quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Tá tudo bem. Será que está!?

imagem retirada da internet
A 27 de julho de 2024, sábado, pelas 16h, fiz a apresentação de um livro na livraria Letras Lavadas, em Ponta Delgada. O agendamento não terá sido muito feliz, a meio de um sábado de Verão, não era expetável que houvesse muito público, e não houve. Mas, ainda assim, sempre se juntaram algumas pessoas interessadas em assistir à apresentação da obra Entre Cravos e Cardos (edições 70, 2024), de Thomas Fischer. Tinha havido alguma divulgação na comunicação social nacional e regional, o tema relaciona-se com a experiência de um cidadão de origem alemã que tinha vindo após a Revolução de Abril, que em 1983 decidiu viver em Portugal e que há alguns anos adquiriu a nacionalidade portuguesa, estes factos aliados a alguma curiosidade natural sobre o olhar do “outro” sobre nós, mesmo que esse “outro” já seja um dos nossos, é sempre aliciante e, muitas vezes, assume um caráter didático, para além de a momentos, nos poder abrir um sorriso quando nos identificamos com a descrição, ou quiçá, franzir o sobrolho quando as apreciações não são do nosso agrado, o que não é o caso como poderão verificar se vierem a ler o livro. 

Thomas Fischer é alemão de nascença, mas passou parte a infância em Inglaterra, onde iniciou os seus estudos elementares. Tendo regressado à Alemanha, foi na zona de Bremen que concluiu o ensino secundário, para depois seguir estudos superiores (Jornalismo, Economia e Sociologia) em Colónia. Foi alemão, em Inglaterra e “o inglês” na Alemanha, em Portugal, apesar de décadas de permanência e da aquisição da nacionalidade, continua a ser um “estrangeiro”.

Os jovens da geração do Thomas viveram o tempo das grandes utopias, mas também de grandes realizações e de alterações sociais e políticas que os moldaram e mobilizaram.

Os acontecimentos, preocupações e modos de vida dos jovens no final dos 60 e princípio dos 70. Woodstock, a revolução sexual, o governo de unidade popular no Chile, mas também o seu trágico fim, a guerra do Vietname, a revolução cubana, alguma desilusão, criada artificialmente, com os percursos nos países socialistas do Leste, a revolução de Abril em Portugal e o fascínio que exerceu sobre muitos jovens e menos jovens cidadãos europeus, mas também da América do Sul e do Norte, e de outros territórios mais longínquos. 

foto de Luís Monte
As caraterísticas da Revolução de Abril e as transformações ocorridas no período revolucionário, atraíram ao nosso país muitos jovens, mulheres e homens, das mais diversas proveniências geográficas e com objetivos diversos. Cada um à sua maneira queria sentir o pulsar de um inusitado golpe de estado militar que ao invés de instaurar uma ditadura acabou com uma e instaurou um regime democrático.

As transformações sociais e económicas da Revolução de Abril atraíram muitas centenas, quiçá milhares de jovens ligados às lutas políticas e sociais nos seus países de origem. A reforma agrária, a democracia popular e o autogoverno mobilizaram esses jovens, que não vieram só para sentir, mas para participar ativamente, uns com a genuína atitude de se integrarem no processo revolucionário, outros nem tanto. Mas esse é um outro assunto.

É neste contexto que Thomas Fischer chega a Portugal em 1975. Como ele passaram por Portugal muitos outros estrangeiros: músicos, jornalistas, intelectuais, dirigentes políticos e sindicalistas alguns sobejamente conhecidos, como por exemplo: Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Alain Touraine, Jean-François Revel, Jean Daniel, François Mitterrand, Gaston Deferre, Lionel Jospin, Georges Marchais, Alain Krivine, Heinrich Böll, Hans Magnus Enzensberger, Robert Kramer, ou ainda Gabriel Garcia Marquez. Thomas Fischer como muitos dos estrangeiros que vieram sentir o pulsar da Revolução de Abril regressou às suas ancestrais raízes. Mas Thomas Fischer veio, viu, gostou, voltou, em 1983, e por aqui ficou. Conhece Portugal como poucos portugueses conhecem, mantém uma forte ligação aos Açores que visitou pela primeira vez em 1983, curiosamente o ano em que aqui fixei residência, e este seu livro dá-nos conta das muitas viagens por Portugal, pelos acontecimentos que foram marcando a nossa história contemporânea, mas também pelo “ser português”, os seus paradoxos e até alguns “mistérios” por desvendar, como seja por exemplo conseguir viver com salários que nos envergonham e continuam a empurrar muitos dos nossos concidadãos para a emigração e cada vez mais para a pobreza.

