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| foto de Aníbal C. Pires |
Esta talvez não seja a melhor abertura para um texto em véspera de Natal, nem garanto que, daqui para a frente, venha a conseguir apropriar-me do espírito da época. Não está fácil, mesmo com as decorações nos espaços públicos iluminados a anunciar uma qualquer boa nova num plano de compra a prestações, sem juros.
Não posso negar que a encenação da época natalícia traz consigo algo que conforta, que anima. Mas traz também algo de profundamente insuficiente perante a complexidade do tempo e do espaço que habitamos, algo que não se concilia com a leviandade rotineira dos votos formulados. Não quero ser injusto e abro uma exceção para quem, de forma genuína e com espírito solidário, celebra as festas de Natal, Ano Novo e Dia de Reis. Sei que assim é, e tenho por esses meus concidadãos o maior respeito.
Não é possível escapar aos apelos das Festas que se querem boas. Ninguém fica indiferente, e a celebração, do que quer que seja, acaba por se consumar. Para não perder tempo, já dei início ao ciclo de festividades assinalando o Solstício de Inverno, que no hemisfério Norte é ancestralmente saudado como o início de um novo ciclo natural.
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| foto de Aníbal C. Pires |
É precisamente numa fase de declínio de um ciclo que nos encontramos, ainda que isso seja sistematicamente negado. O mundo organizado em torno da supremacia ocidental, do domínio financeiro e militar dos Estados Unidos e da submissão política dos seus aliados europeus mostra sinais claros de desgaste, senão mesmo de rutura. Em vez de reconhecer esse esgotamento e procurar novas formas de cooperação, a resposta tem sido a radicalização do confronto.
A Palestina continua a ser palco da barbárie, nas Caraíbas, o reaparecimento de atos de pirataria no contexto do conflito entre os Estados Unidos e a Venezuela não é um anacronismo preocupante. É a prova de que o recurso à força, à intimidação e ao bloqueio económico continua a ser uma ferramenta central da política internacional, em particular da praticada pelos Estados Unidos. A linguagem muda, os métodos adaptam-se, mas a lógica colonial permanece.
Na União Europeia, a opção pela guerra deixou de ser tabu e é hoje assumida como caminho. Um caminho que se adivinha desastroso para a própria União. Depois dos 800 mil milhões destinados a alimentar a corrida armamentista, surge agora, face à ilegalidade que constituiria a utilização dos ativos russos, o financiamento da Ucrânia em dezenas de milhares de milhões de euros, apresentado sob a forma de um recente empréstimo. Como se não bastasse todo o financiamento anterior, com o destino que conhecemos, acrescenta-se mais este absurdo que compromete as gerações futuras. Tudo isto acontece sem debate público sério, sem referendo, sem verdadeiro escrutínio democrático. A economia de guerra instala-se como normalidade, enquanto se corta, se adia e se sacrifica tudo o que não contribua para esse esforço.
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| imagem retirada da internet |
Em paralelo, os protestos dos agricultores europeus expõem a falência de um modelo que se diz sustentável, mas que destrói quem produz. Bruxelas, símbolo do poder tecnocrático, reage com surdez e cinismo. A agricultura é invocada nos discursos, mas abandonada na prática, vítima de políticas que favorecem grandes interesses económicos e mercados globais em detrimento da soberania alimentar e do bem-estar dos cidadãos.
Vivemos um momento histórico marcado por tensões que se normalizam. O recrudescimento de discursos e práticas fascizantes deixou de ser exceção para se tornar método. Aceita-se como uma necessidade o autoritarismo. Reabilitam-se símbolos e ideias que julgávamos enterradas. O medo volta a ser um instrumento político legítimo. A liberdade de expressão está cerceada.
Em paralelo, a história é reescrita com mão pesada. Apagam-se responsabilidades, diluem-se crimes, relativizam-se violências. Culturas inteiras são empurradas para as margens ou diretamente silenciadas, como atualmente está a acontecer à cultura russa. Não é um processo novo, mas ganha hoje uma eficácia renovada através dos meios e das narrativas produzidas por uma União Europeia subserviente, repetidas com veemência por algumas famílias políticas até se tornarem, aos olhos dos cidadãos, aparentes verdades absolutas. É lamentável e constrangedor ver e ouvir deputados portugueses eleitos para o Parlamento Europeu a regurgitar o discurso do perigo russo e a defender o financiamento da guerra.
Enquanto isso, o eixo do mundo desloca-se. China, Rússia, Índia, Indonésia e outros países fora da órbita atlântica reforçam a sua autonomia económica, diversificam alianças e reduzem a dependência do dólar no comércio internacional. Não se trata de uma ameaça, mas de uma mudança estrutural que altera o equilíbrio global, mais que uma premonição é um facto. Ainda assim, esta realidade é sistematicamente desvalorizada ou ocultada no espaço público europeu, também com a cumplicidade de alguns parlamentares europeus eleitos pelos portugueses.
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| imagem retirada da internet |
Neste quadro, o Natal surge como uma suspensão artificial do tempo histórico. Um intervalo emocional que permite continuar sem questionar. Mas os ciclos não se interrompem por decreto, nem pela iluminação festiva. Tal como no Solstício, a escuridão não é um acidente: é parte do processo.
Reconhecer o fim de um ciclo não é ceder ao fatalismo. É, pelo contrário, condição para que algo diferente possa emergir. A recusa em ver, em nome do conforto ou da conveniência, apenas prolonga a noite. Talvez seja essa a verdadeira inquietação que esta época deveria provocar, em vez de votos leves e promessas recicladas.
É neste contexto que chega o Natal. Não como refúgio inocente, mas como interrogação. Que sentido têm as palavras de paz quando se investe na guerra? Que valor têm os apelos à tolerância quando se normaliza a exclusão? Que memória celebramos quando tantas outras são ativamente apagadas?
Se o Natal ainda pode significar algo, talvez seja isto: um momento de pausa crítica e de responsabilidade. Uma recusa da anestesia que nos é oferecida como conforto. Um compromisso ativo com a dignidade humana, para além das fronteiras, das narrativas oficiais e das conveniências do poder, mesmo quando esse compromisso tem custos.
Ponta Delgada, 23 de dezembro de 2025




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