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| foto de Aníbal C. Pires |
Ao longo das suas vinte edições, este festival da cultura e do livro tem sido mais, muito mais do que uma feira do livro, como por vezes é referenciado, mas é-o também. O “Outono Vivo” é uma celebração da cultura que resiste, uma festa das palavras que unem e alimentam, uma pausa luminosa no ritmo fragmentado do quotidiano. Quem entra no edifício que alberga a Academia da Juventude e das Artes da ilha Terceira sente o murmúrio de um país possível e desejável: leitores curiosos, crianças com o olhar maravilhado, autores disponíveis para conversar, professores, leitores ávidos de novidades, livreiros, editores e voluntários que, juntos, dão corpo a um milagre de continuidade e de renovação a cada ano que passa.
Num tempo em que tantas iniciativas culturais minguam ou desaparecem, ver o “Outono Vivo” chegar à sua vigésima edição é motivo de celebração e de reconhecimento. É celebrar uma política cultural coerente e reconhecer a importância deste evento no contexto da ilha Terceira, mas também dos Açores e do país. E é, também, celebrar, reconhecer e valorizar uma comunidade que acredita que a cultura e a fruição cultural são indissociáveis de qualquer projeto de desenvolvimento digno desse nome.
Se o “Outono Vivo”, só por si não resolve os problemas demográficos, sociais e económicos da cidade e do concelho da Praia da Vitória, e esta será (é) uma verdade insofismável, mas a realização deste evento cultural contribui, por certo, para que se encontrem os caminhos e se construam soluções para que a Praia da Vitória possa revitalizar o seu tecido social e económico.
A feira do livro da Praia da Vitória é, provavelmente, a terceira maior do país, depois de Lisboa e do Porto. Refiro isto, pois nos Açores, tem um imenso peso simbólico. Expressa que, mesmo longe dos grandes centros, é possível erguer um espaço de encontro e de partilha que coloca a cultura no centro da vida pública local, mas também na agenda cultural do país.
O “Outono Vivo” é, por isso, um gesto político no melhor sentido da palavra. Num mundo cada vez mais dominado pela lógica do consumo rápido e de entretenimento sem outro propósito que não seja distrair. Reunir centenas, ou mesmo milhares, de pessoas em torno dos livros é afirmar que a cultura é um bem comum, não um luxo. É afirmar que ler continua a ser um ato de liberdade e de resistência, talvez seja mesmo o mais silencioso, o mais profundo e consistente. Como dizia José Marti (século XIX): “ser culto é a única forma de ser livre”. E eu direi que: o conhecimento e a educação são essenciais para o exercício da liberdade individual e coletiva. A educação e o conhecimento libertam o pensamento de preconceitos e dependências, transformando-nos em cidadãos capacitados para tomar decisões autónomas e com uma compreensão profunda da realidade que nos rodeia 
foto de Aníbal C. Pires
A Câmara Municipal da Praia da Vitória, os trabalhadores da autarquia, a Cooperativa Praia Cultural, as organizações e as personalidades que se envolvem na realização deste evento merecem, por isso, um justo reconhecimento público, por manterem, ao longo de duas décadas, uma aposta séria e persistente na cultura. Porque entendem que o investimento na cultura, na memória e na criação de espaços onde se fundem diferentes iniciativas culturais que atraem e envolvem os cidadãos com diversos gostos e interesses é o que mais dignifica uma comunidade.
Mas, também, porque o fazem com abertura, convidando autores de diferentes geografias literárias, promovendo o diálogo entre gerações e dando espaço às vozes locais, às escolas, às associações e aos leitores anónimos que fazem deste festival uma casa partilhada.
E, entre conversas, leituras e lançamentos, o que se revela é uma outra geografia: a de uma cidade que se reconhece como parte de um arquipélago cultural, pequeno em tamanho, mas imenso na conceção, produção, promoção e fruição de bens culturais.
Talvez o mais belo no “Outono Vivo” seja a sua dimensão silenciosa: a de semear. Semear o gosto pela leitura nas crianças que ali descobrem o seu primeiro livro. Semear o respeito pela palavra nas conversas que aproximam autores e leitores. Semear o sentido de comunidade num tempo em que tudo parece fragmentar-se.
O futuro da cultura não depende apenas das megas produções, nem de instituições centralizadas que tudo querem dominar, mas de gestos como este: contínuos, enraizados, pacientes. O futuro da cultura depende da capacidade de inovar e manter viva a chama de cada edição, mesmo quando os tempos não são favoráveis.
O “Outono Vivo” é como uma sementeira do tempo outonal. E a cada ano nasce e renova-se, prova que é possível criar e manter um lugar para a partilha e para a cultura num território periférico, e lembra-nos que a periferia é também um ponto de vista, talvez um lugar de onde melhor se vê o mundo, ainda que: 
foto de Aníbal C. Pires
(…) o céu e o mar/num concerto de silêncios/confundem-se no horizonte/não há linha/só uma promessa de infinito (…);
Ou talvez por isso, pela promessa de infinito, que melhor se vislumbra e entende o mundo policêntrico a partir das periferias.
Num tempo em que o ruído mediático ameaça a reflexão e o imediato sufoca o essencial, o “Outono Vivo” devolve-nos a palavra e uma réstia de esperança num mundo diferente e melhor.
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| foto de Júlia Dinis |
Talvez seja isso que o “Outono Vivo” nos ensina, ano após ano: que a primavera pode acontecer em qualquer estação, desde que haja quem plante. Que o renascimento não vem apenas da natureza, mas da vontade das comunidades que persistem em criar, pensar, agir e partilhar.
Na Praia da Vitória, a cultura tem raízes fundas e floresce no tempo certo, o tempo do encontro e da partilha. O que aqui se constrói é mais do que um evento cultural: é uma pedagogia da esperança, um exercício de cidadania e de pertença. Porque a cultura, quando vivida coletivamente, é a forma mais luminosa da liberdade. Não menos importante é o acolhimento afetuoso com que a organização brinda os seus convidados, para alguns pode ser de somenos importância, para mim que sou um homem dos afetos é, também, uma das virtualidades deste evento cultural.
Tudo renasce na primavera, mesmo que esta aconteça no outono. E, talvez por isso, quando as portas do “Outono Vivo” se fecham, o que fica é esse rumor de primavera, discreto, persistente, que nos recorda que nenhum outono é definitivo enquanto houver livros, leitores e a vontade indómita de fazer acontecer.
Ponta Delgada, 11 de novembro de 2025




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