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O cinema, a televisão e, ainda antes, a comunicação social escrita, foram (e são) suportes para a criação de narrativas que, ancoradas, em acontecimentos reais nem sempre correspondem à realidade factual.
Recentemente acabei de ler do livro “A Linguagem Secreta do Cinema”, de Jean-Claude Carrière, um reconhecido argumentista e cinéfilo francês. A leitura, da qual darei mais destaque num outro suporte, foi enriquecedora pois trata-se de uma personalidade que não só domina a “linguagem” como conheceu por dentro a indústria cinematográfica. Não sendo uma novidade esta experiência e as aprendizagens que daí decorreram permitiram-me consolidar uma ideia sobre a qual já tinha opinião formada e que hoje partilho com os leitores da Sala de Espera: O cinema muitas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Algumas produtoras especializaram-se nessa arte subtil da indução narrativa criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras.
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Como certamente concluíram não se trata de nenhuma novidade e muito menos de uma descoberta assombrosa. Os leitores que por aqui estão terão consciência disto, mesmo que como eu, não tenham experiência ou conhecimentos aprofundados sobre a sétima arte. As narrativas cinematográficas moldam estados de perceção que nos preparam para aceitar a ficção como se fosse realidade.
Em Portugal temos uma variedade de construções míticas que foram fazendo fé como realidades, mas que não passam disso mesmo: efabulações. A própria fundamentação da criação do reino de Portugal está ligada a uma dessas lendas, o “Milagre de Ourique”.
Hoje (ontem) o calendário diz-nos que é o vigésimo quinto dia do mês de novembro e alguns cidadãos procuram celebrar o cinquentenário desta data como um acontecimento digno de registo na história recente do nosso país, chegando mesmo a conferir mais importância a este dia do que ao dia fundacional da democracia portuguesa: o dia 25 de Abril de 1974.
Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário: i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.
Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram.
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Se o episódio de 25 de novembro de 1975 travou setores revolucionários que queriam aprofundar o processo socialista, também é verdade que não inverteu de imediato o rumo iniciado a 25 de Abril. Pelo contrário, a força popular acumulada ao longo de mais de um ano de mobilização é o que explica que as conquistas sociais não tenham sido desmanteladas pelas autoridades civis ou militares que emergiram posteriormente.
As primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de abril de 1976, foram o momento de “institucionalizar” a democracia representativa. A correlação de forças foi clara: o PS venceu, seguido muito de perto pelo PPD/PSD, com o PCP a afirmar-se como terceira força e a extrema-direita a não ter expressão eleitoral. A direita, organizada sobretudo no CDS, teve uma fraca representação institucional. Este quadro não corresponde à narrativa de uma alegada vitória da direita em novembro de 1975. Não existe qualquer evidência histórica que sustente essa leitura. Se alguém venceu politicamente foram as forças que defendiam o socialismo democrático, a economia mista, os direitos laborais e sociais conquistados desde 1974.
Pouco depois, em 27 de junho de 1976, tiveram lugar as primeiras eleições presidenciais. A vitória do general Ramalho Eanes, apoiado sobretudo pelo PS e pelo CDS, mas com uma imagem popular de uma personalidade equilibrada. Eanes não sendo um revolucionário, não era um saudosista dos tempos do Estado Novo.
A partir daqui, porém, começa um processo que importa compreender com detalhe. A Constituição de 1976 consagra princípios que resultam diretamente do ímpeto transformador do povo português em 1974 e 1975: o caminho para o socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações, a reforma agrária, os direitos laborais avançados, o papel das comissões de trabalhadores, o sistema de saúde universal, a educação como direito e dever fundamental. Mas a partir do início dos anos 1980, com a revisão constitucional de 1982 e sobretudo com a de 1989, inicia-se o longo processo de erosão das conquistas de Abril.
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E é por isso que revisitar esta data exige rigor e memória crítica. Nenhuma narrativa épica, nenhum revisionismo de ocasião e nenhuma simplificação jornalística consegue apagar o essencial: Portugal tornou-se uma democracia graças ao 25 de Abril; consolidou-a graças à participação popular e às conquistas sociais de 1974–1976, e, só anos mais tarde, muito depois dos acontecimentos de novembro de 1975, se iniciou o processo político que progressivamente amputou da CRP e da vida dos portugueses algumas das conquistas de Abril. A História é muito mais complexa do que os enredos fabricados. E quando a narrativa se sobrepõe ao real, o melhor antídoto continua a ser o mais simples: fatos, memória e espírito crítico.
Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025




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