quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

a retórica de Raquel Varela

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Há figuras, na paisagem política portuguesa, que procuram ocupar um espaço de rutura com aquilo que, muitas vezes abusivamente, se designa por esquerda. Alguns fazem-no pela radicalidade do gesto, outros pela força da indignação, outros ainda pela necessidade de aparecer onde a esquerda institucional parece oscilar, outros por razões que a razão desconhece, mas que se adivinha, e, Raquel Varela é um desses casos singulares. 


Raquel Varela é uma académica de mérito reconhecido, com presença mediática constante, até há algum tempo. Esta personalidade constrói um discurso que, aparentemente, se apresenta como diferente de tudo o que existe, e que, por isso mesmo, reclama para si a autenticidade que faltaria aos demais, embora, sem grande esforço de memória, encontremos paralelismos entre Raquel Varela e o discurso de afirmação alternativa de formações partidárias da chamada esquerda que pouco, ou nada, vieram acrescentar à luta por transformações com impacto na vida do povo e dos trabalhadores portugueses.

A sua crítica ao PS, ao BE, ao Livre e ao PCP, na sequência do debate entre António Filipe e Gouveia e Melo, parte do seguinte pressuposto: 

- a esquerda portuguesa teria abandonado o horizonte transformador, acomodando-se ao Estado, ao compromisso europeu e aos limites do possível. Não está totalmente errada nessa constatação, pois o PS há muito se converteu à terceira via e o BE assumiu-se como social-democrata civilizacional, mas o que Raquel Varela propõe em alternativa não é uma renovação do pensamento de esquerda, é um regresso a um passado distante, ao contexto histórico e ao que se lhe seguiu.
Para Raquel Varela a história parece existir apenas como argumento moral, por outro lado esta sua crítica não assenta bem ao PCP, embora tenha sido este o Partido que foi alvo no texto que publicou a propósito de um debate sobre as presidenciais entre Gouveia e Melo e António Filipe.

A retórica eco socialista que reivindica, seja lá isso o que for, procura mais distinguir do que construir. E é nessa distinção, muitas vezes feita pela negativa, que se esboça algo que se assemelha a uma nova força política partidária. Não organizada, não formalizada, mas insinuada. A génese das formações partidárias, afinal, começa quase sempre assim: primeiro a narrativa, depois o sujeito que a criou. E não seria a primeira vez que a política portuguesa assistia a isto.

O texto que publicou sobre o debate presidencial confirma essa deriva. Em vez de análise, temos acusação. Em vez de crítica, um moralismo inflamado que rejeita tudo o que não se alinhe com um internacionalismo revolucionário de início do século XX, como se a realidade geopolítica do nosso tempo não fosse incomparavelmente mais complexa do que a Europa de 1915, ou seja, o que foi acordado na pequena vila suíça de Zimmerwald terá sido o mais adequado para o contexto da época, mas os contextos alteram-se e com eles as estratégias e os instrumentos.

Para Raquel Varela, O “Estado”, esse monstro que ela descreve, é sempre instrumento da dominação, nunca da coesão, nunca da proteção, nunca da soberania democrática. É uma leitura que pode seduzir pela forma, mas falha pela ausência de mundo. Eu também sou utópico, mas um passo de cada vez é o mais avisado.

Quando afirma desejar “a derrota da nossa nação pela vida do nosso povo”, a frase brilha enquanto retórica, mas treme enquanto política. A nação não é apenas uma invenção da burguesia, e mesmo que o tenha sido, a nação é também o lugar concreto onde se disputa trabalho, direitos, igualdade, recursos, futuro. A sua dissolução não liberta os trabalhadores, entrega-os a poderes mais opacos, menos controláveis, mais brutais.

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O PCP, que surge como alvo preferencial, não é apenas criticado a autora parece interessada em lhe retirar legitimidade. Tudo o que nele não corresponde ao modelo revolucionário pré estalinista é visto como desvio, rendição, cedência. Mas a história, da resistência antifascista ao papel social que desempenhou durante décadas, não cabe em duas linhas altivas de reprovação. E António Filipe, que não está acima da crítica, tampouco merece ser tratado como cúmplice de um militarismo que não partilha. António Filipe é um defensor da paz, mas a Raquel Varela necessitava de uma (auto)justificação, ninguém lha pediu, mas serviu-lhe para anunciar que não votaria em António Filipe.

