domingo, 30 de novembro de 2025

quando a mentira viral ataca a Escola Pública

Quando um boato se transforma num discurso político, o problema já não é apenas a mentira, é o efeito que ela produz num país cada vez mais exposto às simplificações tóxicas do TikTok e outras plataformas ditas sociais.

Rita Matias divulgou um vídeo nas redes sociais em que afirma ter recebido, de um encarregado de educação, a informação de que a Escola Secundária Gil Vicente teria proibido que a “Associação de Estudantes organizasse uma festa de Natal” e que proibiria “qualquer referência à tradição cristã”.

No vídeo, caracterizou a alegada decisão como “um insulto para a nossa sociedade ocidental, para a forma como nos organizamos, para as nossas tradições, para a nossa história” e enquadrou o episódio num cenário mais amplo de “autofagia” cultural.

A deputada associou esse suposto caso a movimentos na Europa, referindo protestos na Alemanha e “atentados que tiram a vida a europeus”, usando essas referências difusas para sustentar a ideia de que “quem chega de fora não quer celebrar o Natal”.

Porém, a direção da Escola Secundária Gil Vicente, através de um comunicado assinado pela Diretora e pela Associação de Estudantes, desmentiu totalmente a história e garantiu que a informação difundida por Rita Matias “é falsa”. Não existiu qualquer proibição da festa de Natal, nem qualquer restrição a celebrações próprias da época.

A escola afirmou ainda que “mantém o compromisso com a seriedade e o respeito pela comunidade” e desejou “celebrações felizes, com Amor e Verdade”.

A imprensa e os meios de verificação classificaram a alegação como falsa: não existe qualquer evidência de que a escola tenha proibido uma festa ou referências ao Natal, nem que a Associação de Estudantes tenha alguma vez recebido uma ordem nesse sentido. O caso assenta numa denúncia não documentada de um encarregado de educação cujo nome, circunstâncias e alegados factos nunca foram tornados públicos.

A polémica insere-se, contudo, num contexto mais amplo de discursos políticos que procuram associar a diversidade cultural e religiosa a uma ameaça às tradições nacionais. Mais uma vez, a deputada utiliza um rumor, um "ouvi dizer", para pôr em causa a convivência democrática e a diversidade cultural do país, características históricas da sociedade portuguesa, não invenções recentes.

A condição de deputada confere-lhe um papel público com consequências, e não é irrelevante que, pela repetição de insinuações, polarize e alimente a desconfiança, com o único propósito de reforçar a influência política da sua organização partidária, instrumentalizando o medo identitário.

Há, neste caso e noutros, um problema de responsabilidade pública: quando uma figura eleita mobiliza a mentira como instrumento político, tal atuação deve ser escrutinada e pode, como já aconteceu, ser passível de queixa-crime.

Outra questão relevante é a credibilidade da própria autora das declarações. As alegações não passaram no crivo mínimo da verificação factual, e o que está em causa é a utilização frequente de narrativas com forte carga emocional, independentemente da verdade, que penetram com facilidade numa população que, durante anos, foi alvo de um processo de empobrecimento cívico, cultural e informacional.

Os mitos construídos sobre a mentira, sobretudo quando apelam a afetos, receios e símbolos identitários, exigem um escrutínio firme. E para que esse escrutínio seja possível, é necessário conhecimento. Não se deixem desarmar.


Escola Secundária Gil Vicente: um exemplo de boas práticas

Convém, por isso, recordar quem é realmente a Escola Secundária Gil Vicente — que tem sido notícia nos últimos anos pelas melhores razões.

Situada numa das zonas mais diversas de Lisboa, a escola acolhe alunos de mais de 60 nacionalidades, convivendo diariamente numa pluralidade linguística e cultural que, longe de ser um obstáculo, se constitui como uma riqueza. A direção e o corpo docente têm construído práticas consistentes de inclusão, como as turmas de Português Língua de Acolhimento, fundamentais para a integração de estudantes recém-chegados que ainda não dominam a língua.

A escola tornou-se também referência por projetos que articulam educação, comunidade e sustentabilidade. Um dos mais significativos foi a plantação de centenas de árvores e a criação de uma horta pedagógica, em parceria com associações locais, envolvendo jovens de várias origens e capacidades. Estes projetos transformam o espaço escolar: de recinto fechado para transmissões de conteúdos, num território comum, vivido, cuidado, cultivado.

Importa ainda destacar a abertura do espaço escolar à comunidade. A escola tem participado em iniciativas municipais que permitem a utilização dos recreios e espaços escolares como locais de encontro para crianças e famílias fora do horário letivo, reforçando a sua vocação de espaço público ao serviço da sociedade onde está inserida. 

