terça-feira, 25 de novembro de 2025

a gramática do cinema

Ler A Linguagem Secreta do Cinema, de Jean-Claude Carrière, foi como se tivesse entrado numa oficina silenciosa onde as imagens induzem estados de alma, mas também nos devem obrigar a pensar, descodificando o que vemos, para isso é necessário conhecer a gramática da sétima arte. Carrière desmonta o mecanismo do olhar cinematográfico com a elegância de quem conhece cada engrenagem e cada sombra. Mostra-nos que o cinema não é apenas uma arte do visível. O cinema é, sobretudo, uma forma de organizar o mundo, de sugerir sentidos, de impor ritmos ao tempo e à memória. Há, no modo como um plano se aproxima ou se afasta, uma gramática de sedução e de poder, uma forma de orientar a atenção e de moldar a interpretação.

Mas Carrière lembra-nos também, mesmo quando o diz nas entrelinhas, que todo o cinema conta histórias e que toda a história contada implica escolhas. E é aqui que a reflexão ganha outra densidade. Porque o cinema, especialmente o que domina o mercado global, nem sempre se limita a narrar. O cinema não poucas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Hollywood, não toda, mas uma parte significativa, especializou-se nessa arte subtil da indução narrativa, criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica, tudo isto rende mais do que a bilheteira, rende uma visão distorcida do mundo.

Por isso este livro é tão pertinente. Ele recorda-nos que o cinema é uma linguagem com força suficiente para se infiltrar na imaginação coletiva e, a partir daí, influenciar a perceção do passado e a leitura do presente. A cada plano montado, uma hipótese de verdade é sugerida, a cada elipse, uma zona de sombra é criada. Carrière não nos oferece receitas, mas um alerta: compreender o cinema é aprender a desconfiar da facilidade das imagens, da doçura com que nos oferecem certezas. É um convite a ver com mais atenção, e, talvez, a resistir melhor à sedução das narrativas que não querem apenas entreter, mas moldar o que pensamos ser real e, assim, criar realidades paralelas.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025


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