quarta-feira, 25 de outubro de 2017

O embaixador dos donos do Mundo

Foto by Madalena Pires (2017)
É sempre bom poder rever amigos com quem não estamos tanto como gostaríamos, tão bom como estar com aqueles com quem convivemos quotidianamente. Mas com aqueles que só vemos de vez em quando, nos rituais da vida e da morte, nos eventos sociais, culturais e políticos, o sabor do reencontro é diferente. Vivemos na mesma cidade e na mesma ilha, mas passa muito tempo, demasiado tempo sem nos cruzarmos, a vida foi-nos afastando do caminho comum e, numa das quaisquer encruzilhadas da nossa existência cada um seguiu o seu caminho. Quando fruto do acaso ou em função de interesses comuns nos encontramos a ligação é imediata e as antigas cumplicidades parece nunca terem sido interrompidas. A amizade tem destas coisas.
A semana passada a propósito da realização de um almoço seguido de uma conferência, promovida por um jornal diário de Ponta Delgada, em que o orador convidado foi João Vale de Almeida, embaixador da União Europeia (UE) junto da Organização das Nações Unidas (ONU), vivi momentos de reencontro com amigos com quem não privava há muito tempo e, foi muito bom. Conheci outros cidadãos com quem mantive uma agradável conversa sobre algumas questões da atualidade política regional e, foi muito agradável.
Já quanto ao conteúdo da conferência do Embaixador João Vale de Almeida não posso dizer a mesma coisa, embora tivesse sido interessante para perceber o que pensam e como agem os donos do Mundo de quem este embaixador é um fiel representante e, para quem trabalha já há umas dezenas de anos. Um breve olhar sobre as notas biográficas e curriculares de João Vale de Almeida é suficiente para sustentar o que atrás ficou dito. Não sendo diplomata de carreira, o atual embaixador da UE, na ONU, lida com a diplomacia mundial há três décadas, trabalhou com Jacques Delors, foi o chamado “braço direito” de Durão Barroso na presidência da Comissão da UE, e negociou agendas e compromissos em nome dos grupos e personalidades mais poderosos do Mundo, no âmbito do G8.
Para João Vale de Almeida ter a confiança deles, não pode nem deve merecer a confiança dos povos. Não podemos, nem devemos esquecer que, por conta dos seus patrões, os povos, um pouco por todo o Mundo, sofreram os efeitos nefastos da agenda neoliberal que domina quer na UE, quer nos Estados Unidos.

Imagem retirada da Internet
Houve, contudo, um aspeto que o embaixador referiu como um dos perigos da atualidade com o qual eu não posso deixar de concordar, O perigo dos populismos. Claro que João Vale de Almeida não se estava a referir aos mesmos populismos dos quais eu tenho receio e que podem constituir, de facto, uma ameaça para a democracia tolerante e que reconhece um Mundo com múltiplas vozes, o embaixador referia-se e tem receio dos processos políticos fundados em valores de justiça social e económica que não se coadunam com a agenda, que o próprio designa como sendo, da democracia liberal.
O embaixador da UE junto da ONU referiu ainda outros aspetos que podem colocar em causa as democracias liberais, dando como exemplo a “anexação” da Crimeia pela Federação Russa esquecendo, porém, de se referir ao golpe de estado que colocou um governo da extrema direita, diria mesmo de cariz neonazi, na Ucrânia com o apoio explicito das, por ele, designadas democracias liberais, e que bem vistas as coisas transformam a “anexação” da Crimeia num ato defensivo da Federação Russa e não, como se pode subentender das palavras de João Vale de Almeida, num ato ofensivo ou expansionista.
Estes espaços valem pelos reencontros com velhos amigos, mas também para perceber que com os representantes ao serviço dos donos do Mundo, não há ONU que nos valha. Se é que sobre isso subsistiam dúvidas.
Ponta Delgada, 23 de Outubro de 2017

Aníbal C. Pires, In Diário Insular e Açores 9, 25 de Outubro de 2017

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