Logo no início da apresentação e após os agradecimentos a quem estava presente, ao autor e à Letras Lavadas, fiz um teste ao Thomas, socorrendo-me de uma questão recorrente no livro, para verificar se o autor já estava imbuído do genuíno espírito português.

foto de Luís Monte

Olá Thomas! Está tudo bem!? Ao que o Thomas respondeu: Sim! Está tudo bem. A resposta foi a esperada. O Thomas já se apropriara de uma caraterística que não sendo tudo, diz muito do ser português. Como sabemos esta é uma pergunta que tem sempre a mesma resposta mesmo que tudo esteja mal. Raras são as vezes em que obtemos outra resposta à pergunta “Como estás?” que não seja “Tá tudo bem.” Podemos carregar dor, tristeza, ansiedade, angústia, mas face à pergunta de alguém que não faz parte do nosso círculo familiar ou de amigos próximos a resposta é sempre “tá tudo bem”. O Thomas explora, na sua obra Entre Cravos e Cardos, esta e outras facetas que, para o bem e para o mal, nos caraterizam.

A capa do livro é uma excelente síntese do conteúdo, os grafismos, em particular a estilização das duas flores que dão título ao livro e entre as quais se construíram e se desvaneceram sonhos. 

imagem retirada da internet
O cravo é uma flor que simboliza respeito, amor e paixão. Os craveiros fazem parte do imaginário português pois, raras são as casas portuguesas onde não existia “um craveiro a florir numa água-furtada”, como diz um conhecido fado interpretado por Amália Rodrigues, mas também num vaso à janela, ou ainda nos pequenos jardins das casas populares. Para além das variadas cores exalam um subtil e agradável aroma o que contribui para a popularidade destas plantas. Em Portugal, com o gesto de Celeste Caeiro, na manhã do dia 25 de Abril o cravo vermelho ganhou um novo e exponencial simbolismo e deu nome à revolução que muitas vezes é designada pela Revolução dos Cravos.


imagem retirada da internet
O cardo é uma flor silvestre que contrasta com a delicadeza dos cravos. É espinhosa, resiste bem ao calor e em solos arenosos (pobres). A flor do cardo se por um lado, é desagradável ao contacto, por causa das suas folhas espinhosas, por outro lado, é uma planta muito útil e decorativa, que floresce no Verão, numa profusão de belas flores rosa-púrpura. A sua principal utilização, para além de outras, é coalhar o leite para fazer os deliciosos queijos de Serpa, de Azeitão, da Beira Baixa e da Serra da Estrela, de entre outros. Os cardos são, também, utilizados na gastronomia, desde sempre e, mais recentemente, na medicina.

Entre a utopia e a realidade, assim se poderia chamar o livro de Thomas Fischer. Os sonhos que nasceram com os belos e rubros cravos de Abril e um povo que continua a sobreviver num país que nunca valorizou, nem mobilizou, ou não quis mobilizar, os seus cidadãos. A vida da generalidade dos portugueses é, como os cardos, dura e espinhosa.  Passados 50 anos sobre a Revolução dos Cravos o povo português continua, como os cardos, “sobrevive” em ambientes inóspitos, sem se saber muito bem como. Os cardos como os portugueses têm um potencial intrínseco subaproveitado que no caso dos cardos começa agora a ser devidamente estudado e valorizado. O título e a capa do livro são uma feliz metáfora.

Ponta Delgada, 29 de outubro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 30 de outubro de 2024

terça-feira, 29 de outubro de 2024

das revoluções

Thomas Fischer por Luís Monte

Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.







(...) Os jovens da geração do Thomas viveram o tempo das grandes utopias, mas também de grandes realizações e de alterações sociais e políticas que os moldaram e mobilizaram.

Os acontecimentos, preocupações e modos de vida dos jovens no final dos 60 e princípio dos 70. Woodstock, a revolução sexual, o governo de unidade popular no Chile, mas também o seu trágico fim, a guerra do Vietname, a revolução cubana, alguma desilusão, criada artificialmente, com os percursos nos países socialistas do Leste, a revolução de Abril em Portugal e o fascínio que exerceu sobre muitos jovens e menos jovens cidadãos europeus, mas também da América do Sul e do Norte, e de outros territórios mais longínquos. 

As caraterísticas da Revolução de Abril e as transformações ocorridas no período revolucionário, atraíram ao nosso país muitos jovens, mulheres e homens, das mais diversas proveniências geográficas e com objetivos diversos. Cada um à sua maneira queria sentir o pulsar de um inusitado golpe de estado militar que ao invés de instaurar uma ditadura acabou com uma e instaurou um regime democrático.

As transformações sociais e económicas da Revolução de Abril atraíram muitas centenas, quiçá milhares de jovens ligados às lutas políticas e sociais nos seus países de origem. A reforma agrária, a democracia popular e o autogoverno mobilizaram esses jovens, que não vieram só para sentir, mas para participar ativamente, uns com a genuína atitude de se integrarem no processo revolucionário, outros nem tanto. Mas esse é um outro assunto. (...)


quarta-feira, 16 de outubro de 2024

por amor, fiquei.

foto de Paulo R. Cabral
Estou aposentado. Gosto mais do termo jubilado, mas o vocábulo em Portugal não se generalizou e aplica-se apenas a algumas profissões, este estado ou estatuto de aposentado, como prefiram, libertou-me dos deveres profissionais, mas não das obrigações que tenho para com a comunidade onde há mais de 41 anos decidi viver. Para evitar ambiguidades devo esclarecer que as “obrigações” a que me refiro decorrem, tão-somente, da minha vontade e disponibilidade para continuar a cooperar com organizações que intervêm em distintos aspetos da vida social, cultural e política da Região. Não é um encargo, é a forma que encontrei de retribuir o acolhimento que este povo me concedeu e sem grandes delongas temporais me fez sentir como se por aqui tivesse nascido. Poderia fazer outras opções retirando-me para a tranquilidade do sofá, mas isso seria contrariar toda uma vida de intervenção cívica.

Diz-se dos forasteiros que se fixam por aqui: ilhanizados ou açorianófilos; e assim será para quem passado, um período de descontinentalização, assume a condição de ilhéu. Ou seja, é-se ilhéu após um processo de compreensão e assunção do viver e sentir insular. Tenho um amigo que me colocou o epíteto, é público não estou a cometer nenhuma inconfidência, de “ilhéu continental” e eu aceito, sem reservas, o sentimento da minha pertença a estas ínsulas é, para ele, uma evidência e também sabe que isso é compaginável com os meus regressos (físicos ou através da escrita) às origens beirãs.

foto de Aníbal C. Pires

Vim por acaso, fiquei por amor a estas ilhas, outro amor já tinha, por aqui o cultivei, fortaleci e sazonou. Quando cheguei em 1983 fiquei deslumbrado com a orografia, a luz e os matizes de verde e azul, por vezes, cobertos por um espesso manto cinzento, mas não foi a paisagem que me fez ficar, ninguém fica só pela paisagem. Se foi e é importante, não duvido. Mas os lugares são as pessoas que os habitam e a forma como se adaptam e recriam os saberes ancestrais. Os açorianos construíram uma matriz cultural distinta, marcada pelo isolamento que a geografia ditou, pelo abandono do poder central, pela natureza, nem sempre amigável, pelo seu posicionamento no Atlântico Norte que expõe estas ínsulas à violência das tempestades atmosféricas e oceânicas, daí nasceu a profunda religiosidade deste povo ilhéu e da qual o culto ao Divino Espírito Santo se manifesta de forma transversal na Região e na diáspora. Fiquei por amor a estas ilhas e a este povo, aqui quero continuar a viver.   

Cedo iniciei um percurso que me permitiu visitar todo o arquipélago com o qual me encantei, o conhecimento consolidou-se ao longo dos anos e a sedução não se desvaneceu. As ilhas açorianas e o seu povo continuam a deslumbrar-me. A cada vez que mergulho na ilha onde vivo, ou quando viajo e permaneço alguns dias numa qualquer outra das ilhas açorianas consolido o amor que me fez ficar e surpreendo-me com novas descobertas, de lugares, de usos e de pessoas. São as pessoas que corajosamente teimam em manter vivos os lugares emprestando-lhe o seu labor e criatividade para que a sua ilha, as nossas ilhas, não caiam no esquecimento, são essas as pessoas que me entusiasmam e continuam a surpreender. E eu gosto de ser maravilhado, emociono-me e gosto. As gentes e os lugares continuam a enternecer-me como só agora tivesse aportado a estas ilhas.

foto de Aníbal C. Pires
A viagem e estadia mais recente foi na ilha de Santa Maria onde participei no 39.º Colóquio da Lusofonia. A ilha de “Gonçalo Velho, a “ilha Mãe”, a “ilha mal lembrada”, a “little America”, ou qualquer outra designação que se dê à primeira ilha dos Açores a ser povoada, fica-lhe bem e reflete ideias e períodos de apogeu ou declínio da sua história.

Os Colóquios da Lusofonia são enriquecedores para os intervenientes e para quem se dispõe a assistir às diferentes sessões e atividades. A sua realização fora da habitual tripolaridade, herança de que a autonomia não se conseguiu libertar, é sempre de saudar e tem relevância para as comunidades que albergam o evento. Se podia ser melhor!? Claro que sim, pode sempre aperfeiçoar-se e, face à informação que disponho, os seus organizadores desejam fazê-lo contando para isso com o contributo e sugestões de quem participa, habitualmente ou não. A próxima edição dos Colóquios da Lusofonia será, em abril, na ilha das Flores. A celebração da Revolução de Abril será, julgo eu, alvo de particular atenção na 40.ª edição deste evento cultural que continua a mobilizar vontades.

À margem das sessões dão-se outros encontros, criam-se dinâmicas, desenham-se projetos multi ou bilaterais e cria-se a oportunidade de rever amigos, conhecer novas pessoas que, por vezes, nos surpreendem pela sua sensibilidade, criatividade e trabalho desenvolvido nas artes ou pela sua intervenção social e cívica. E eu sinto que ainda tenho muito para conhecer dos Açores e das suas gentes.

Santa Maria continua a surpreender-me, mesmo sem ter ido onde não me canso de ir e de não poder ter estado com algumas pessoas que muito estimo. Estive, como já referi, em Santa Maria e vim uma vez mais maravilhado pelo que aprendi e pelo que ignorava e fiquei a saber, eu que penso(ava) deter um conhecimento aprofundado sobre Santa Maria e os marienses. Quando cuido que não há mais nada para aprender e conhecer na “ilha Mãe” sou maravilhado com a novas descobertas. Tive oportunidade de rever velhos amigos e conversar sobre o “clima” político, pré-autárquico, que se vive em Santa Maria, ou apenas jogar palavras fora sem outro intuito para além da conversa pela conversa que pode até aparentar ser vaga, mas tem sempre um propósito e proporciona novas aprendizagens e, como eu sou um eterno aprendiz, gosto de conversar, deixar fluir as palavras livremente e, aprender. 

Foto de Aníbal C. Pires

Se com os velhos amigos a comunicação se retoma com naturalidade, o tempo e a distância não se constituem como barreiras para retomar uma conversa, com as pessoas com quem falamos a primeira vez percebemos, passados alguns momentos, se a arquitetura das pontes nos une e, quando assim é, as palavras brotam, a cumplicidade instala-se, e é bom. E foi bom estar e sentir o pulsar de Santa Maria.

É bom regressar e continuar a descobrir novos lugares e pessoas, é bom continuar a aprender como é ser ilhéu nas Flores, na Graciosa, em Santa Maria, na Terceira, ilhas onde estive durante este ano, ou S. Miguel onde vivo, ou em qualquer outra onde regresso sempre que me é possível. São realidades geográficas, sociais, culturais, económicas e políticas diversas, querendo com isto significar que: para realidades diferentes o investimento público tem, naturalmente, de ser diferenciado e os projetos de desenvolvimento sustentável distintos, como diferente é o potencial endémico de cada uma das ilhas deste arquipélago, por vezes ainda desconhecido e muitas vezes, demasiadas vezes, esquecido por remotos poderes.

Ponta Delgada, 15 de outubro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 16 de outubro de 2024

terça-feira, 15 de outubro de 2024

confidência

foto de Paulo R. Cabral
Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.







(...) Os açorianos construíram uma matriz cultural distinta, marcada pelo isolamento que a geografia ditou, pelo abandono do poder central, pela natureza, nem sempre amigável, pelo seu posicionamento no Atlântico Norte que expõe estas ínsulas à violência das tempestades atmosféricas e oceânicas, daí nasceu a profunda religiosidade deste povo ilhéu e da qual o culto ao Divino Espírito Santo se manifesta de forma transversal na Região e na diáspora. Fiquei por amor a estas ilhas e a este povo, aqui quero continuar a viver.   