Tudo isto demonstra que a Escola Gil Vicente é, na prática, um exemplo de convivência multicultural bem-sucedida, de inovação pedagógica, de responsabilidade cívica e de práticas interculturais.

Por isso mesmo, quando se mobiliza uma mentira para atacar esta escola, ataca-se também o valor mais profundo da educação pública: a capacidade de construir comunidade, de acolher a diversidade e de formar cidadãos livres.

Em Portugal a Gil Vicente é apenas um de muitos exemplos da Escola Pública de Qualidade e para todos.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de novembro de 2025


quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Abril e não novembro

imagem retirada da internet
As tentativas de rescrição da história não são um fenómeno da atualidade, nem derivam diretamente das infindas possibilidades da Inteligência Artificial ou, da replicação de opinião não sustentada, nas redes sociais.

O cinema, a televisão e, ainda antes, a comunicação social escrita, foram (e são) suportes para a criação de narrativas que, ancoradas, em acontecimentos reais nem sempre correspondem à realidade factual.

Recentemente acabei de ler do livro “A Linguagem Secreta do Cinema”, de Jean-Claude Carrière, um reconhecido argumentista e cinéfilo francês. A leitura, da qual darei mais destaque num outro suporte, foi enriquecedora pois trata-se de uma personalidade que não só domina a “linguagem” como conheceu por dentro a indústria cinematográfica. Não sendo uma novidade esta experiência e as aprendizagens que daí decorreram permitiram-me consolidar uma ideia sobre a qual já tinha opinião formada e que hoje partilho com os leitores da Sala de Espera: O cinema muitas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Algumas produtoras especializaram-se nessa arte subtil da indução narrativa criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. 

imagem retirada da internet

A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica é, bastas vezes, mais do que garantir sucesso de bilheteira, vender uma visão do mundo muitas vezes distante da verdade histórica. Algumas das narrativas hollywoodescas estão aí para o provar, não só, mas também.   

Como certamente concluíram não se trata de nenhuma novidade e muito menos de uma descoberta assombrosa. Os leitores que por aqui estão terão consciência disto, mesmo que como eu, não tenham experiência ou conhecimentos aprofundados sobre a sétima arte. As narrativas cinematográficas moldam estados de perceção que nos preparam para aceitar a ficção como se fosse realidade. 


Em Portugal temos uma variedade de construções míticas que foram fazendo fé como realidades, mas que não passam disso mesmo: efabulações. A própria fundamentação da criação do reino de Portugal está ligada a uma dessas lendas, o “Milagre de Ourique”.

Hoje (ontem) o calendário diz-nos que é o vigésimo quinto dia do mês de novembro e alguns cidadãos procuram celebrar o cinquentenário desta data como um acontecimento digno de registo na história recente do nosso país, chegando mesmo a conferir mais importância a este dia do que ao dia fundacional da democracia portuguesa: o dia 25 de Abril de 1974.

Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário:  i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.

Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram.

imagem retirada da internet
O 25 de novembro de 1975 tem, contudo, um cariz contrarrevolucionário, no sentido preciso com que o termo é usado na historiografia, isto é, de travar o aprofundamento da revolução. Os protagonistas militares pertenciam a um grupo, dito, de moderados cujo propósito era a liquidação do papel do MFA, e conseguiram-no com o afastamento e prisão de muitos dos oficiais do MFA. O movimento revolucionário sofreu um duro golpe, mas estas alterações não foram suficientes para travar o ímpeto transformador que se tinha impregnado no povo e nos trabalhadores portugueses o que garantiu que as conquistas de Abril, como já referi, fossem consagradas na CRP.

Se o episódio de 25 de novembro de 1975 travou setores revolucionários que queriam aprofundar o processo socialista, também é verdade que não inverteu de imediato o rumo iniciado a 25 de Abril. Pelo contrário, a força popular acumulada ao longo de mais de um ano de mobilização é o que explica que as conquistas sociais não tenham sido desmanteladas pelas autoridades civis ou militares que emergiram posteriormente.

As primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de abril de 1976, foram o momento de “institucionalizar” a democracia representativa. A correlação de forças foi clara: o PS venceu, seguido muito de perto pelo PPD/PSD, com o PCP a afirmar-se como terceira força e a extrema-direita a não ter expressão eleitoral. A direita, organizada sobretudo no CDS, teve uma fraca representação institucional. Este quadro não corresponde à narrativa de uma alegada vitória da direita em novembro de 1975. Não existe qualquer evidência histórica que sustente essa leitura. Se alguém venceu politicamente foram as forças que defendiam o socialismo democrático, a economia mista, os direitos laborais e sociais conquistados desde 1974.

