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O Mediterrâneo é a metáfora perfeita da hipocrisia europeia: chama “crise” ao que ela própria produz e alimenta, chama “ameaça” aos que fogem das ameaças que semeou, chama “choque civilizacional” àquilo que é, na essência, um encontro desigual entre mundos violentados e um projeto de bem-estar construído sobre séculos de um colonialismo que teima em persistir sob formas de dependência neocolonial.
Um outro mar, o Atlântico, mais vasto e aparentemente mais pacífico, mas não menos gerador de conflitualidades, ou pelo menos de instrumento para alimentar projetos políticos e bélicos de um domínio hegemónico em ruínas. Foi no Atlântico que Portugal se habituou a ver a sua projeção marítima, ora como ponte, ora como eco de interesses que não são verdadeiramente seus. O Atlântico é a rota estratégica dos cabos submarinos, do tráfego energético, do posicionamento militar estado-unidense, das rotas comerciais que unem continentes e da crescente militarização que visa a defesa de projetos imperiais pouco recomendáveis e aos quais urge por termo, o espetro de uma guerra generalizada está desenhado, saibamos utilizar a diplomacia como instrumento nas relações internacionais e abandone-se, de uma vez por todas, a guerra.
É nesse Atlântico que se situam as ilhas açorianas. O arquipélago é o ponto estratégico no xadrez geopolítico sobre o qual Portugal tem cada vez menos soberania. A base das Lajes, o posicionamento no Atlântico médio, os corredores militares e tecnológicos, tudo isso faz dos Açores um centro instrumental para Washington e Bruxelas, mas continua a ser uma periferia para Lisboa. A capital raramente percebe a dimensão do que tem entre mãos ou, se percebe, não tem sabido potenciar este ativo. Não como plataforma para a guerra, mas como suporte para a paz e cooperação e um ponto de encontro entre mundos. 
foto de Aníbal C. Pires
Portugal encontra-se entre estes dois mares, não só geográfica, mas histórica e politicamente.
Essa condição poderia ser potenciada, mas tem sido depreciada. Poderia ser ponte, mas tem sido, apenas, um posto avançado de interesses externos que o usam e descartam, consoante os contextos políticos e os proveitos para os poderes que alimentam a hegemonia ocidental.
Portugal nunca soube aproveitar este seu ativo natural e continua a ser mero espetador. Não pense o leitor que existe aqui algum saudosismo do colonialismo e do imperialismo português, nem se pense, ainda que por um instante, que defendo uma posição portuguesa mais interventiva no apoio a ações políticas de carácter bélico dos Estados Unidos e da OTAN, nada disso. A posição geográfica dos Açores, a meio caminho, entre o continente europeu e americano (Sul e Norte), a Macaronésia, mas também o continente africano, ou seja toda a bacia atlântica, conferem ao arquipélago uma centralidade que importaria valorizar. Mas o país insiste em posicionar-se como “aluno aplicado” da estratégia atlantista, no mau sentido da palavra, mesmo quando essa estratégia reforça desigualdades, alimenta conflitos e normaliza a guerra.
Veja-se como a pena corre, quando a deixamos ir sem controle para assuntos complexos, quiçá interessantes, mas que não faziam parte do meu propósito. Quando me sentei trazia comigo a ideia de abordar uma das condições humanas do nosso tempo: as migrações. Estou a meio caminho do fim do texto e ainda ando à deriva entre o Mediterrâneo e o Atlântico. Se bem que estes dois mares serviram e servem para a deslocação de pessoas, uns compulsivamente, outros por vontade própria, mas sempre em resultado da violência e de sistemas políticos e económicos predatórios. Foi assim com a escravatura, é-o agora com a guerra, com a pobreza e com o esgotamento das economias locais, entendidas aqui como regiões onde por diferentes motivos a fome e a negação de uma vida digna impelem cidadãos para percursos migratórios nos quais não há nenhum romantismo, apenas desespero. A maioria não são nómadas digitais, nem têm vistos gold.
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O que impressiona não é apenas a dureza das trajetórias migratórias, mas a brutalidade crescente com que o Ocidente decide “defender-se” daqueles a quem chama ameaça. A Europa transformou as suas fronteiras em laboratórios de desumanização: centros de detenção, arame farpado, tecnologia de vigilância, drones, acordos com Estados-fantasma convertidos em canis humanos. A retórica política, ora sussurrada, ora gritada, tenta convencer-nos de que esta violência é necessária para preservar o nosso modo de vida. Mas ninguém diz, pelo menos com honestidade, que esse modo de vida é insustentável sem a destruição sistemática das economias do Sul global e sem a exploração barata, invisível e descartável de imigrantes que, uma vez cá dentro, são úteis, mas nunca bem-vindos.
Os Estados Unidos, que durante décadas se apresentaram como “nação de imigrantes”, fazem hoje da fronteira sul uma zona militarizada onde se testam tecnologias de exclusão dignas de ficção distópica. Muralhas, sensores térmicos, vigilância permanente, milícias privadas, a fronteira mexicana tornou-se palco de uma guerra não declarada contra civis desarmados. E, tal como na Europa, a violência é legitimada por discursos que classificam os migrantes como invasores, criminosos ou, uma ameaça cultural.
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Mas se observarmos com atenção, veremos que esta violência dirigida aos migrantes tem uma função precisa: desviar o olhar. A imagem do migrante é construída como sendo o inimigo externo para ocultar o verdadeiro inimigo interno, o modelo económico que precariza, empobrece e abandona a maioria da população. É mais fácil culpar quem chega do que enfrentar quem detém o poder. É mais fácil construir muros do que questionar o porquê de tantas pessoas quererem atravessá-los.
Talvez falte ainda a consciência plena de que o Mediterrâneo e o Atlântico não são apenas geografias: são espelhos onde nos vemos, ou deveríamos ver. São mares que transportam histórias que também são nossas.
O que está em causa, no fundo, não são as migrações, mas a humanidade. E talvez seja esse o futuro que ainda nos resta: escolher entre a barbárie das fronteiras e a humanidade das pontes.
Ponta Delgada, 9 de dezembro de 2025



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