domingo, 31 de outubro de 2010

"Pão por Deus" ou "Dia das Bruxas"

No início de Novembro de 2005 publiquei, no Açoriano Oriental, um texto sobre questões de identidade, rituais e aculturação que hoje partilho com público mais alargado do "momentos".

Rituais
Os rituais sejam comemorativos ou, simplesmente, de rotinas diárias constituem um factor importante, senão mesmo determinante, na construção da identidade e memória colectiva das comunidades e dos povos.
Os rituais comemorativos estão, geralmente, associados a ciclos naturais (mudança das estações do ano), a calendários religiosos ou a mitos.
Podemos discordar, ou não, dos princípios que estão na génese de alguns dos rituais comemorativos que enformam a cultura das comunidades e povos. Podemos até discordar da prática de alguns rituais mas é, no entanto, inegável que é através deles que se identificam e diferenciam culturalmente os grupos humanos. Os rituais são como que um bilhete de identidade da diversidade cultural que caracteriza a humanidade.
A cultura tem, tal como outras manifestações e realizações do homem, servido para submeter grupos humanos. O domínio de um grupo humano sobre outros grupos humanos pode caracterizar-se pela acentuação das diferenças – assim se justificou a escravatura e o colonialismo – ou, então, pela assimilação e padronização cultural – característica da sociedade de consumo. A cultura que, em determinado momento histórico, é dominante impõe, acentuando as diferenças ou estimulando a assimilação, os seus padrões culturais e ideológicos.
O fenómeno de globalização que caracteriza a contemporaneidade favorece, claramente, a assimilação cultural. A denominada civilização ocidental é tida como uma referência e modelo, incontestáveis, de desenvolvimento económico e de bem-estar. E, se esta é uma verdade insofismável, não é menos verdade que este desenvolvimento e bem-estar foram, e são, conseguidos pela submissão cultural e económica de outras sociedades.
Do século XV até meados do século XX a prosperidade ocidental advinha de um domínio que se estruturava na “superioridade” de uma cultura sobre outras e que cultivava a separação e a segregação dos indivíduos e das culturas. O fim da II Guerra Mundial e o processo de descolonização que se lhe seguiu levou ao reconhecimento e aceitação, internacional, de um Mundo de culturas.
Um Mundo culturalmente diversificado e liberto da “hierarquização” cultural punha em causa o crescimento e o bem-estar de quem economicamente continuava a dominar. O caminho que se seguiu é o que todos conhecemos: a uniformização dos padrões culturais, segundo os “valores” ocidentais. A assimilação cultural assume-se, assim, como uma vantagem económica. Quanto mais expandidos e padronizados estiverem os hábitos culturais e de consumo maior escala se dá aos mercados.
Que melhor exemplo do que um dos aspectos mais “sui generis” da cultura das comunidades e dos povos – a alimentação.
O abandono, por um elevado número de famílias portuguesas, de hábitos alimentares tradicionais considerados, pelos especialistas em nutrição humana, equilibrados e ajustados às nossas necessidades calóricas, em detrimento de uma dieta alimentar importada, padronizada e desequilibrada nutricionalmente, é um exemplo do quanto pode ser perniciosa a assimilação cultural, particularmente, quando associada a cegos interesses económicos. Não é por acaso que a obesidade e as doenças do aparelho digestivo aumentaram para o nível de preocupação nacional.
A música é, também, um exemplo paradigmático da uniformização cultural a que a sociedade global nos submete utilizando o poder, neste como noutros exemplos, dos meios de comunicação de massas. Há outros músicos e músicas para além da MTV.
Não quero transformar esta reflexão em mera retórica identitária, no entanto, e reconhecendo que os contextos sociais e históricos evoluem e que a globalização não tem, forçosamente, de ter apenas aspectos negativos quero deixar-vos com a constatação de um facto – esta semana o calendário da identidade e da memória açoriana assinalou o ritual comemorativo do “Pão por Deus”, o calendário comercial celebrou “o Dia das Bruxas”.
Palvarinho, 01 de Novembro de 2005

Sem comentários: