sábado, 9 de janeiro de 2021

Segredo da Visita Régia aos Açores, de Henrique Levy


Texto que serviu de base à apresentação do livro:

SEGREDO DA VISITA RÉGIA AOS AÇORES, Henrique Levy(*), Plátano Editora, 2020“

20h Açores, 21 h Lisboa, de 7 de janeiro de 2021 

live streaming no Facebook e no Youtube da Plátano Editora

Quero, antes de mais, agradecer ao Henrique Levy o convite para fazer a apresentação pública do seu mais recente romance, Segredo da Visita Régia aos Açores. Agradeço, também, à Plátano Editora que nos proporciona a plataforma virtual para esta informal troca de impressões. Não será uma apresentação nos moldes habituais, os tempos ditam que nos adaptemos e, como tal, também o formato desta apresentação será adequada ao suporte de comunicação que estamos a utilizar.

Agradeço e desejo que estes momentos sejam do agrado de quem acompanha este live streaming. Espero que não deem o vosso tempo por mal empregue e, sobretudo, que esta conversa possa vir a despertar interesse na leitura deste novo livro de Henrique Levy e, quiçá por toda a sua obra literária.

Ainda antes de deixar algumas notas sobre o Segredo da Visita Régia aos Açores quero deixar uma declaração de princípio: Não sou um especialista em literatura, sou tão-somente um leitor, nada mais do que um leitor que, de vez em quando, torna pública a sua opinião sobre alguns dos livros que lê. Dito isto, não esperem uma análise de critica literária, o que por mim ficar dito é apenas a opinião de um cidadão que gosta de ler e que acompanha a atividade editorial nacional, em particular o que se vai fazendo, e não é pouco, nos Açores. Entenda-se a atividade editorial dos autores açorianos, como é o caso do Henrique Levy.

O Segredo da Visita Régia aos Açores é uma narrativa minuciosa e aliciante que retrata um tempo histórico atribulado, o limiar do século XX português, visto pelo olhar de uma jovem mulher que, por via do seu casamento com um par do reino integra a comitiva régia na visita à Madeira e aos Açores.

O novo romance de Henrique Levy tem, uma vez mais, uma mulher como narradora, mas também como figura central desta estória.

O Henrique pelas “palavras” desta mulher, de quem nem sequer viremos a saber o nome, brinda-nos com uma prosa elegante, mas plena de intenção. Pode constatar-se ao longo do livro, mas deixo esta citação (pp 30 e 31) para ilustrar o que acabo de dizer: “(…) Nunca, como naquele dia, havia reparado na quantidade de crianças subnutridas que proliferavam pela cidade, nos velhos miseráveis sentados de mão estendida nas esquinas das ruas, nas jovens varinas descalças com um rancho de filhos ranhosos à cintura, nos rostos esfaimados dos explorados operários, nos tisnados vendedores de carvão e limpa-chaminés, nas carroças de ciganos, no chiar dos choras puxados por mulas esquálidas. (…)”, ou ainda, “(…) Nesta cidade, que se diz capital de um império, nem todos têm água canalizada, obrigando-se muitos a mergulhar no tejo para o banho semanal. Está imunda. As doenças proliferam, e são poucos os cuidados de saúde com os mais pobres, os excluídos pela sociedade na qual me incluo em lugar cimeiro. Este pensamento envergonhou-me como mulher e portuguesa. Durante algum tempo tentei afastá-lo, arrumá-lo escondido num lugar que não afetasse o meu quotidiano burguês. (…)”, ou seja, o autor, não se circunscreve aos salões da aristocracia e vem para a rua para nos dar conta de uma outra realidade. Realidade que envergonhou a narradora. Realidade que não sendo central no desenrolar da estória e, como tal, dispensável, o autor quis dar-lhe visibilidade, ou seja, é o autor a dar um propósito à sua prosa.

Neste romance Henrique Levy continua a brindar-nos com uma prosa meticulosa, aliciante e envolvente onde o papel da mulher é valorizado, ainda que a narrativa se refira a um tempo histórico em que o papel da mulher era secundarizado e as mulheres estavam desprovidas de direitos cívicos e políticos. O pai da narradora, um proprietário agrícola do Alentejo, traduz bem o pensamento dominante à época, quando se dirige às filhas, a propósito da sua formação e instrução, nestes termos: “(…) Uma casa de mulheres instruídas é pior que uma república! (…)”. 

Um dos momentos mais desafiantes desta meticulosa narrativa será a profunda e filosófica reflexão da mulher que regressa sozinha a Lisboa depois do drama que se abateu sobre ela em Ponta Delgada. E da qual vos deixo estas passagens: “(…) Sou mulher, esta condição toca as asserções de várias fantasias e certezas, aos homens incompreensíveis. Nós distinguimo-nos pela constância dos sentimentos. Pelo surgimento de realidades míticas próprias. Pela turbulência a regular desejos calados, aniquilados pela sociedade masculina que nos disciplina atitudes, pensamentos e forma de amar. (…), ou ainda: “(…) Desde jovem apercebi-me do poder que a sociedade conferiu ao homem e da vida subjugada das mulheres. Não fomos nós, mulheres, quem forjou esse poder Ele tem vindo a ser-nos imposto, sem deixar expressar outras vontades. Os homens parecem estar tão inseguros do seu poder que temem a vida em plenitude de uma mulher sem homem. Para mim, por nada ter que me oponha ao masculino, essa é a maior de todas as virtudes (…)”. 

São assim as mulheres de Henrique Levy: fortes, determinadas, esclarecidas e independentes, sem que essas qualidades femininas, tal como ficou dito pela narradora desta estória, se constituam com base numa opção de ordem sexual.

Este romance, como todos os romances do autor, não deixa de aflorar a sexualidade e o erotismo. Veja-se logo na pp 8, “(…) Esse jovem mancebo, moço de estrebaria, era mais atraente do que um precipício numa tarde de vertigens. (…)”. Sem vulgarizar nem chocar as almas mais suscetíveis, Henrique Levy descreve algumas cenas da intimidade da narradora com a mestria que nos tem vindo a habituar, veja-se a pp 45: “(…) Vem, senta-te na cama, afasta as pernas. Ordenei, enquanto lhe despia as calças. Ignorava se conseguiria realizar o que alvitrara. Acrescentando com voz meiga. Verás que observar as estrelas no firmamento não será comparável à viagem que te proponho inaugurar. Prometi. (…)”

A prosa literária de Henrique Levy é surpreendentemente provocadora e a sua leitura um prazer indizível.

Quanto ao segredo que dá mote ao romance, por respeito aos potenciais leitores, não será por mim desvendado.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 7 de janeiro de 2021


(*) Henrique Levy

Poeta e romancista, é portador de uma identidade com várias pertenças. Cidadão português, nascido em Lisboa, com nacionalidade cabo-verdiana. Viveu em diversos países da Europa, Ásia, África e América. Reside, por opção, na ilha de S. Miguel. É autor de três romances, Cisne de África (2009), Praia Lisboa (2010), Maria Bettencourt – Diários de Uma Mulher Singular (2019), e de seis livros de poesia, Mãos Navegadas (1999), Intensidades (2001), O silêncio das almas (2015), Noivos do Mar (2017), O Rapaz de Lilás (2018), Sensinatos (2019). Editou em coautoria com Ângela Almeida, em 2020, o livro de poemas Estado de Emergência. Editou e anotou A Sibylla – Versos Philosophicos, 2020, de Mariana Belmira de Andrade, cuja primeira edição data de 1884.

Tem vários poemas dispersos por diferentes Antologias, sendo, também coordenador da editora açoriana Nona Poesia.


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