quarta-feira, 17 de maio de 2023

“Machos Alfa” e estereótipos de género

imagem retirada da internet
Na edição de 22 de março do Diário Insular, a “Sala de Espera” teve por título: “Fêmeas Alfa e machos Beta”. Os leitores, nesse dia, terão ficado desiludidos com o conteúdo do texto, ou mesmo com algum sentimento de terem sido ludibriados pois, sobre o tema anunciado pouco se disse. Na míngua das palavras emergia, porém, o compromisso do regresso ao assunto. As últimas três edições da “Sala de Espera” foram dedicadas a outro tema que, pela sua vastidão e atualidade, remeteu a abordagem apalavrada para quase dois meses depois, mas como o prometido é devido cumpro hoje o que, à data, ficou acordado com os leitores.

A expressão fêmeas/machos Alfa tem vindo a aplicar-se ao Homo sapiens transpondo um conceito da zoologia para as sociedades humanas. O termo macho Alfa resulta de estudos sobre as hierarquias e organização no mundo animal, em particular os lobos. Se nos lobos (bando) existe um macho dominante, nas abelhas a estrutura da colmeia depende de uma fêmea, a Rainha. A liderança no mundo animal varia conforme as espécies e chega mesmo a verificar-se a existência, no mesmo grupo, de fêmeas e machos dominantes.

A zoologia abandonou a designação de macho Alfa substituindo-a por outras denominações mais adequadas à realidade observada, mas alguns humanos importaram para a categorização dos seus semelhantes esta expressão animalesca caída em desuso nos estudos zoológicos. Enfim! Não sei, nem vou perder tempo a procurar entender como se compatibilizam estas expressões com outros modismos linguísticos, como sejam os que pretendem incluir pela linguagem, dita neutra, sem nada fazerem pela inclusão das maiorias excluídas pela pobreza.

A finalidade da introdução na linguagem de palavras ou expressões não é, apenas, fruto da natural evolução da língua, tema ao qual já dediquei uma ou outra reflexão que por aqui partilhei. As palavras e o seu uso podem parecer irrelevantes, mas a significância que se lhe pretende atribuir e as alterações conceptuais que provocam devem merecer atenção e em alguns casos repúdio e combate político, como por exemplo: quando substituímos a palavra colaborador por trabalhador, precarização por flexibilidade, ou despedimento coletivo por reestruturação, estamos a mascarar uma realidade bem concreta e a tentar suavizar o seu verdadeiro significado e efeitos. Este tem sido o caminho semântico utilizado para introduzir no léxico comum uma linguagem que adultera o verdadeiro significado de uma palavra ou expressão e lhe associa um novo conceito, cujo objetivo, como já foi referido, não é inocente e mais não pretende do que ir “moldando”, com claro prejuízo para os sujeitos alvo, o pensamento e os costumes.

A expressão “machos Alfa”, ou se preferirem “fêmeas Alfa”, recupera para a nossa contemporaneidade uma teoria do século XIX, a que se chamou “Darwinismo social” e que consiste na aplicação da teoria da evolução aplicada às sociedades humanas, alguns apoiantes desta corrente de pensamento atribuem ao próprio Darwin os seus fundamentos, tendo com base a sua obra “A Origem do Homem”. Esta teoria procura justificar a existência de humanos capazes (ricos) e incapazes (pobres) e serviu para construir as bases da eugenia, do racismo, do imperialismo europeu, do fascismo e do nazismo. Depois da II Guerra Mundial caiu, naturalmente, em desuso o que não significa que tenha sido abandonada. Esteve latente durante algumas décadas e tem vindo a recrudescer como se comprova com a adesão de muitos cidadãos a grupos supremacistas e neonazis, mas também, ou talvez por isso, à sua normalização pela comunicação social dominante.

A expressão Alfa e Beta, ou ainda outras como, Gama e Ómega, associadas à caraterização de fêmeas e machos humanos, para além de animalizante e hierárquica tem uma conotação sexualizada que, salvo melhor e douta opinião, afronta o feminismo, ou mesmo as questões de identidade de género, por outro lado podemos associar a expressão à promoção da competitividade e do individualismo, em detrimento do espirito colaborativo que, esse sim, permite os avanços coletivos e repercute os benefícios pelos indivíduos.

A evolução humana não deixou, nem deixará de ter, uma forte componente animal, e os instintos continuam a determinar muitas das nossas escolhas, mormente as que se relacionam com a seleção dos parceiros para procriar. No entanto, a evolução humana introduziu novas variáveis que influenciam a seleção dos nossos parceiros sexuais, o desenvolvimento da inteligência, o conhecimento científico, a institucionalização de princípios de convivência social e os valores transformaram as sociedades humanas. Sociedades, em particular as ocidentalizadas, nas quais emergem sinais preocupantes de um retrocesso evolutivo sob o manto da pós-modernidade, mas que eu considero estar diretamente relacionada com aquilo a que se designa por pós-verdade, ou seja, com o abandono do que é factual em detrimento das crendices e das emoções com que a comunicação social dominante e corporativa alimenta as massas e promove a estupidificação.

A utilização das expressões ou alusões a machos ou fêmeas Alfa não me incomoda e este escrito não resulta de outra inquietação para além dos eventuais efeitos que, o conceito associado à expressão, pode gerar na promoção da misoginia, do patriarcado e da perpetuação das desigualdades sociais, por serem aceites como naturais. Admito que possa estar errado e que o meu olhar seja parcial fruto da minha formação política e humanista, mas a utilização da expressão “machos Alfa e fêmeas Beta” é simplista e está ancorada em estereótipos de género e não pode, nem deve, ser aceite como uma verdade absoluta pois, as relações humanas caraterizam-se por uma diversidade e complexidade que não é compaginável com visões redutoras como a que a hierarquização subjacente à utilização da expressão “macho Alfa” induz no nosso quotidiano.

A expressão e o conceito estão, porém, a ser alvo, não só, de alguma adesão, mas também alimentadas pela ideia do treino para lideranças fortes, empreendedoras e de aquisição de mais poder (empoderamento), transferindo para o indivíduo responsabilidades que devem, em primeira instância ser coletivas. São sinais de um novo tempo dirão, com toda a propriedade os leitores, aceito que sim. O tempo é novo, mas a base teórica que sustenta esta “doutrina” é de um tempo antigo, não acrescenta inovação ao nosso tempo e visa eternizar modelos sociais e económicos que promoveram e promovem a guerra, os atentados ambientais, as desigualdades, a pobreza e a exclusão.

A recuperação, para o nosso tempo, de conceitos como o “Darwinismo social” e das teses liberais embrulhadas numa linguagem dirigida a segmentos da população formatada pelo pensamento dominante e, como tal permeável a ideias e conceitos que promovem a atomização social e constitui-se como mais uma agenda política, pretensamente, despida de ideologias, mas que quando analisada se verifica estar contaminada pelo neoliberalismo.

Ponta Delgada, 16 de maio de 2023

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 17 de maio de 2023

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