sexta-feira, 29 de março de 2013

Chuvas de Agosto (*)


“A melhor maneira de ser livre é ser culto!”
José Martí

Foi-me solicitado que descrevesse um episódio, uma estória da minha vida estudantil, lamento desapontar-vos mas, na verdade, depois de algum esforço feito, entre os afazeres que me preenchem o tempo, só me vieram à lembrança acontecimentos que não se constituem, diria, bons exemplos para partilhar convosco nas celebrações do “ Dia do Estudante”. Julgo que o objetivo desta iniciativa da vossa escola é a recolha de depoimentos que valorizem o saber, o conhecimento e a cultura escolástica, se calhar ajuízo mal mas, na dúvida e para não me meter em trabalhos dando a conhecer alguns aspetos das aprendizagens marginais feitas sob a égide do “currículo escondido”, e, como vale mais prevenir do que remediar, optei por vos transcrever um texto que escrevi em Agosto de 2004. Fala da escola, da minha primeira escola. Frequentei-a apenas alguns meses, aliás no meu primeiro ano de escolaridade frequentei 3 escolas em outros tantos locais.

Esta minha opção não é sinónima de desvalorização da Escola, o meu currículo académico é suficiente para perceber o quanto a valorizo, isto para não ter de vos recordar o tempo que dediquei à Escola enquanto professor que sou, porém não me pareceu uma boa opção vir fazer a apologia do bom aluno e da importância da frequência, certificação e aprendizagem escolares, para isso estão aí os vossos pais, encarregados de educação e professores.
Fiquem então com o texto a que dei o título “Chuvas de Agosto”. Nada criativo, estava por lá em férias e de visita às memórias da minha infância e juventude e, nesse Agosto de 2004 choveu no interior continental, limitei-me a dizê-lo.

«Chuvas de Agosto
As temperaturas desceram e uma incomum chuva de Agosto abateu-se sobre algumas regiões continentais – veio mesmo a “calhar” para a azeitona. As oliveiras estão “carregadas” e esta rega vai engrossá-las. Vai ser um bom ano de azeite – diz-me um agricultor, ao acabar de plantar alguns pés de couve portuguesa que hoje, pela manhã, comprou no mercado agrícola da cidade (Castelo Branco, Beira Baixa).
As inusitadas condições meteorológicas que, nos últimos dias, afetaram algumas regiões do continente português afastaram o perigo de novos incêndios florestais e deixam os agricultores satisfeitos na expectativa de um bom ano agrícola. Eu, embora de férias, fiquei contente, não só pela floresta poupada e pelas esperanças dos agricultores, mas também por mim, habituado que estou aos índices de humidade mais elevados e às temperaturas mais amenas dos Açores. Confesso-vos que já me é difícil aguentar com as altas temperaturas e com o ar seco do verão na interioridade continental onde nasci e cresci.

Interioridade que, apesar das novas e rápidas vias de comunicação viária e das novas tecnologias de informação à velocidade da banda larga, continua a marcar os lugares e as pessoas. Hoje chega-se à capital (Lisboa) em 2 horas ou, um pouco mais se em vez do automóvel se utilizar o comboio ou o autocarro, bem diferente das 5, 6 ou 7 horas de há 30 anos. A “net” está por aí disponível para quem quer, ou melhor, para quem pode. Os grandes espaços comerciais proliferam como cogumelos. 
É inegável, o interior ficou mais perto, as condições de vida melhoraram e o acesso aos bens de consumo, seja para satisfação das necessidades básicas ou outras, está mais facilitado mas é, igualmente, inegável que a par de todo o progresso registado se foi assistindo ao declínio e destruição dos sectores produtivos e, ao consequente empobrecimento desta como de outras regiões do interior do continente português. 
Embora sem os contornos de outros tempos, os jovens adultos continuam a procurar, na Europa e no litoral, as oportunidades que lhes satisfaçam expectativas e necessidades, que por aqui não encontram, por muito que procurem e queiram. A desertificação e o envelhecimento da população aumentam e o espaço rural vai-se transformando num enorme “lar de terceira idade”.
A chuva deste Agosto veio amenizar o tempo e dar-me coragem para sair da sombra das “latadas” e pôr-me ao caminho de um desses lugares do interior que, pela sua diminuta população, dificuldades na acessibilidade, importância económica, afastamento da sede do concelho e do distrito ou, outros motivos menos objetivos, são como pequenas “ilhas” perdidas na vastidão destes campos onde ainda impera o pinheiro bravo, o sobreiro, o olival e a vinha. 

Há cerca de 42 anos que não vinha a este lugar do qual, na altura, se dizia ser o “centro do mundo” (Barbaído, Concelho de Castelo Branco). Nunca soube porquê, e ainda não procurei saber, ficará para mais tarde se tempo houver. A razão que me levou a percorrer o sinuoso caminho, hoje de asfalto, até esse perdido lugar onde o único meio de transporte para lá chegar, à época, era o burro ou, para quem o não tivesse, as próprias pernas, foi o facto de aí ter iniciado o ensino primário. 
À data vivia numa secular aldeia, já sem a importância de outros tempos mas, ainda assim, uma das mais emblemáticas do concelho de Castelo Branco, o episódio que me levou a abandonar o aconchego materno e a deslocar-me para esse pequeno lugar, do qual se dizia ser o “centro do mundo”, para frequentar a primeira classe do ensino primário numa pequena escola da qual era professora a minha tia Celeste, ficou a dever-se à impossibilidade de me poder matricular, ao que julgo por não haver vaga e pela idade, na escola primária de S. Vicente da Beira, onde vivia com os meus pais e irmã. Não cheguei a terminar o ano na escola da minha tia, resolvidas que foram as questões que impediam a minha entrada legal no ensino regressei ao seio da família e a S. Vicente da Beira.
Chegado ao meu destino para além dos postes de eletricidade, inexistentes quando por ali percorri os caminhos da minha infância, nada parecia ter mudado, o pequeno edifício onde aprendera as primeiras letras lá estava. Ao aproximar-me a nostalgia misturou-se com alguma tristeza, a exígua construção aparentava estar em ruínas mas, numa observação mais minuciosa verifiquei que os sinais, afinal, eram de reconstrução. Alguns instantes depois três jovens, que vieram indagar o que fazia por ali um forasteiro de máquina fotográfica em punho, confirmaram isso mesmo. A escola foi desativada, como tantas outras, há uma dezena de anos. O seu estado degradou-se mas, agora, está a ser reconstruída para outras serventias.
A melancolia misturou-se com esperança e alegria. A “minha” primeira escola vai voltar a encher-se de vida e a servir aquela pequena comunidade.»
Horta, 17 de Março de 2013

(*) Escrito para o suplemento especial do "Pisca de Gente" , comemorativo do Dia do Estudante.

Aníbal C. Pires, In PISCA DE GENTE, 24 de Março de 2013, Praia da Vitória

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