É verdade que a esquerda portuguesa vive um tempo de esvaziamento eleitoral, mas não será com contributos como o da Raquel Varela que se conseguirá que a esquerda tenha a expressão eleitoral que já teve, influência social nunca a deixou de ter.

Raquel Varela fala e escreve com força, mas essa força corre o risco de se transformar apenas em gesto. E o gesto, sem enraizamento, sem programa, sem construção coletiva, não passa de impulso, um impulso com propósito, neste caso o propósito foi tentar descredibilizar o candidato António Filipe que apenas se referiu ao texto constitucional quando falou sobre defesa nacional. A este propósito, também os tenho, gostaria de saber o que pensa Raquel Varela sobre a luta do povo palestiniano na defesa da sua pátria.

A verdadeira alternativa à esquerda não se fará contra o Estado ou contra a nação, mas através deles.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 3 de dezembro de 2025


segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Malak Mattar - a abrir dezembro

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Malak Mattar, pintora palestiniana nascida em Gaza, transformou a sua arte num lugar de respiração num território onde o ar é constantemente roubado. A cada tela, a cada figura feminina que emerge com olhos grandes e luminosos, ela celebra a vida apesar do cerco, da ocupação colonial e do apartheid. O seu trabalho é um gesto de afirmação num mundo que insiste em negar a existência do seu povo. Na sua obra a resistência é tornada cor e os silêncios em gritos de denúncia. Nas suas pinturas há uma espécie de permanência obstinada, prova de que a identidade palestiniana não se apaga e que a vontade de um povo não se extingue nas ruínas da sua cidade natal.



As mulheres palestinianas sempre estiveram no centro desta resistência, não apenas como vítimas da violência colonial, mas como agentes da sua própria história. Elas sustentam comunidades, protegem memórias, educam os filhos para reconhecerem a injustiça e levantarem a cabeça. São presença nos protestos, nas cozinhas, nos hospitais de campanha, nas escolas improvisadas, nas casas que renascem após cada bombardeamento. Malak Mattar representa-as: firmes, dignas, inteiras, mesmo quando o mundo as quer quebradas.

a colheita da azeitona - Malak Mattar

E talvez seja esta a força maior da sua obra, ou seja, mostrar que, na Palestina, a cultura é mais do que herança, é continuidade. As mulheres transmitem canções, sabores, gestos, histórias de raízes profundas, projetam no futuro aquilo que a ocupação tenta arrancar ao presente. A pintura de Malak Mattar prolonga esse fio antigo, levando-o para além das fronteiras impostas, declarando ao mundo que a identidade palestiniana resiste porque vive, e vive porque é passada de mão em mão, de mãe para filha. Na obra de Malak Mattar, a arte torna-se o gesto que preserva a herança cultural e, ao mesmo tempo, afirma a luta contra a ocupação colonial e o genocídio.


domingo, 30 de novembro de 2025

quando a mentira viral ataca a Escola Pública

Quando um boato se transforma num discurso político, o problema já não é apenas a mentira, é o efeito que ela produz num país cada vez mais exposto às simplificações tóxicas do TikTok e outras plataformas ditas sociais.

Rita Matias divulgou um vídeo nas redes sociais em que afirma ter recebido, de um encarregado de educação, a informação de que a Escola Secundária Gil Vicente teria proibido que a “Associação de Estudantes organizasse uma festa de Natal” e que proibiria “qualquer referência à tradição cristã”.

No vídeo, caracterizou a alegada decisão como “um insulto para a nossa sociedade ocidental, para a forma como nos organizamos, para as nossas tradições, para a nossa história” e enquadrou o episódio num cenário mais amplo de “autofagia” cultural.

A deputada associou esse suposto caso a movimentos na Europa, referindo protestos na Alemanha e “atentados que tiram a vida a europeus”, usando essas referências difusas para sustentar a ideia de que “quem chega de fora não quer celebrar o Natal”.

