sábado, 20 de fevereiro de 2010

Para lá das escutas

A estupefacção dos portugueses perante o cortejo de escândalos que envolvem José Sócrates atingiu um novo nível com as revelações que têm vindo a público sobre o chamado caso “Face Oculta”.
Um dos mais recentes, a tentativa falhada de impedir a saída de um jornal semanário de grande circulação como é o Sol, apenas pioraram essa preocupação e esse espanto. Procurar bloquear, pela primeira vez desde o 25 de Abril, a edição de um jornal não pode deixar de revelar que os envolvidos estão dispostos a tudo para impedir a divulgação das escutas.
O rol de escandaleiras que envolvem José Sócrates, desde o caso da sua licenciatura, os projectos assinados, o Freeport, por exemplo, roubou-lhe qualquer espécie de crédito político que ainda pudesse ter.
O seu silêncio e a falta de esclarecimento cabal deste assunto naturalmente apenas acrescentam ao cepticismo dos portugueses. A sua sobrevivência política esfuma-se rapidamente como grãos de areia numa ampulheta.
Mas as consequências são muito mais graves. A atitude do Primeiro-Ministro leva-nos pelo caminho mais curto para a total e absoluta descredibilização do Estado de Direito e do próprio sistema democrático. A democracia representativa baseia-se num voto de confiança entre representantes e representados. As suspeitas que pairam sobre o Primeiro-Ministro destroem essa relação. O descrédito das instituições acrescenta à deserção, ao abandono e à abstenção política e mesmo eleitoral dos portugueses.
A questão não é meramente de personalidades ou de condutas individuais. As escutas que vieram a público são reveladoras não apenas sobre o caso concreto, mas também sobre a realidade do que são as relações entre o poder político e económico. A rotatividade perpétua de rostos e protagonistas entre cargos políticos e conselhos de administração tinha forçosamente de gerar este tipo de ligações perigosas, cadeias de favores e cumplicidades espúrias. O problema vai muito para lá de Sócrates ou do PS.
A importância dos grandes grupos empresariais na organização da nossa sociedade fá-los, naturalmente, procurar por todas as vias cimentar as suas relações com o poder político, garantindo a sua influência, presença e quota de mercado. Têm os meios, têm os recursos financeiros e não se coíbem de os usar. Daí se ter generalizado este estranho hábito, e não apenas em Portugal, de nomear figuras políticas reconhecidas fora do activo para posições em Conselhos de Administração em grandes empresas quer públicas, quer privadas.
Institui-se assim, mais do que o germe da corrupção, a criação de um elite que frequenta e manipula as esferas do poder, que mantém entre si uma teia de cumplicidades e colaborações, não um mas múltiplos polvos, procurando servir a sua própria agenda e os seus interesses que nada têm a ver com as necessidades reais do país. Os portugueses sabem-no. É por isso que viram as costas.
Aníbal C. Pires, IN EXPRESSO DAS NOVE, 19 de Fevereiro de 2010, Ponta Delgada

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