quarta-feira, 24 de julho de 2024

quando o rosmaninho florir

foto de Aníbal C. Pires

O regresso às raízes tem sido de curta duração e, com o passar do tempo, cada vez mais espaçado. Continuo a ir, cada vez menos, mas vou.  Persisto em regressar à região onde nasci e cresci. Os retornos são cada vez mais esporádicos, mas a ligação umbilical subsiste. As memórias e os afetos, por muito tempo que tenha passado desde quando ganhei asas e voei, permanecem apesar das raras idas e do pouco tempo que por ali permaneço. 

O afastamento geográfico e a passagem do tempo não nos despojam das lembranças e das pessoas que nos marcaram na infância e juventude, a não ser que queiramos esquecer, mas eu não quero olvidar e procuro manter bem viva a celebração dos lugares que calcorreei na minha infância e juventude e as gentes com quem me fui cruzando, as que me são mais próximas pelas ligações familiares, mas também de amizade, ou mesmo com quem partilhei efémeros, mas inolvidáveis, momentos. Estas ligações afetuosas com os lugares e gentes da minha infância e juventude fazem parte do sujeito que sou. A minha construção pessoal está alicerçada na geografia beirã e na cultura do povo que teima em preservar os seus costumes, apesar das vagas de massificação que, como noutros lugares e regiões, tendem a uniformizar o pensamento e os modos de vida.

Quando regresso e acontecem os reencontros com familiares e amigos, por muito tempo que se tenha passado, e por vezes passa muito, é como se nunca tivesse partido, é como sempre tivesse estado por ali. As afinidades aproximam-nos a conversa flui e usufruímos intensamente dos momentos presentes de partilha. Recordamos, mas não nos amarramos ao passado há sempre futuro no horizonte e compromissos que se renovam como se fossem uma garantia de novos encontros para alimentar memórias e reforçar vínculos.

foto de Aníbal C. Pires
Há uma herança cultural que nos une e nos identifica, o tempo e o distanciamento, sendo importantes, não se constituem como barreiras comunicacionais, o que nos junta é inabalável, ou não fossem os laços que nos ligam ancorados pela peculiar cultura que nos é comum.

Os antigos vínculos com as gentes os seus costumes e vivências deixam marcas indeléveis e os regressos acontecem, mesmo sabendo que os lugares se transformaram e que nem todas as pessoas ainda por ali estão. O tempo tudo transforma e a vida cumpre o seu ciclo, mas o tempo não apaga a memória das gentes e do que elas significaram, ou significam, para cada um de nós, por isso, dizemos quando nos perguntam quando regressamos aos lugares de infância: Onde vais? Vou à terra.

A cada ano são mais penosas as minhas viagens ao interior continental. Sim, é a idade, sim, são os baixos índices de humidade, sim, são as amplitudes térmicas, sim, é o abandono, sim é a desertificação e o envelhecimento. Se a baixa humidade relativa do ar e as temperaturas, provocam algum desconforto, sim, é verdade, mas o que verdadeiramente me inquieta é o abandono deste território e deste povo. 

O abandono, mas também as opções políticas ditadas por distantes centros de decisão e a voracidade do capitalismo que transformam a paisagem física e humana. Os antigos olivais e vinhas foram paulatinamente abandonados, não há quem cuide destas culturas, dando lugar à cultura intensiva, com os custos ambientais, sociais e económicos conhecidos. Opções que empobrecem os solos e as gentes e enricam poderosos grupos económicos. Dizem que é o progresso, até pode ser, mas matar a alma aos lugares é dar continuidade à desertificação que o discurso do poder diz querer combater.

imagem retirada da internet

Refiro frequentemente a cultura do olival e da vinha, sem esquecer a floresta e os produtos frutícolas e hortícolas, mas também a pecuária e, por conseguinte, a produção de um queijo de sabor, consistência e odor inconfundíveis e únicos. A minha insistência na cultura da vinha e do olival não surge por acaso. A existência de inúmeras “lagariças” onde se produziu vinho, mas também azeite, pelo menos no período da presença árabe no Sul da Península Ibérica (Al-Andalus) e até ao aparecimento dos lagares, são testemunhos da importância destas culturas na região. As “lagariças” deram lugar aos lagares, muitos deles em ruínas. Subsistem alguns ligados aos grandes grupos económicos e outros, fruto da persistência e resistência de alguns produtores que teimam em manter a qualidade e a excelência do azeite beirão.

Atormenta-me a substituição da agricultura extensiva pela produção intensiva, perturba-me a instalação de hectares de painéis solares em solos agrícolas. Percebo as preocupações ambientais, mas este é, apenas, mais um equívoco, como foi o biodiesel, ou como são os carros elétricos. Os ambientalistas talvez fiquem satisfeitos com esta conformação do capital às “exigências” de grupos de defesa do ambiente, mas não me parece que a agricultura intensiva, a inutilização de grandes áreas agrícolas para instalação de painéis solares, ou a transição para a mobilidade elétrica individual/familiar se relacione diretamente com sustentabilidade ambiental que todos desejamos e da qual depende, em última instância, a nossa sobrevivência. 

imagem retirada da internet
As culturas intensivas não são de hoje, a paisagem beirã transformou-se com o desaparecimento de grandes manchas florestais de pinheiro-bravo para dar lugar à cultura intensiva de eucalipto com os efeitos perniciosos que todos conhecemos, sem que houvesse força e vontade bastante para o evitar. Dessa opção continuamos, ano a ano, a pagar muito caro, seja pela proliferação de incêndios florestais seja pela destruição dos solos e pelo esgotamento dos aquíferos.

A coesão social e territorial não rima com opções que visam apenas e só o lucro de curto prazo ou de soluções para a produção de energia “limpa” que inutilizam os solos. Ainda assim há pessoas que teimam em ficar e preservar o património paisagístico e cultural contrariando as decisões tomadas em distantes e artificialmente aclimatados gabinetes, sejam eles em Lisboa, Bruxelas ou mesmo Washington, como recentemente se tem verificado.

imagem retirada da internet

Não seria necessário referenciar que estive de visita “à terra”. Que convivi durante alguns dias com um povo que é, como diz a canção, como o granito: “bem rijo e moreno”; e senti o pulsar dos lugares dos quais se diz: “onde nascem as oliveiras os homens não morrem”. Desta vez não foi apenas ir, foi estar. E foi bom apesar de todos os lamentos que fui referenciando ao longo do texto. As insistências para regressar mais de amiúde e estar mais tempo foram muitas e não tive como não deixar o compromisso de regressar brevemente e estar para além de uma fugidia visita, e assim deveria ser não fosse a baixa humidade relativa do ar e a variação da temperatura ao longo do ano. Agora que estou no Outono da vida irei na Primavera quando os rosmaninhos florirem.

Palvarinho, 19 de julho de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular 24 de julho de 2024

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