de escala gigantesca, muitas vezes implantados em territórios já sobrecarregados de injustiças sociais.

A esta cosmética junta-se um segundo mecanismo de engano: a transferência da responsabilidade para o indivíduo. O cidadão comum é chamado a reciclar, a trocar lâmpadas, a comprar carros elétricos, a moderar o seu consumo, como se o destino do planeta dependesse, em última instância, da soma de pequenos gestos domésticos. Esta pedagogia moral, tão ao gosto da cartilha neoliberal, desloca o centro do problema e da solução para a esfera individual, enquanto absolve governos, grandes corporações e sistemas económicos da mudança estrutural que se impõe.

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É claro que os comportamentos individuais têm relevância, mas a crise climática não se resolve no carrinho das compras nem na escolha entre um automóvel a diesel ou elétrico. A escala do problema é sistémica e resulta de um modelo produtivo extrativista, de cadeias globais de abastecimento energívoras, de uma lógica de crescimento que ignora os limites. Enquanto se responsabiliza o indivíduo, mantém-se intocado o paradigma que o obriga a viver em cidades desenhadas para o automóvel, a consumir bens de obsolescência programada, a depender de energia centralizada controlada por oligopólios.

Desconstruir este mito é essencial. Não se trata de um conjunto de decisões individuais, mas de uma mudança coletiva, cultural e política. A transição só será efetiva se questionar os alicerces do modelo de produção e consumo, redistribuir responsabilidades e enfrentar os poderes que lucram com a crise. Transferir a culpa para o indivíduo é cómodo para os grandes atores económicos, mas é apenas mais uma panaceia. O planeta não se salvará com consumidores mais conscientes, isso é apenas um pequeno contributo, mas com sociedades mais justas e Estados capazes de regular, limitar e transformar.

O problema não é a tecnologia em si, mas o enquadramento económico e político que a instrumentaliza. Quando a transição é pensada como mais uma oportunidade de negócio, em vez de mudança civilizacional, cai-se inevitavelmente na falácia. A lógica é a mesma de sempre: expandir mercados, abrir novas fronteiras de acumulação, transformar a crise ambiental em mercadoria. Assim, a transição verde não se afirma como rutura, mas como a continuidade de um modelo de crescimento económico caduco.

O caminho passa por reconhecer os limites. Limites do planeta, limites da exploração, limites de um modelo económico que não pode continuar a crescer infinitamente num espaço finito. A verdadeira rutura não é energética, mas cultural e política. Implica reduzir o metabolismo económico global, repensar padrões de produção e consumo, reorganizar as cadeias produtivas, fortalecer a proximidade e diminuir a dependência de fluxos materiais gigantescos.

É claro que tais mudanças não são neutras nem indolores. Significam tocar em interesses instalados, questionar privilégios, alterar hábitos quotidianos. Mas é ilusório acreditar que a crise climática se resolverá com soluções rápidas e indolores, embaladas em slogans publicitários. A neutralidade carbónica de 2050 não pode ser apenas um horizonte retórico. A neutralidade carbónica só terá sucesso com a concretização de profundas transformações nos modelos sociais, económicos e políticos de desenvolvimento, ou seja, exige uma rutura que vai muito para além da mera substituição de fontes de energia.

A União Europeia, e em particular Portugal, têm aqui uma oportunidade para se posicionarem de forma distinta. Em vez de ceder ao canto de sereia da mineração desenfreada em nome da modernidade verde, poderiam apostar em modelos descentralizados, na eficiência energética de pequena escala, na mobilidade coletiva e partilhada, na revitalização da agricultura sustentável e de proximidade. Poderiam, sobretudo, assumir uma política de sobriedade energética, em vez de perpetuar o dogma do consumo desenfreado.

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No fundo, o desafio que enfrentamos não é o de trocar petróleo por minerais críticos, mas o de redefinir a relação entre humanidade e natureza, entre economia e ecologia, entre presente e futuro, entre o bem-estar e a justiça social. A crise climática não será resolvida com soluções cosméticas, mas com coragem política e transformações que só a mobilização coletiva pode conseguir. 

A transição verde será falaciosa enquanto se limitar a colorir de sustentável o velho e insustentável paradigma de crescimento. Só será verdadeira quando aceitarmos que o planeta tem limites, e que a vida só floresce quando se respeitam os seus ritmos e equilíbrios. A crise climática não pode reduzir-se a mais uma oportunidade de negócio e à indução de novos padrões de consumo ancorados nos velhos princípios predatórios dos recursos naturais, ainda que maquilhados de verde. 

 Ponta Delgada, 29 de setembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 1 de outubro de 2025

Heba Zagout - a abrir outubro

imagem retirada da internet

(…) calaram as tuas mãos
não apagaram a tua arte
nas tuas telas respira a Palestina
das oliveiras
dos rostos
das crianças
da memória (…)

Aníbal C. Pires





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Heba Zagout pintava com as cores da terra e do exílio, como quem bordava na tela a memória coletiva de um povo. Cada traço era resistência, cada figura uma afirmação de existência contra o apagamento. Na sua arte cabiam as oliveiras, as mulheres, as casas teimosamente reerguidas sob as ruínas.

No dia 13 de outubro de 2023, as bombas genocidas da ocupação sionista calaram-lhe as mãos, mas não o seu legado. As suas telas sobrevivem como gritos silenciosos, como faróis no meio das trevas, lembrando que a Palestina não é só dor, mas também beleza e vida perseverante.

A sua morte não é apenas ausência é, sobretudo, presença transformada em luz. Heba permanece no gesto de cada criança que desenha o céu sobre Gaza, na voz de cada mulher que resiste, no sopro de cada artista que ousa criar sob o jugo colonial sionista e dos seus cúmplices.