Cedo iniciei um percurso que me permitiu visitar todo o arquipélago com o qual me encantei, o conhecimento consolidou-se ao longo dos anos e a sedução não se desvaneceu. As ilhas açorianas e o seu povo continuam a deslumbrar-me. A cada vez que mergulho na ilha onde vivo, ou quando viajo e permaneço alguns dias numa qualquer outra das ilhas açorianas consolido o amor que me fez ficar e surpreendo-me com novas descobertas, de lugares, de usos e de pessoas. São as pessoas que corajosamente teimam em manter vivos os lugares emprestando-lhe o seu labor e criatividade para que a sua ilha, as nossas ilhas, não caiam no esquecimento, são essas as pessoas que me entusiasmam e continuam a surpreender. E eu gosto de ser maravilhado, emociono-me e gosto. As gentes e os lugares continuam a enternecer-me como só agora tivesse aportado a estas ilhas. (...)


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Mundos diferentes

imagem retirada da internet
O humanismo é um valor inalienável e deve ser entendido pelas instituições como o primado da promoção do bem-estar e dignidade dos seres humanos em qualquer rincão do planeta. Quando foi que perdemos o humanismo!? Quando foi que a humanidade deixou de o ser!?

Os humanos vivem no mesmo planeta, mas em mundos diferentes. Não se trata de diversidade cultural. Também, mas não só. Os mundos diferentes de que falo são: o mundo dos excessos, do luxo, da futilidade, do acessório; e o mundo da escassez onde as necessidades básicas não são satisfeitas. E não deixa de ser paradoxal que o mundo da escassez seja o que detém as maiores reservas de metais preciosos e, não me refiro apenas ao ouro. Minerais como o lítio, o cobalto e o níquel são igualmente preciosos pois, constituem-se como os principais componentes das baterias dos telemóveis e dos carros elétricos, para além de outros produtos que se constituem como fundamentais para alcançar as metas de emissões de carbono zero até 2030, no mundo dos excessos. O mundo da escassez não tem metas para reduzir as emissões de carbono, as metas do mundo da escassez são mais básicas: acesso a água potável, a alimentos, à educação e à saúde.

Não é meu propósito, e assim vai ser, aprofundar muito a questão da transição energética, mas algumas questões ligadas à exploração mineira o lítio do cobalto e do níquel colocam-me sérias dúvidas sobre o balanço ambiental e social dessa mudança de paradigma, desde logo em virtude das reservas desses minerais se situarem, na sua maioria, nos países do Sul global e as vantagens económicas se destinarem ao Norte global e outras economias emergentes.

imagem retirada da internet
É importante, é necessário, é imperativo que se encontrem alternativas aos combustíveis fosseis, mas a transição energética que está desenhada na União Europeia, pela dependência dos minerais que referi, não é ambientalmente sustentável. As maiores reservas mundiais de lítio situam-se no chamado triângulo andino, ou do lítio, (Argentina, Chile e Bolívia) e, para a produção de uma tonelada de lítio consomem-se dois milhões de litros de água que não pode ser reutilizada para consumo humano, nem para a agricultura. Existem outros aspetos a considerar sobre a extração de lítio, de cobalto e de níquel, como por exemplo a queima de várias toneladas de combustíveis fósseis para obter uma tonelada destes metais, e todos eles não são nada amigos do ambiente, isto para não referir os graves aspetos sociais que, também, têm associados, mas só o facto do desperdício de água e o consumo de combustíveis fosseis julgo serem suficientes para nos interrogarmos, apenas numa perspetiva ambiental, sobre este modelo de transição energética e quem beneficia com ele. O planeta não é certamente, e, por isso, fico sem entender muito bem alguns ativistas da defesa do ambiente, julgo que existem por aí algumas confusões como por exemplo a ideia de que este modelo de transição energética nos conduz a zero emissões, ou então, o cliché profusamente veiculado que a continuarmos assim o planeta acaba. E o planeta acabará, não tenho dúvidas, mas não será pelos motivos associados a essa premissa, o que acabará se nada for feito, muito antes do fim do planeta, é a espécie humana da qual o planeta não necessita para rigorosamente nada, connosco acabarão outras espécies e outras irão sobreviver como tem vindo a acontecer no planeta durante os milhões de anos em que a espécie humana não existia.