Pouco depois, em 27 de junho de 1976, tiveram lugar as primeiras eleições presidenciais. A vitória do general Ramalho Eanes, apoiado sobretudo pelo PS e pelo CDS, mas com uma imagem popular de uma personalidade equilibrada. Eanes não sendo um revolucionário, não era um saudosista dos tempos do Estado Novo.

A partir daqui, porém, começa um processo que importa compreender com detalhe. A Constituição de 1976 consagra princípios que resultam diretamente do ímpeto transformador do povo português em 1974 e 1975: o caminho para o socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações, a reforma agrária, os direitos laborais avançados, o papel das comissões de trabalhadores, o sistema de saúde universal, a educação como direito e dever fundamental. Mas a partir do início dos anos 1980, com a revisão constitucional de 1982 e sobretudo com a de 1989, inicia-se o longo processo de erosão das conquistas de Abril.

imagem retirada da internet
Este desmantelamento não foi súbito: foi gradual, negociado externamente e legitimado institucionalmente pelos órgãos de soberania nacional. Começou pela retirada do poder político do MFA, que ainda tinha presença constitucional, continuou com a eliminação do Conselho da Revolução, prosseguiu com a liberalização económica e culminou nas privatizações em massa que inverteram a lógica da economia mista. As revisões constitucionais transformaram a CRP de um texto orgânico, coerente e ousado, numa peça adaptada aos ventos ideológicos dominantes no espaço europeu e atlântico. É a partir daí que Portugal entra, definitivamente, na rota neoliberal que marcou as décadas seguintes. Rota essa que hoje nos coloca, de novo, perante desigualdades, precariedade e fragilização dos serviços públicos.

E é por isso que revisitar esta data exige rigor e memória crítica. Nenhuma narrativa épica, nenhum revisionismo de ocasião e nenhuma simplificação jornalística consegue apagar o essencial: Portugal tornou-se uma democracia graças ao 25 de Abril; consolidou-a graças à participação popular e às conquistas sociais de 1974–1976, e, só anos mais tarde, muito depois dos acontecimentos de novembro de 1975, se iniciou o processo político que progressivamente amputou da CRP e da vida dos portugueses algumas das conquistas de Abril. A História é muito mais complexa do que os enredos fabricados. E quando a narrativa se sobrepõe ao real, o melhor antídoto continua a ser o mais simples: fatos, memória e espírito crítico.

Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 26 de novembro de 1025

terça-feira, 25 de novembro de 2025

o povo ficou em casa

do arquivo pessoal - Aníbal C. Pires



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.










(... ) Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário:  i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.

Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram. (...)


a gramática do cinema

Ler A Linguagem Secreta do Cinema, de Jean-Claude Carrière, foi como se tivesse entrado numa oficina silenciosa onde as imagens induzem estados de alma, mas também nos devem obrigar a pensar, descodificando o que vemos, para isso é necessário conhecer a gramática da sétima arte. Carrière desmonta o mecanismo do olhar cinematográfico com a elegância de quem conhece cada engrenagem e cada sombra. Mostra-nos que o cinema não é apenas uma arte do visível. O cinema é, sobretudo, uma forma de organizar o mundo, de sugerir sentidos, de impor ritmos ao tempo e à memória. Há, no modo como um plano se aproxima ou se afasta, uma gramática de sedução e de poder, uma forma de orientar a atenção e de moldar a interpretação.

Mas Carrière lembra-nos também, mesmo quando o diz nas entrelinhas, que todo o cinema conta histórias e que toda a história contada implica escolhas. E é aqui que a reflexão ganha outra densidade. Porque o cinema, especialmente o que domina o mercado global, nem sempre se limita a narrar. O cinema não poucas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Hollywood, não toda, mas uma parte significativa, especializou-se nessa arte subtil da indução narrativa, criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica, tudo isto rende mais do que a bilheteira, rende uma visão distorcida do mundo.

