segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O encanto dos sonhos


Corria para mim de braços estendidos, vinha lavada em lágrimas e a soluçar lamentando-se, Avô, avô o Pai Natal não existe foi a mãe que comprou e pôs as prendas ao pé da árvore. Acolhi-a nos meus braços, sentei-a no meu colo e abracei-a. Conhecia bem o que a Maria Benedita estava a sentir. Também eu, um dia, passei pelo mesmo, eram outros tempos e outras estórias, o mesmo desapontamento. Da memória chegou ao presente aquele dia em que me senti despeitado, magoado por quem mais me amava e me queria bem. O dia em que percebi que não era o Menino Jesus a visitar todos os lares deixando uma prenda no sapatinho. Sim, o Menino Jesus porque esse papel nem sempre foi, na tradição portuguesa, atribuído ao Pai Natal, nem a Árvore fazia parte da encenação natalícia. No tempo e lugares da minha infância as ofertas eram depositadas no sapatinho colocado, na noite da consoada, em lugar estratégico e acessível ao Deus-menino.
Limpei-lhe as lágrimas e o nariz que gotejava tanto como os seus olhinhos, tamanha era a mistura de sentimentos que invadiam aquele pequeno coração que batia acelerado por incompreensíveis contradições. Enquanto lhe afagava o cabelo e lhe depositava carinhosos beijos no rosto rosado, dissimulava uma lágrima que teimava em aflorar nos meus olhos vinda de um passado já bem distante mas que hoje, como quando há alguns anos a Margarida fez a mesma descoberta, está bem presente, e dizia-lhe, Benedita o avô vai-te explicar a estória do Natal e todas as estórias que os adultos inventam e inventaram sobre o Natal e o Pai Natal.
Atrás da Benedita tinha vindo toda a comitiva familiar, pedi-lhes que nos deixassem tendo, porém permitido que a Margarida e o João, os outros netos, ficassem. Precisava do apoio de alguém. Alguém que falasse a linguagem que só as crianças conhecem, e sentisse, pela proximidade temporal, a dor e a mágoa da neta que se tinha refugiado nos meus braços. Pensei para comigo, fui cúmplice também eu estou eivado pela culpa, ainda assim foi em mim que ela procurou refúgio e conforto. Confiou, como mais tarde, daqui a pouco, voltará a confiar na mãe e no pai quando perceber, como todos os meninos e meninas acabam por perceber e aceitar que, a representação que lhes é construída, durante a infância, sobre o ritual das ofertas de Natal, não é mais do que colorir com uma paleta de sonhos e magia aqueles dias que antecedem o ritual da vida, vida celebrada no mundo católico pelo nascimento do Deus-menino, Jesus de seu nome próprio.
Como explicar a uma criança que ainda não completou 5 anos toda esta encenação concebida com o amor e carinho dos progenitores, como fazê-lo sem recorrer a elaboradas elucidações sobre o significado das dádivas trocadas nesta época do ano, da solidariedade, da importância da família e da amizade, como fazê-lo sem recorrer à figura de S. Nicolau ou, ainda sem recurso ao relato das comemorações pagãs ao Sol que pelo Solstício de Inverno celebram um novo ciclo de tempo. Como? Podia até, desconstruir a figura estereotipada do Pai Natal, introduzida no imaginário infantil por via da publicidade a um refrigerante e, vulgarizada pela globalização mediática, podia até falar-lhe da sociedade de consumo, que nos consome. Podia. Podia, mas o não o farei, tudo isso ficará para um outro tempo.
Não me pareceu que quer a Benedita e mesmo a Margarida, 4 anos mais velha, estivessem com disposição para tais histórias, muito menos o João que tinha acabado de completar 2 anos mas que por ali se mantinha solidário com a prima sem, contudo, perceber muito bem o porquê de tal alarido e choro, quando na sala havia muita luz e cor a emanar de uma árvore que tinha ao seu redor um amontoado de caixas que ele adivinhava terem no seu interior brinquedos, os brinquedos que ele tinha pedido ao Pai Natal.
