sexta-feira, 30 de junho de 2023

atomização social – uma breve abordagem

imagem retirada da internet
O isolamento social não é um fenómeno recente, optar por viver à margem e afastado do convívio com a comunidade é uma escolha pessoal respeitável, como outras, e pode ser motivada por propósitos espirituais ou religiosos, como seja o caso dos eremitas cristãos do deserto, dos ascetas hindus, dos monges budistas e dos eremitas taoístas na China ou, simplesmente, por se preferir a solidão e a paz proporcionada, ou assim entendida, pelo afastamento social. 

O isolamento social, na história da humanidade, nem sempre dependeu das opções individuais, por vezes o afastamento social foi ditado por circunstâncias estranhas à vontade do indivíduo, como por exemplo em casos de doença, epidemias, conflitos armados de entre outros contextos quando era avisado o isolamento social para salvaguardar a própria vida. Recentemente a humanidade vivenciou a necessidade de manter distanciamento social como medida preventiva para evitar o contágio e propagação do vírus SARSCov2. A utilização da palavra distanciamento ao invés de isolamento social foi propositada, pois, as plataformas digitais de comunicação, permitiam-nos interações sociais e o acesso, diria, ilimitado à informação, mas também em virtude de as medidas de prevenção aconselharem o distanciamento e não o isolamento. Como sabemos muitos setores da atividade produtiva, do comércio e dos serviços mantiveram-se em funcionamento. Os trabalhadores desses setores mantinham distanciamento físico, mas não estavam isolados socialmente. 

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Não sendo novo, como uma opção de vida ou resultante de uma necessidade exógena à vontade individual, o isolamento social acompanha a história da humanidade e atualmente tem algumas derivações que parecendo ser de reforço das interações sociais promovem a atomização social. Somos, cada vez mais, os eremitas de um novo tipo, ainda que estejamos em todas as “redes sociais” e a nossa lista de “amigos” ou “seguidores” contabilize milhares de nomes.

A atomização social é uma forma de isolamento social que não resulta diretamente de uma escolha consciente, nem da necessidade objetiva de distanciamento social face a contextos que o exijam.

O fenómeno há muito que é observado nas grandes metrópoles. A dimensão da urbe contribui para a rutura dos laços sociais e comunitários e, por conseguinte, as interações fragmentam-se tornam-se mais superficiais e vão perdendo significância. Mas será, contudo, a cultura do individualismo promovido pelo neoliberalismo que mais contribuirá para a atomização social.

O neoliberalismo é, por definição, uma corrente ideológica que coloca no centro o indivíduo e a competição como motores do progresso e do desenvolvimento, princípios associados à redução das funções do Estado e do livre mercado. Conceito que, por diferentes motivos, tem uma grande penetração em muitos segmentos das sociedades ocidentais e ocidentalizadas como se comprova pela aceitação e apoio eleitoral que tem catapultado para o exercício do poder político forças conservadoras, travestidas de sociais-democratas e ditas populares. Veja-se, por exemplo, a composição do Parlamento Europeu e a correlação de forças ali presente, mas também a composição dos parlamentos nacionais dos estados-membros da União Europeia e, sobretudo, as políticas que têm sido adotadas.

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Ao promover a competição como o motor do funcionamento das sociedades ao contrário da cooperação, o sucesso individual e o atendimento de interesses próprios com prejuízo do bem comum e dos laços sociais, a cultura neoliberal contribui para a atomização social, pois, levado ao extremo com a redução das funções dos Estados e a redução das políticas públicas geram-se e acentuam-se as desigualdades sociais e económicas que, por sua vez, contribuem para a falta de coesão social. Dito de outra forma: o neoliberalismo, enquanto ideologia, afirma-se mostrando os (poucos) casos de sucesso individual e escondendo os milhões de pobres e excluídos. E se no período colonial as principais vítimas foram os povos colonizados, agora as vítimas do neoliberalismo são, também, os povos do chamado mundo ocidental, ou o “jardim do Borrell”, se assim preferirem. Os Estados Unidos têm mais de 40 milhões de cidadãos a viver na pobreza, na União Europeia mais de 90 milhões de pessoas vivem em risco de pobreza e exclusão. Estas pessoas não são pobres ou excluídas por opção, ou por não terem trabalhado o suficiente, estas pessoas são vítimas das políticas neoliberais que acrescentam riqueza à riqueza e excluem a maioria da população de aceder a rendimento e serviços que lhes permita viverem autonomamente e com a dignidade devida à sua condição humana.

As “redes sociais” são, também, um suporte, por paradoxal que pareça, de promoção da atomização social. É sabido que as “redes sociais” utilizam algoritmos que filtram e, de algum modo, personalizam os conteúdos com base nas nossas preferências individuais. Facto do qual não vem mal ao Mundo, porém essa exposição aos conteúdos propostos alinhados com a nossa própria visão do que nos rodeia acaba por criar uma realidade personalizada e “protegida” de opiniões e perspectivas divergentes o que pode inibir a compreensão holística dos fenómenos culturais, sociais, económicos e políticos contribuindo, assim, para a polarização e a fragmentação social. Por outro lado, as caraterísticas da comunicação digital são superficiais e impessoais. Se a estes aspetos aduzirmos o tempo e a energia consumidos nas plataformas digitais de comunicação, sobra muito pouco para atividades sociais, para a participação em atividades nas organizações coletivas, sejam elas culturais, de classe, ou mesmo políticas, para a família, para os amigos e, sobretudo, para a manutenção de relações, genuinamente, sociais. Ou seja, o isolamento social instala-se, ainda que, ligados virtualmente a milhares, em alguns casos centenas de milhar ou até milhões, de amigos e seguidores

Ainda em relação às “redes sociais” será importante considerar que também no mundo virtual impera o individualismo e, sobretudo, um ambiente de constante comparação e, por conseguinte, de competitividade o que gera estados de ansiedade e de baixa autoestima, com todos os efeitos negativos que daí podem advir.

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A atomização social provoca a diminuição das relações interpessoais, da participação cívica, da construção e consolidação de identidades coletivas e, por consequência, o enfraquecimento da democracia participativa e de mobilização para a organização de iniciativas de interesse comum. Não são, de todo, alheias a este fenómeno as altas taxas de abstenção nos atos eleitorais. Mas a atomização social, em particular, a promovida pelas “redes sociais” pela ausência de laços sociais que fomentam a compreensão, pela visão unilateral da realidade personalizada construída pelo algoritmo, pela falta de diálogo e cooperação entre pessoas e grupos diferentes, facilita a construção de estereótipos e pode promover atos discriminatórios, ou mesmo a adesão a movimentos supremacistas e extremistas, para além de efeitos que podem afetar o bem-estar individual e provocar algumas patologias indesejáveis.

Nem o individualismo, nem o uso das plataformas digitais de comunicação são, em si mesmo, negativos. Perversa é a forma como são utilizados para formatar opiniões aparentemente diversas, mas com a mesma matriz uniformizante do pensamento, dos costumes e do consumo.

 Ponta Delgada, 27 de junho de 2023

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 28 de junho de 2023


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