Por isso este livro é tão pertinente. Ele recorda-nos que o cinema é uma linguagem com força suficiente para se infiltrar na imaginação coletiva e, a partir daí, influenciar a perceção do passado e a leitura do presente. A cada plano montado, uma hipótese de verdade é sugerida, a cada elipse, uma zona de sombra é criada. Carrière não nos oferece receitas, mas um alerta: compreender o cinema é aprender a desconfiar da facilidade das imagens, da doçura com que nos oferecem certezas. É um convite a ver com mais atenção, e, talvez, a resistir melhor à sedução das narrativas que não querem apenas entreter, mas moldar o que pensamos ser real e, assim, criar realidades paralelas.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025


domingo, 16 de novembro de 2025

Ornamento de cabeça, ou poesia.

foto de Madalena Pires
Há livros que nascem como objetos culturais; outros, como testemunhos vivos. O Lenço de Cabeça, de José Marcelino Kongo, pertence a essa segunda linhagem, a dos livros que guardam memória, identidade e dignidade numa página de papel e num gesto de olhar. Editado pela Letras Lavadas Edições, este trabalho fotográfico e poético é uma homenagem às mulheres angolanas e ao simbolismo que carregam, visível no lenço que tantas vezes reveste a cabeça como coroa, escudo, linguagem ou território afetivo. E não…  não é um simples ornamento; é um mapa íntimo da história e da resistência no feminino.

José Marcelino Kongo vive em Portugal há meio século, exatamente o mesmo tempo que dura a independência de Angola, celebrada a 11 de novembro. Este paralelismo não é mero acaso temporal, há uma afinidade biográfica, cultural e emocional que o atravessa.

Radicado nos Açores, o autor construiu o seu percurso académico como investigador na área da Biotecnologia, doutorado pela Universidade Católica Portuguesa. Mas o rigor científico nunca anulou o olhar sensível, poético e atento às raízes. O Lenço de Cabeça é prova disso: apresenta-se como documento visual e poético que ecoa como uma declaração de pertença.

foto de Madalena Pires

Conheço o Marcelino desde o início deste século e guardo, com particular estima, o momento em que li, pela primeira vez um poema em público, durante a apresentação do seu livro Notícias da Lua. Talvez por isso, cada novo trabalho seu me soe sempre a reencontro. Reencontro com a palavra, com a memória e com o gesto artístico que nasce do coração e regressa ao povo.

Celebrar cinquenta anos de independência é também resgatar o rosto feminino dessa liberdade: mães, filhas, avós, estudantes, vendedoras, camponesas, artistas, combatentes, tantas vezes invisibilizadas pela história, mas imprescindíveis à humanidade.

Este livro não é apenas sobre um acessório feminino: é sobre as mulheres angolanas, os rostos que retrata, os corpos que o sustentam e a vida que, apesar de tantas cicatrizes, continua a erguer-se, com dignidade, beleza e futuro.



Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 16 de novembro de 2025


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

primavera no Outono

foto de Aníbal C. Pires
Na Praia da Vitória, quando a luz é mais suave e a brisa traz o perfume salgado do Atlântico, é tempo de livros, de vozes e de encontros. É tempo de um outono que floresce, é tempo de primavera no outono, é tempo do “Outono Vivo”.

Ao longo das suas vinte edições, este festival da cultura e do livro tem sido mais, muito mais do que uma feira do livro, como por vezes é referenciado, mas é-o também. O “Outono Vivo” é uma celebração da cultura que resiste, uma festa das palavras que unem e alimentam, uma pausa luminosa no ritmo fragmentado do quotidiano. Quem entra no edifício que alberga a Academia da Juventude e das Artes da ilha Terceira sente o murmúrio de um país possível e desejável: leitores curiosos, crianças com o olhar maravilhado, autores disponíveis para conversar, professores, leitores ávidos de novidades, livreiros, editores e voluntários que, juntos, dão corpo a um milagre de continuidade e de renovação a cada ano que passa.

Num tempo em que tantas iniciativas culturais minguam ou desaparecem, ver o “Outono Vivo” chegar à sua vigésima edição é motivo de celebração e de reconhecimento. É celebrar uma política cultural coerente e reconhecer a importância deste evento no contexto da ilha Terceira, mas também dos Açores e do país. E é, também, celebrar, reconhecer e valorizar uma comunidade que acredita que a cultura e a fruição cultural são indissociáveis de qualquer projeto de desenvolvimento digno desse nome.

Se o “Outono Vivo”, só por si não resolve os problemas demográficos, sociais e económicos da cidade e do concelho da Praia da Vitória, e esta será (é) uma verdade insofismável, mas a realização deste evento cultural contribui, por certo, para que se encontrem os caminhos e se construam soluções para que a Praia da Vitória possa revitalizar o seu tecido social e económico.