E não são, apenas, a geografia e as caraterísticas culturais diferenciadoras dos grupos humanos que separam estes mundos que coexistem no mesmo planeta. Por estes dias aconteceu a entrega de prémios, promovida por uma televisão nacional, aos vencedores de distintas áreas das artes, por estes dias aconteceu uma manifestação reivindicando habitação e dignidade para quem vive e trabalha em Lisboa, por estes dias o número de cidadãos a dormir nas ruas e praças da capital aumentou, por estes dias, também aconteceu uma manifestação racista e xenófoba que só teve impacto público pela cobertura mediática que foi dada a pouco mais de uma centena de pessoas que foram manifestar a sua intolerância, pode ler-se ignorância, aliás a exposição da insciência está na moda e ganha cada vez mais adeptos. Os donos disto tudo gostam, apoiam e promovem. Estes são alguns exemplos, na mesma geografia, de mundos diferentes. 

imagem retirada da internet
Os cidadãos vibram com o glamour da distribuição dos prémios televisivos e com o vestido da Ana Moura (nada a comentar, a Ana Moura veste-se como muito bem entender), ignoram a luta pelo direito à habitação e contra a gentrificação de Lisboa e lamentam que a manifestação racista e xenófoba não tivesse mais apoiantes presentes, pois, no sofá abundam.

O recurso a acontecimentos que nos são próximos e de que todos ouvimos falar, até eu que não vejo televisão, não foi por acaso. Podia até referenciar alguns exemplos da cidade onde vivo para dar maior proximidade a realidades que vão ao encontro da ideia central com que iniciei este texto: vivemos todos no mesmo planeta, mas em mundos diferentes; tais são as assimetrias que se verificam e onde uns têm mais valor que outros.

E não, não me estou a referir à desvalorização social dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção RSI, nem aos inúmeros sem abrigo que vivem nas ruas e praças de Ponta Delgada e que tanto incomodam as consciências da “classe média”, ou seja, a consciência dos cidadãos assalariados com salários acima da média regional e nacional, o salário médio regional é tão baixo que para estabelecer o paralelismo socorri-me do salário médio nacional, mas a questão central são as diferenças sociais e económicas que, dentro da mesma cidade, nos separam. Para os mais distraídos e para não perder o fio à meada estou a referir-me aos pobres, sejam eles os beneficiários do RSI, os sem abrigo, os trabalhadores, os reformados e as crianças. Também na nossa proximidade há um mundo de excessos, de luxo e de acessórios a conviver, mantendo uma distância de segurança, com o mundo da escassez.

Se nos alheamos do que se passa à nossa volta e continuamos a valorizar, no sentido de manter tudo como está, o que é acessório e fútil, então a indiferença aos dramas humanitários, mais ou menos distantes, não nos inquieta e a desumanização instala-se.


A agenda 2030, aprovada pela Organização das Nações Unidas, contem um conjunto de Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), são 17, e, como não podia deixar de ser, não se limitam, apenas e só, às questões ambientais, conquanto lhes dê uma particular enfâse. Os objetivos e as medidas que constam deste documento estão por aí à distância de um clique, mas sempre direi que acabar com a pobreza e com a fome são os dois primeiros objetivos, a saúde, o trabalho, a educação, a redução das desigualdades, fazem parte desta “generosa” lista de intenções que, como nos temos habituado não passará disso mesmo: uma lista de intenções. Não quero dizer com isto que não é importante, claro que é; antes ter estas referências do que nenhumas, mas não sou ingénuo e tenho consciência de que só é possível atingir os ODS com alterações profundas na ordem mundial, e essas demoram o seu tempo, não sei sequer se virão a tempo, o que não me inibe de continuar a acreditar e lutar por essas transformações.


Ponta Delgada, 1 de outubro de 2024 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 2 outubro de 2024

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

excesso e escassez

imagem retirada da internet

Excerto de texto para publicação na imprensa regional (Diário Insular) e, como é habitual, também aqui no blogue momentos




(...) Os mundos diferentes de que falo são: o mundo dos excessos, do luxo, da futilidade, do acessório; e o mundo da escassez onde as necessidades básicas não são satisfeitas. E não deixa de ser paradoxal que o mundo da escassez seja o que detém as maiores reservas de metais preciosos e, não me refiro apenas ao ouro. Minerais como o lítio, o cobalto e o níquel são igualmente preciosos pois, constituem-se como os principais componentes das baterias dos telemóveis e dos carros elétricos, para além de outros produtos que se constituem como fundamentais para alcançar as metas de emissões de carbono zero até 2030, no mundo dos excessos. O mundo da escassez não tem metas para reduzir as emissões de carbono, as metas do mundo da escassez são mais básicas: acesso a água potável, a alimentos, à educação e à saúde. (...)