Porém, a direção da Escola Secundária Gil Vicente, através de um comunicado assinado pela Diretora e pela Associação de Estudantes, desmentiu totalmente a história e garantiu que a informação difundida por Rita Matias “é falsa”. Não existiu qualquer proibição da festa de Natal, nem qualquer restrição a celebrações próprias da época.

A escola afirmou ainda que “mantém o compromisso com a seriedade e o respeito pela comunidade” e desejou “celebrações felizes, com Amor e Verdade”.

A imprensa e os meios de verificação classificaram a alegação como falsa: não existe qualquer evidência de que a escola tenha proibido uma festa ou referências ao Natal, nem que a Associação de Estudantes tenha alguma vez recebido uma ordem nesse sentido. O caso assenta numa denúncia não documentada de um encarregado de educação cujo nome, circunstâncias e alegados factos nunca foram tornados públicos.

A polémica insere-se, contudo, num contexto mais amplo de discursos políticos que procuram associar a diversidade cultural e religiosa a uma ameaça às tradições nacionais. Mais uma vez, a deputada utiliza um rumor, um "ouvi dizer", para pôr em causa a convivência democrática e a diversidade cultural do país, características históricas da sociedade portuguesa, não invenções recentes.

A condição de deputada confere-lhe um papel público com consequências, e não é irrelevante que, pela repetição de insinuações, polarize e alimente a desconfiança, com o único propósito de reforçar a influência política da sua organização partidária, instrumentalizando o medo identitário.

Há, neste caso e noutros, um problema de responsabilidade pública: quando uma figura eleita mobiliza a mentira como instrumento político, tal atuação deve ser escrutinada e pode, como já aconteceu, ser passível de queixa-crime.

Outra questão relevante é a credibilidade da própria autora das declarações. As alegações não passaram no crivo mínimo da verificação factual, e o que está em causa é a utilização frequente de narrativas com forte carga emocional, independentemente da verdade, que penetram com facilidade numa população que, durante anos, foi alvo de um processo de empobrecimento cívico, cultural e informacional.

Os mitos construídos sobre a mentira, sobretudo quando apelam a afetos, receios e símbolos identitários, exigem um escrutínio firme. E para que esse escrutínio seja possível, é necessário conhecimento. Não se deixem desarmar.


Escola Secundária Gil Vicente: um exemplo de boas práticas

Convém, por isso, recordar quem é realmente a Escola Secundária Gil Vicente — que tem sido notícia nos últimos anos pelas melhores razões.

Situada numa das zonas mais diversas de Lisboa, a escola acolhe alunos de mais de 60 nacionalidades, convivendo diariamente numa pluralidade linguística e cultural que, longe de ser um obstáculo, se constitui como uma riqueza. A direção e o corpo docente têm construído práticas consistentes de inclusão, como as turmas de Português Língua de Acolhimento, fundamentais para a integração de estudantes recém-chegados que ainda não dominam a língua.

A escola tornou-se também referência por projetos que articulam educação, comunidade e sustentabilidade. Um dos mais significativos foi a plantação de centenas de árvores e a criação de uma horta pedagógica, em parceria com associações locais, envolvendo jovens de várias origens e capacidades. Estes projetos transformam o espaço escolar: de recinto fechado para transmissões de conteúdos, num território comum, vivido, cuidado, cultivado.

Importa ainda destacar a abertura do espaço escolar à comunidade. A escola tem participado em iniciativas municipais que permitem a utilização dos recreios e espaços escolares como locais de encontro para crianças e famílias fora do horário letivo, reforçando a sua vocação de espaço público ao serviço da sociedade onde está inserida. 

Tudo isto demonstra que a Escola Gil Vicente é, na prática, um exemplo de convivência multicultural bem-sucedida, de inovação pedagógica, de responsabilidade cívica e de práticas interculturais.

Por isso mesmo, quando se mobiliza uma mentira para atacar esta escola, ataca-se também o valor mais profundo da educação pública: a capacidade de construir comunidade, de acolher a diversidade e de formar cidadãos livres.

Em Portugal a Gil Vicente é apenas um de muitos exemplos da Escola Pública de Qualidade e para todos.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de novembro de 2025


quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Abril e não novembro

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As tentativas de rescrição da história não são um fenómeno da atualidade, nem derivam diretamente das infindas possibilidades da Inteligência Artificial ou, da replicação de opinião não sustentada, nas redes sociais.

O cinema, a televisão e, ainda antes, a comunicação social escrita, foram (e são) suportes para a criação de narrativas que, ancoradas, em acontecimentos reais nem sempre correspondem à realidade factual.

Recentemente acabei de ler do livro “A Linguagem Secreta do Cinema”, de Jean-Claude Carrière, um reconhecido argumentista e cinéfilo francês. A leitura, da qual darei mais destaque num outro suporte, foi enriquecedora pois trata-se de uma personalidade que não só domina a “linguagem” como conheceu por dentro a indústria cinematográfica. Não sendo uma novidade esta experiência e as aprendizagens que daí decorreram permitiram-me consolidar uma ideia sobre a qual já tinha opinião formada e que hoje partilho com os leitores da Sala de Espera: O cinema muitas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Algumas produtoras especializaram-se nessa arte subtil da indução narrativa criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. 

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A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica é, bastas vezes, mais do que garantir sucesso de bilheteira, vender uma visão do mundo muitas vezes distante da verdade histórica. Algumas das narrativas hollywoodescas estão aí para o provar, não só, mas também.   

Como certamente concluíram não se trata de nenhuma novidade e muito menos de uma descoberta assombrosa. Os leitores que por aqui estão terão consciência disto, mesmo que como eu, não tenham experiência ou conhecimentos aprofundados sobre a sétima arte. As narrativas cinematográficas moldam estados de perceção que nos preparam para aceitar a ficção como se fosse realidade. 


Em Portugal temos uma variedade de construções míticas que foram fazendo fé como realidades, mas que não passam disso mesmo: efabulações. A própria fundamentação da criação do reino de Portugal está ligada a uma dessas lendas, o “Milagre de Ourique”.

Hoje (ontem) o calendário diz-nos que é o vigésimo quinto dia do mês de novembro e alguns cidadãos procuram celebrar o cinquentenário desta data como um acontecimento digno de registo na história recente do nosso país, chegando mesmo a conferir mais importância a este dia do que ao dia fundacional da democracia portuguesa: o dia 25 de Abril de 1974.

Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário:  i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.

Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram.

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O 25 de novembro de 1975 tem, contudo, um cariz contrarrevolucionário, no sentido preciso com que o termo é usado na historiografia, isto é, de travar o aprofundamento da revolução. Os protagonistas militares pertenciam a um grupo, dito, de moderados cujo propósito era a liquidação do papel do MFA, e conseguiram-no com o afastamento e prisão de muitos dos oficiais do MFA. O movimento revolucionário sofreu um duro golpe, mas estas alterações não foram suficientes para travar o ímpeto transformador que se tinha impregnado no povo e nos trabalhadores portugueses o que garantiu que as conquistas de Abril, como já referi, fossem consagradas na CRP.

Se o episódio de 25 de novembro de 1975 travou setores revolucionários que queriam aprofundar o processo socialista, também é verdade que não inverteu de imediato o rumo iniciado a 25 de Abril. Pelo contrário, a força popular acumulada ao longo de mais de um ano de mobilização é o que explica que as conquistas sociais não tenham sido desmanteladas pelas autoridades civis ou militares que emergiram posteriormente.

As primeiras eleições legislativas, realizadas em 25 de abril de 1976, foram o momento de “institucionalizar” a democracia representativa. A correlação de forças foi clara: o PS venceu, seguido muito de perto pelo PPD/PSD, com o PCP a afirmar-se como terceira força e a extrema-direita a não ter expressão eleitoral. A direita, organizada sobretudo no CDS, teve uma fraca representação institucional. Este quadro não corresponde à narrativa de uma alegada vitória da direita em novembro de 1975. Não existe qualquer evidência histórica que sustente essa leitura. Se alguém venceu politicamente foram as forças que defendiam o socialismo democrático, a economia mista, os direitos laborais e sociais conquistados desde 1974.