Estive, uma vez mais, no “Outono Vivo” e ouvi expressões como esta: “vou-me embora com vontade de ficar”; e eu direi que esta confissão: não sendo tudo, é muito. Esta partilha carrega sentimentos de pertença, de saudade e de emoção, o que diz do grande e profundo significado desta realização cultural e da sensação que perpassa em muitos dos visitantes que aqui chegam de outras ilhas, mas também do continente português. E direi, ainda que: a cultura é, sempre foi, uma forma de resistência contra as inevitabilidades anunciadas, mas também de partilha e de construção de pontes para outros futuros.

A feira do livro da Praia da Vitória é, provavelmente, a terceira maior do país, depois de Lisboa e do Porto. Refiro isto, pois nos Açores, tem um imenso peso simbólico. Expressa que, mesmo longe dos grandes centros, é possível erguer um espaço de encontro e de partilha que coloca a cultura no centro da vida pública local, mas também na agenda cultural do país.

foto de Aníbal C. Pires
O “Outono Vivo” é, por isso, um gesto político no melhor sentido da palavra. Num mundo cada vez mais dominado pela lógica do consumo rápido e de entretenimento sem outro propósito que não seja distrair. Reunir centenas, ou mesmo milhares, de pessoas em torno dos livros é afirmar que a cultura é um bem comum, não um luxo. É afirmar que ler continua a ser um ato de liberdade e de resistência, talvez seja mesmo o mais silencioso, o mais profundo e consistente. Como dizia José Marti (século XIX): “ser culto é a única forma de ser livre”. E eu direi que: o conhecimento e a educação são essenciais para o exercício da liberdade individual e coletiva. A educação e o conhecimento libertam o pensamento de preconceitos e dependências, transformando-nos em cidadãos capacitados para tomar decisões autónomas e com uma compreensão profunda da realidade que nos rodeia 


A Câmara Municipal da Praia da Vitória, os trabalhadores da autarquia, a Cooperativa Praia Cultural, as organizações e as personalidades que se envolvem na realização deste evento merecem, por isso, um justo reconhecimento público, por manterem, ao longo de duas décadas, uma aposta séria e persistente na cultura. Porque entendem que o investimento na cultura, na memória e na criação de espaços onde se fundem diferentes iniciativas culturais que atraem e envolvem os cidadãos com diversos gostos e interesses é o que mais dignifica uma comunidade.

Mas, também, porque o fazem com abertura, convidando autores de diferentes geografias literárias, promovendo o diálogo entre gerações e dando espaço às vozes locais, às escolas, às associações e aos leitores anónimos que fazem deste festival uma casa partilhada. 

Quem participa no Outono Vivo sabe que aqui o livro volta a ter corpo e respiração. As palavras deixam de ser produtos e tornam-se pontes. A cultura deixa de ser adorno e volta a ser substância e resistência.

E, entre conversas, leituras e lançamentos, o que se revela é uma outra geografia: a de uma cidade que se reconhece como parte de um arquipélago cultural, pequeno em tamanho, mas imenso na conceção, produção, promoção e fruição de bens culturais.

Talvez o mais belo no “Outono Vivo” seja a sua dimensão silenciosa: a de semear. Semear o gosto pela leitura nas crianças que ali descobrem o seu primeiro livro. Semear o respeito pela palavra nas conversas que aproximam autores e leitores. Semear o sentido de comunidade num tempo em que tudo parece fragmentar-se.

O futuro da cultura não depende apenas das megas produções, nem de instituições centralizadas que tudo querem dominar, mas de gestos como este: contínuos, enraizados, pacientes. O futuro da cultura depende da capacidade de inovar e manter viva a chama de cada edição, mesmo quando os tempos não são favoráveis.

foto de Aníbal C. Pires
O “Outono Vivo” é como uma sementeira do tempo outonal. E a cada ano nasce e renova-se, prova que é possível criar e manter um lugar para a partilha e para a cultura num território periférico, e lembra-nos que a periferia é também um ponto de vista, talvez um lugar de onde melhor se vê o mundo, ainda que: 

(…) o céu e o mar/num concerto de silêncios/confundem-se no horizonte/não há linha/só uma promessa de infinito (…); 

Ou talvez por isso, pela promessa de infinito, que melhor se vislumbra e entende o mundo policêntrico a partir das periferias.

Num tempo em que o ruído mediático ameaça a reflexão e o imediato sufoca o essencial, o “Outono Vivo” devolve-nos a palavra e uma réstia de esperança num mundo diferente e melhor.

foto de Júlia Dinis

E, com ela, essa forma discreta de esperança que consiste em saber que um livro, apenas um, pode constituir-se como o instrumento e suporte para uma vida plena e de libertação.

Talvez seja isso que o “Outono Vivo” nos ensina, ano após ano: que a primavera pode acontecer em qualquer estação, desde que haja quem plante. Que o renascimento não vem apenas da natureza, mas da vontade das comunidades que persistem em criar, pensar, agir e partilhar.

Na Praia da Vitória, a cultura tem raízes fundas e floresce no tempo certo, o tempo do encontro e da partilha. O que aqui se constrói é mais do que um evento cultural: é uma pedagogia da esperança, um exercício de cidadania e de pertença. Porque a cultura, quando vivida coletivamente, é a forma mais luminosa da liberdade. Não menos importante é o acolhimento afetuoso com que a organização brinda os seus convidados, para alguns pode ser de somenos importância, para mim que sou um homem dos afetos é, também, uma das virtualidades deste evento cultural. 

Tudo renasce na primavera, mesmo que esta aconteça no outono. E, talvez por isso, quando as portas do “Outono Vivo” se fecham, o que fica é esse rumor de primavera, discreto, persistente, que nos recorda que nenhum outono é definitivo enquanto houver livros, leitores e a vontade indómita de fazer acontecer. 

Ponta Delgada, 11 de novembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 12 de novembro de 2025

celebrar a cultura


Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Ao longo das suas vinte edições, este festival da cultura e do livro tem sido mais, muito mais do que uma feira do livro, como por vezes é referenciado, mas é-o também. O “Outono Vivo” é uma celebração da cultura que resiste, uma festa das palavras que unem e alimentam, uma pausa luminosa no ritmo fragmentado do quotidiano. Quem entra no edifício que alberga a Academia da Juventude e das Artes da ilha Terceira sente o murmúrio de um país possível e desejável: leitores curiosos, crianças com o olhar maravilhado, autores disponíveis para conversar, professores, leitores ávidos de novidades, livreiros, editores e voluntários que, juntos, dão corpo a um milagre de continuidade e de renovação a cada ano que passa.

Num tempo em que tantas iniciativas culturais minguam ou desaparecem, ver o “Outono Vivo” chegar à sua vigésima edição é motivo de celebração e de reconhecimento. É celebrar uma política cultural coerente e reconhecer a importância deste evento no contexto da ilha Terceira, mas também dos Açores e do país. E é, também, celebrar, reconhecer e valorizar uma comunidade que acredita que a cultura e a fruição cultural são indissociáveis de qualquer projeto de desenvolvimento digno desse nome.

Se o “Outono Vivo”, só por si não resolve os problemas demográficos, sociais e económicos da cidade e do concelho da Praia da Vitória, e esta será (é) uma verdade insofismável, mas a realização deste evento cultural contribui, por certo, para que se encontrem os caminhos e se construam soluções para que a Praia da Vitória possa revitalizar o seu tecido social e económico. (...)


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

entrevista ao Diário Insular - 4 de novembro de 2025


Aqui fica publicado o texto da entrevista que me foi feita, pela jornalista Helena Fagundes, para o Diário Insular.

Esta conversa com a jornalista Helena Fagundes aconteceu na sequência da apresentação, na XX edição do Outono Vivo, do meu livro "Entre Pausas - crónicas do Diário Insular (2022-2024)



1. Como foram nascendo, Entre Pausas, estas crónicas?

Estas e outras crónicas nascem ao ritmo da vida e do tempo, das inquietações, mas também pausas que o quotidiano nos impõe. 

Este livro reúne as crónicas publicadas no Diário Insular entre janeiro de 2022 e dezembro de 2024, a ordem é cronológica e inclui todos os textos publicados no intervalo de tempo referido, o que significa que não houve uma seleção, apenas uma revisão.

Os textos ora publicados foram surgindo, à semelhança de outros, de um olhar sobre o que nos cerca: o país, a região, o mundo, mas também o que nos habita, as dúvidas, as contradições, a memória. “Entre Pausas” é, por isso, um título que se explica por si, é no intervalo entre um acontecimento e outro, entre a notícia, o esquecimento, o nevoeiro informacional e as narrativas oficiais cujo propósito é a manipulação e o domínio, que procuro compreender o que realmente perdura e se aproxima mais da realidade. Estas crónicas foram escritas para o Diário Insular, o que lhes confere uma dimensão de diálogo com quem, nos Açores, lê e vive os temas que nelas se abordam.

Este livro nasce do retorno às páginas da comunicação social escrita, após um interregno de dezembro de 2019 a janeiro de 2022, e que se vai manter por mais algum tempo, não sei quanto. Será pelo tempo que o tempo me conceder de discernimento e vontade de continuar a partilhar opinião e promover a reflexão.

