À entrada dos anos setenta a leitura era já um hábito instalado nas minhas rotinas, costume alimentado por regulares visitas às bibliotecas públicas e, em particular, às bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. A aquisição de livros era, mais do que hoje, um luxo a que só alguns se podiam dar. Filho de uma família de poucos recursos financeiros os livros não abundavam lá por casa e poucos havia para além dos títulos dos manuais escolares e alguma banda desenhada.
Foi também nos anos setenta (1974) com o lançamento, pela Europa-América, de uma colecção de livros de bolso e a conselho de um oficial da Guarda Nacional Republicana que comprei o meu primeiro livro que por sinal era também o primeiro volume da colecção que em boa hora aquela editora tinha colocado no mercado: “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes. Um título estranho e um autor sobre o qual na altura nada sabia. A leitura desta narrativa aguçou a minha atenção para uma realidade social e histórica sobre a qual não tinha consciência - talvez por me ter sido sempre apresentada como uma coisa natural - pese embora não fosse uma realidade totalmente desconhecida e à qual não era, de todo, alheio porquanto sentia uma revolta e indignação interior que me colocaram sempre ao lado dos mais fracos, dos mais desfavorecidos, dos excluídos e marginalizados.
Soeiro Pereira Gomes leva-nos pelo drama do trabalho infantil na vila de Alhandra e retrata a vida de jovens trabalhadores que nas margens dos esteiros do Rio Tejo fabricam peças de barro nos telhais.
O Gaitinhas, o Gineto e o menino da rua Sagui retratam a condição social precária de um grupo de gaiatos ribatejanos. Sem quaisquer dramatismos e sem qualquer véu a esconder a vida cruel de uma educação sem escola e de uma adolescência de agreste trabalho. Em Esteiros, Soeiro Pereira Gomes põe a nu uma sociedade desumana de costas voltadas para um povo que subsistia miseravelmente sob uma autoridade senhorial.
Os gaiatos que protagonizam este romance de Soeiro Pereira Gomes são os homens que nunca foram meninos e para cujos filhos o autor desejava uma sociedade onde houvesse lugar à infância e à juventude e, onde a riqueza e a pobreza não fossem imutáveis heranças.
A escolha de Esteiros para assinalar o Dia Mundial do Livro (23 de Abril) não fica a dever-se ao facto de este ter sido o primeiro de muitos livros que ao longo da vida tenho adquirido, como julgo que se tornou óbvio ao longo deste texto.
Desde menino - eu, ao contrário dos meus pais, já pude ser menino - nunca fiquei insensível perante as desigualdades sociais, perante a injustiça, perante a discriminação perante a dor de um povo sofrido, um povo que é o meu e ao qual pertenço, a opção por Esteiros surgiu naturalmente como uma opção de classe, como de classe são as minhas opções perante a vida.
Anibal C. Pires, IN EXPRESSO DAS NOVE, 14 de Maio de 2010, Ponta Delgada
2 comentários:
Que post bonito, salpicado de ternura.
Obrigada.
Bom fim-de-semana e um abraço.
Eu li o livro uns tempos antes da tal colecção da EA. Gostei da tua análise. Um abraço
Alvaro Neto
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