Pouco depois, em 27 de junho de 1976, tiveram lugar as primeiras eleições presidenciais. A vitória do general Ramalho Eanes, apoiado sobretudo pelo PS e pelo CDS, mas com uma imagem popular de uma personalidade equilibrada. Eanes não sendo um revolucionário, não era um saudosista dos tempos do Estado Novo.

A partir daqui, porém, começa um processo que importa compreender com detalhe. A Constituição de 1976 consagra princípios que resultam diretamente do ímpeto transformador do povo português em 1974 e 1975: o caminho para o socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações, a reforma agrária, os direitos laborais avançados, o papel das comissões de trabalhadores, o sistema de saúde universal, a educação como direito e dever fundamental. Mas a partir do início dos anos 1980, com a revisão constitucional de 1982 e sobretudo com a de 1989, inicia-se o longo processo de erosão das conquistas de Abril.

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Este desmantelamento não foi súbito: foi gradual, negociado externamente e legitimado institucionalmente pelos órgãos de soberania nacional. Começou pela retirada do poder político do MFA, que ainda tinha presença constitucional, continuou com a eliminação do Conselho da Revolução, prosseguiu com a liberalização económica e culminou nas privatizações em massa que inverteram a lógica da economia mista. As revisões constitucionais transformaram a CRP de um texto orgânico, coerente e ousado, numa peça adaptada aos ventos ideológicos dominantes no espaço europeu e atlântico. É a partir daí que Portugal entra, definitivamente, na rota neoliberal que marcou as décadas seguintes. Rota essa que hoje nos coloca, de novo, perante desigualdades, precariedade e fragilização dos serviços públicos.

E é por isso que revisitar esta data exige rigor e memória crítica. Nenhuma narrativa épica, nenhum revisionismo de ocasião e nenhuma simplificação jornalística consegue apagar o essencial: Portugal tornou-se uma democracia graças ao 25 de Abril; consolidou-a graças à participação popular e às conquistas sociais de 1974–1976, e, só anos mais tarde, muito depois dos acontecimentos de novembro de 1975, se iniciou o processo político que progressivamente amputou da CRP e da vida dos portugueses algumas das conquistas de Abril. A História é muito mais complexa do que os enredos fabricados. E quando a narrativa se sobrepõe ao real, o melhor antídoto continua a ser o mais simples: fatos, memória e espírito crítico.

Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 26 de novembro de 1025

terça-feira, 25 de novembro de 2025

o povo ficou em casa

do arquivo pessoal - Aníbal C. Pires



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.










(... ) Juízos e opiniões há muitos, mas, tal como o algodão, os factos não enganam. E, vou apenas recorrer a alguns que demonstram, de forma clara, que os acontecimentos de há cinquenta anos não sustentam as narrativas da direita, nem da extrema-direita, ou seja, dos saudosistas de um regime torcionário:  i) não houve alterações na composição do VI Governo Provisório liderado pelo Almirante Pinheiro de Azevedo. O Governo do dia 24 de novembro manteve-se em funções no dia 26; ii) o Presidente da República não foi deposto; a Assembleia Constituinte continuou em funcionamento e aprovou a CRP no dia 2 de Abril de 1976; iii) a CRP consagrou as conquistas da Revolução de Abril de 1974; iv) a CRP foi aprovada com uma larga maioria, mas poderia ter sido apenas aprovada por maioria simples. Não houve unanimidade devido ao voto contra do então CDS.

Os acontecimentos do dia 25 de novembro de 1975 são, no essencial, de ordem militar não tendo havido, ao contrário do dia 25 de Abril de 1974 mobilização popular. Os cidadãos ficaram expetantes e não participaram. Foi um dia tristonho que contrastou com a alegria e aura de felicidade que pairou sobre os portugueses no dia 25 de Abril de 1974 e nos dias que se lhe seguiram. (...)


a gramática do cinema

Ler A Linguagem Secreta do Cinema, de Jean-Claude Carrière, foi como se tivesse entrado numa oficina silenciosa onde as imagens induzem estados de alma, mas também nos devem obrigar a pensar, descodificando o que vemos, para isso é necessário conhecer a gramática da sétima arte. Carrière desmonta o mecanismo do olhar cinematográfico com a elegância de quem conhece cada engrenagem e cada sombra. Mostra-nos que o cinema não é apenas uma arte do visível. O cinema é, sobretudo, uma forma de organizar o mundo, de sugerir sentidos, de impor ritmos ao tempo e à memória. Há, no modo como um plano se aproxima ou se afasta, uma gramática de sedução e de poder, uma forma de orientar a atenção e de moldar a interpretação.