As crónicas reunidas no livro “Entre Pausas”, são um olhar, o meu olhar, sobre alguns dos acontecimentos que marcaram esse período, deixando sempre espaço para os leitores poderem aprofundar a reflexão sobre os assuntos abordados, mas não me coibindo de expressar a minha opinião. A proposta de leitura deste livro é, assim, como um convite para os leitores percorram estes anos de análise e pensamento crítico, num registo que considero atento, intemporal e tematicamente diverso.



2. Como assistiu ao evoluir da região, e do país, nestes anos?

Com muita preocupação, mas sem perder a esperança de que este ciclo de retrocessos tenha o seu fim em data próxima.

As alterações que se verificaram nos últimos anos intensificaram a concretização de agendas políticas, sociais e económicas que produzem a exclusão social e a pobreza, aliás bem visível ao alcance do nosso olhar. Diria que a revolução científica e técnica que se destinaria a melhorar as condições de trabalho e o bem-estar das populações, afastou-se do que seria esperado e serve, apenas, para concentrar a riqueza e aumentar as desigualdades sociais, culturais e económicas.

Os retrocessos civilizacionais que se verificaram e que estão na origem da degradação das condições de vida e trabalho, não sendo o único motivo, contribuíram para que os populismos de matriz neofascista fossem ganhando, também nos Açores, expressão e apoio eleitoral. A normalização destas forças políticas promovida pela comunicação social, mas também pelos partidos que, nas lutas de poder, se têm servido do seu apoio tácito contribuíram, igualmente, para a ascensão de organizações políticas que promovem um ideário que não se conforma aos princípios do Estado de Direito.

A degradação dos serviços públicos, opção e projeto político de quem nos governa e não uma qualquer inevitabilidade ou fatalidade, é preocupante, como preocupante é a onda privatizadora de empresas públicas. Os governos mais parecem uma central de vendas, por sinal pouco eficazes a promover e a valorizar o produto que querem transacionar, o que transforma estes processos em crimes políticos e económicos.

Mas se quem exerce o poder executivo na Região demonstra a cada dia a sua inépcia, não será menos verdade que a oposição, corporizada no PS, é um verdadeiro deserto de ideias e de projetos políticos, não diria alternativos, mas ao menos mobilizadores para garantir alternância. O que separa o PSD do PS é apenas o D que um tem no acrónimo e o outro não.

A esperança reside no ganho de alguma consciência crítica que se vai afirmando num tempo de muito desencanto e ruído informacional potenciado pelas redes sociais.


3. Há um verdadeiro debate sobre liberdade de expressão e os limites a partir dos quais a democracia começa a ficar em risco. Onde se situa nesta discussão?

A liberdade de expressão é um pilar essencial da democracia, mas não pode ser confundida com o direito à ofensa ou à manipulação. Defendo a liberdade de expressão, luto pelo direito à liberdade de expressão. Mas não podemos confundir liberdade de expressão com opinião avulsa, sem sustentação em dados e descontextualizada. A expressão da opinião tem de ter uma base informada, de conhecimento e de ética. Tem de ter consciência do seu impacto. O risco, hoje, é a banalização do discurso de ódio: o excesso de ruído, a mentira fabricada pela difusão de notícias falsas (fake news), o rancor que se disfarça de opinião. A democracia começa a ficar em risco quando o espaço público é tomado por quem confunde liberdade com impunidade. Defender a liberdade é, também, defender a verdade, o debate sério e o respeito pelo outro, diferente mas de igual dignidade.



4. Que assuntos deviam estar nos jornais e nos artigos de opinião, mas teimam em ser esquecidos, sobretudo nos Açores?

Talvez aqueles que não fazem manchetes apelativas, mas definem o futuro: o despovoamento de algumas das nossas ilhas, mas também de algumas das nossas cidades, o envelhecimento da população, a pobreza envergonhada que cresce nos interstícios da estatística. Falta-nos falar mais de quem trabalha, e das condições em que trabalha, da precariedade e dos baixos rendimentos que contribuem para que se empobreça a trabalhar, de quem parte e de quem fica, mas também de quem nos procura para aqui viver, trabalhar e contribuir para a sustentabilidade das finanças públicas e da segurança social. Falta discutir a sustentabilidade e a coesão social, territorial, cultural e económica, ou seja, a sustentabilidade real, não a dos discursos e circunstância, mas a das pessoas e das comunidades. E falta, sobretudo, tempo. Tempo para ouvir, para compreender, para escrever com profundidade num espaço mediático recheado pelo imediatismo, que sendo uma caraterística da simplificação é sempre redutor, superficial e parcelar, o que a prazo se pode tornar nefasto.