E foi o João, enquanto eu ia pronunciando algumas interjeições denotando pouco à vontade para iniciar a justificação prometida, que deu uma preciosa ajuda quando disse à Benedita, Foi o meu pai que trouxe as prendas para mim, não foi o Pai Natal. O Pai Natal tem muito que fazer pois há muitos meninos e ele não pode ir às casas todas. Ora aí está, pensei para comigo, o Pai Natal simboliza todos os pais do Mundo, é portanto meus queridos uma imagem criada para nos representar a todos, todos os pais em todos os lugares do Mundo e, não é por acaso que ele se parece mais com um avô do que com um pai. A figura do Pai Natal é assim como se fosse o pai de todos os pais. 
A Margarida veio em meu socorro e concluiu, Sabes Benedita o Pai Natal é assim como a “Luna”, a “Branca de Neve” e o “Capuchinho Vermelho”, figuras de estórias que os adultos inventaram para as crianças lerem e aprenderem a sonhar. Não existem, ou melhor, existem. Existem no nosso imaginário, é assim como quando tu brincas com as tuas amigas e imaginam uma estória em que cada uma é um personagem diferente, no Natal os adultos ficam como se fossem de novo crianças e contam uma estória de magia, em que um simpático velhinho vindo de trenó das terras geladas do Norte distribui prendas por todos os meninos do Mundo. Ontem quando fomos passear à baixa da cidade viste quantas figuras de Pai Natal? Muitas, pois foi. Como o Pai Natal é uma figura da estória do Natal, podemos reproduzi-la em muitas outras figuras.
A Maria Benedita tinha ouvido atentamente, já não chorava, os seus olhitos brilhavam como de costume e, o sorriso regressou ao seu rosto de menina. Em jeito de conclusão disse-lhe, O teu Pai Natal de hoje e de todos os dias é a tua mãe e o teu pai.
Já conformada a Benedita olhou-me e perguntou, Avô contavas essa estória do Pai Natal aos teus filhos? Contava querida, contava sim. Quando o tio João era pequenino vestia-me de Pai Natal para distribuir as prendas e ele sentava-se no meu colo sem perceber que era eu e, mesmo sabendo que um dia o tio João ficaria triste e desiludido, como aconteceu hoje contigo, nunca deixei de o fazer e, sabes que mais, voltaria a repetir tudo de novo só para ver os olhinhos do tio João a irradiar de alegria, assim como os teus e os da Margarida ficam quando estão muito contentes.
Nesta altura já o pequeno João, com todo o seu pragmatismo, se tinha ausentado para o espaço onde o Natal acontecia, na cozinha de onde vinham os aromas do assado e da doçaria e na sala decorada pela avó, onde predominavam figuras de Pai Natal de vários feitios, dimensões e até sabores, para além da tal árvore, também ela importada para a minha tradição familiar, onde pequenas lâmpadas de várias cores davam ao ambiente o necessário toque cénico a uma certa forma de celebrar a vida, seja pelo nascimento de uma criança, seja porque por estes dias se iniciou um novo ciclo do tempo e da renovação.
Quando, a Margarida e a Benedita saíram, levantei-me e procurei alguns livros onde sabia ia encontrar escritos alusivos ao Natal, facilmente encontrei. Anotei dois poemas para um dia ler aos meus netos ou, se já o não puder fazer, para que eles um dia os leiam. Natal, de Miguel Torga e, Natal, e não Dezembro, de David Mourão Ferreira. 
Depois. Bem, depois fui ter com o Pai Natal para o ajudar com as prendas da Margarida, da Benedita e do João, no caminho cruzei-me com os Reis Magos, com S. Nicolau e com a Deusa do Yule que me presenteou com um ramo de azevinho. 
Ponta Delgada, 23 de Dezembro de 2012

Aníbal C. Pires, In Expresso das Nove, 24 de Dezembro de 2012, Ponta Delgada 

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