quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

a retórica de Raquel Varela

imagem retirada da internet

Há figuras, na paisagem política portuguesa, que procuram ocupar um espaço de rutura com aquilo que, muitas vezes abusivamente, se designa por esquerda. Alguns fazem-no pela radicalidade do gesto, outros pela força da indignação, outros ainda pela necessidade de aparecer onde a esquerda institucional parece oscilar, outros por razões que a razão desconhece, mas que se adivinha, e, Raquel Varela é um desses casos singulares. 


Raquel Varela é uma académica de mérito reconhecido, com presença mediática constante, até há algum tempo. Esta personalidade constrói um discurso que, aparentemente, se apresenta como diferente de tudo o que existe, e que, por isso mesmo, reclama para si a autenticidade que faltaria aos demais, embora, sem grande esforço de memória, encontremos paralelismos entre Raquel Varela e o discurso de afirmação alternativa de formações partidárias da chamada esquerda que pouco, ou nada, vieram acrescentar à luta por transformações com impacto na vida do povo e dos trabalhadores portugueses.

A sua crítica ao PS, ao BE, ao Livre e ao PCP, na sequência do debate entre António Filipe e Gouveia e Melo, parte do seguinte pressuposto: 

- a esquerda portuguesa teria abandonado o horizonte transformador, acomodando-se ao Estado, ao compromisso europeu e aos limites do possível. Não está totalmente errada nessa constatação, pois o PS há muito se converteu à terceira via e o BE assumiu-se como social-democrata civilizacional, mas o que Raquel Varela propõe em alternativa não é uma renovação do pensamento de esquerda, é um regresso a um passado distante, ao contexto histórico e ao que se lhe seguiu.
Para Raquel Varela a história parece existir apenas como argumento moral, por outro lado esta sua crítica não assenta bem ao PCP, embora tenha sido este o Partido que foi alvo no texto que publicou a propósito de um debate sobre as presidenciais entre Gouveia e Melo e António Filipe.

A retórica eco socialista que reivindica, seja lá isso o que for, procura mais distinguir do que construir. E é nessa distinção, muitas vezes feita pela negativa, que se esboça algo que se assemelha a uma nova força política partidária. Não organizada, não formalizada, mas insinuada. A génese das formações partidárias, afinal, começa quase sempre assim: primeiro a narrativa, depois o sujeito que a criou. E não seria a primeira vez que a política portuguesa assistia a isto.

O texto que publicou sobre o debate presidencial confirma essa deriva. Em vez de análise, temos acusação. Em vez de crítica, um moralismo inflamado que rejeita tudo o que não se alinhe com um internacionalismo revolucionário de início do século XX, como se a realidade geopolítica do nosso tempo não fosse incomparavelmente mais complexa do que a Europa de 1915, ou seja, o que foi acordado na pequena vila suíça de Zimmerwald terá sido o mais adequado para o contexto da época, mas os contextos alteram-se e com eles as estratégias e os instrumentos.

Para Raquel Varela, O “Estado”, esse monstro que ela descreve, é sempre instrumento da dominação, nunca da coesão, nunca da proteção, nunca da soberania democrática. É uma leitura que pode seduzir pela forma, mas falha pela ausência de mundo. Eu também sou utópico, mas um passo de cada vez é o mais avisado.

Quando afirma desejar “a derrota da nossa nação pela vida do nosso povo”, a frase brilha enquanto retórica, mas treme enquanto política. A nação não é apenas uma invenção da burguesia, e mesmo que o tenha sido, a nação é também o lugar concreto onde se disputa trabalho, direitos, igualdade, recursos, futuro. A sua dissolução não liberta os trabalhadores, entrega-os a poderes mais opacos, menos controláveis, mais brutais.

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O PCP, que surge como alvo preferencial, não é apenas criticado a autora parece interessada em lhe retirar legitimidade. Tudo o que nele não corresponde ao modelo revolucionário pré estalinista é visto como desvio, rendição, cedência. Mas a história, da resistência antifascista ao papel social que desempenhou durante décadas, não cabe em duas linhas altivas de reprovação. E António Filipe, que não está acima da crítica, tampouco merece ser tratado como cúmplice de um militarismo que não partilha. António Filipe é um defensor da paz, mas a Raquel Varela necessitava de uma (auto)justificação, ninguém lha pediu, mas serviu-lhe para anunciar que não votaria em António Filipe.

É verdade que a esquerda portuguesa vive um tempo de esvaziamento eleitoral, mas não será com contributos como o da Raquel Varela que se conseguirá que a esquerda tenha a expressão eleitoral que já teve, influência social nunca a deixou de ter.

Raquel Varela fala e escreve com força, mas essa força corre o risco de se transformar apenas em gesto. E o gesto, sem enraizamento, sem programa, sem construção coletiva, não passa de impulso, um impulso com propósito, neste caso o propósito foi tentar descredibilizar o candidato António Filipe que apenas se referiu ao texto constitucional quando falou sobre defesa nacional. A este propósito, também os tenho, gostaria de saber o que pensa Raquel Varela sobre a luta do povo palestiniano na defesa da sua pátria.

A verdadeira alternativa à esquerda não se fará contra o Estado ou contra a nação, mas através deles.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 3 de dezembro de 2025


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