5. Por onde caminha hoje, política e socialmente, a Região?

Não quero parecer derrotista, até por ser um otimista, mas direi que os caminhos que estamos a percorrer não agoiram nada de bom. Nenhum dos seculares problemas estruturais está, em definitivo, resolvido e podemos acrescentar alguns que decorrem da má governação regional, como seja, uma questão há qual os cidadãos, legitimamente, preocupados com garantir que dia após dia há pão na mesa para os seus filhos, pouco ou nada preocupa, mas que nos devia inquietar a todos e, estou a referir-me ao desequilíbrio das contas públicas e ao eventual colapso financeiro da Região com a subsequente necessidade de uma intervenção financeira externa, com tudo o que isso acarreta de perda de autonomia. Autonomia já fortemente cerceada pela União Europeia, há muito que não é Lisboa. O centro decisório deslocou-se para Leste e ficou ainda mais distante e, quanto a isto não há novas tecnologias que nos valham.

Continuamos a ser uma região com uma elevada taxa de pobreza, com uma elevada iliteracia funcional, com elevada precariedade laboral e baixos rendimentos do trabalho, abandono e insucesso escolar elevado, com grandes assimetrias no desenvolvimento.

A economia regional continua a insistir na monocultura, agora o Turismo, o que nos torna dependentes e muito permeáveis a contextos externos que não podemos controlar. Todos nos lembramos do período de confinamento em 2020 e dos tempos que se lhe seguiram.

Diria que este Governo regional, reconhecendo-lhe legitimidade democrática, é uma manta de retalhos e de capelinhas, o que o transforma, não por isso, mas também por isso, no pior governo da história da Autonomia Constitucional. Sem grande esforço podemos encontrar nos governos do PSD, presididos por Mota Amaral, aspetos positivos na governação, o mesmo se verifica com os governos do PS, quer de Carlos César, quer de Vasco Cordeiro, o mesmo não se apura com os governos de José Manuel Bolieiro. Sim, eu sei. As tarifas aéreas reduzidas nas viagens interilhas, sim é verdade, mas há custa do transporte marítimo sazonal que, não sendo a melhor solução, permitia uma mobilidade que o transporte aéreo só por si não assegura numa região arquipelágica como é a nossa.

A política regional vive um tempo de incerteza sobre a qual pendem alguns perigos, poder-se-á dizer que, em parte, é um reflexo do que se passa no país e na União Europeia, mas a dispersão partidária que suporta o atual Governo regional e a crescente desconfiança dos cidadãos são alguns dos sintomas de algo mais profundo, como seja, a crise de representação e de sentido coletivo. A coesão, principal desígnio autonómico, não está garantida e precisa de de ser cuidada, alimentada pela justiça social, pela educação e por políticas que coloquem as pessoas, e não os interesses privados (políticos e empresariais), no centro das decisões.


Esta entrevista foi também publicada em inglês, numa tradução de Diniz Borges, na revista "Filamentos" e que pode ser acedida aqui


sábado, 1 de novembro de 2025

Rafeef Ziadah - a abrir novembro

Há mulheres cuja voz nasce da ferida e floresce na resistência, na luta e na esperança. Rafeef Ziadah é uma delas. Filha da Palestina, carrega na respiração a poeira das casas destruídas e o perfume das oliveiras que teimam em renascer. Fala com a força de quem aprendeu que cada palavra pode ser um muro contra o esquecimento e contra a barbárie genocida, um abrigo para um povo exilado na sua própria terra.

Quando diz “Ensinamos a vida, senhor”, é a vida inteira que se levanta, as mães que choram, semeiam e lutam, as crianças que brincam entre ruínas, os homens que sonham com o regresso. A sua voz não suplica: afirma. Faz da dor matéria de beleza, do amor à terra uma forma de dignidade e de luta.

Em Rafeef Ziadah, a poesia é fronteira, travessia e luta. É ferida e bálsamo. A sua palavra tem a limpidez da água e o peso da memória. E enquanto houver uma mulher palestiniana a dizer o nome da sua terra com esta clareza, a Palestina continuará viva, não apenas no mapa, mas no coração de quem escuta - viva no coração da humanidade.

“Ensinamos a vida, senhor — ensinamos a vida, mesmo depois de nos terem roubado o último céu.”

Rafeef Ziadah