Mas Carrière lembra-nos também, mesmo quando o diz nas entrelinhas, que todo o cinema conta histórias e que toda a história contada implica escolhas. E é aqui que a reflexão ganha outra densidade. Porque o cinema, especialmente o que domina o mercado global, nem sempre se limita a narrar. O cinema não poucas vezes reescreve, simplifica, higieniza ou romantiza acontecimentos e processos sociais que foram tudo menos limpos. Hollywood, não toda, mas uma parte significativa, especializou-se nessa arte subtil da indução narrativa, criando versões épicas de conflitos, apagando contradições, transformando derrotas em vitórias morais ou convertendo dramas coloniais em aventuras redentoras. A forma como a câmara se posiciona, o herói que escolhe, o inimigo que fabrica, tudo isto rende mais do que a bilheteira, rende uma visão distorcida do mundo.

Por isso este livro é tão pertinente. Ele recorda-nos que o cinema é uma linguagem com força suficiente para se infiltrar na imaginação coletiva e, a partir daí, influenciar a perceção do passado e a leitura do presente. A cada plano montado, uma hipótese de verdade é sugerida, a cada elipse, uma zona de sombra é criada. Carrière não nos oferece receitas, mas um alerta: compreender o cinema é aprender a desconfiar da facilidade das imagens, da doçura com que nos oferecem certezas. É um convite a ver com mais atenção, e, talvez, a resistir melhor à sedução das narrativas que não querem apenas entreter, mas moldar o que pensamos ser real e, assim, criar realidades paralelas.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 25 de novembro de 2025


domingo, 16 de novembro de 2025

Ornamento de cabeça, ou poesia.

foto de Madalena Pires
Há livros que nascem como objetos culturais; outros, como testemunhos vivos. O Lenço de Cabeça, de José Marcelino Kongo, pertence a essa segunda linhagem, a dos livros que guardam memória, identidade e dignidade numa página de papel e num gesto de olhar. Editado pela Letras Lavadas Edições, este trabalho fotográfico e poético é uma homenagem às mulheres angolanas e ao simbolismo que carregam, visível no lenço que tantas vezes reveste a cabeça como coroa, escudo, linguagem ou território afetivo. E não…  não é um simples ornamento; é um mapa íntimo da história e da resistência no feminino.

José Marcelino Kongo vive em Portugal há meio século, exatamente o mesmo tempo que dura a independência de Angola, celebrada a 11 de novembro. Este paralelismo não é mero acaso temporal, há uma afinidade biográfica, cultural e emocional que o atravessa.

Radicado nos Açores, o autor construiu o seu percurso académico como investigador na área da Biotecnologia, doutorado pela Universidade Católica Portuguesa. Mas o rigor científico nunca anulou o olhar sensível, poético e atento às raízes. O Lenço de Cabeça é prova disso: apresenta-se como documento visual e poético que ecoa como uma declaração de pertença.

foto de Madalena Pires

Conheço o Marcelino desde o início deste século e guardo, com particular estima, o momento em que li, pela primeira vez um poema em público, durante a apresentação do seu livro Notícias da Lua. Talvez por isso, cada novo trabalho seu me soe sempre a reencontro. Reencontro com a palavra, com a memória e com o gesto artístico que nasce do coração e regressa ao povo.

Celebrar cinquenta anos de independência é também resgatar o rosto feminino dessa liberdade: mães, filhas, avós, estudantes, vendedoras, camponesas, artistas, combatentes, tantas vezes invisibilizadas pela história, mas imprescindíveis à humanidade.

Este livro não é apenas sobre um acessório feminino: é sobre as mulheres angolanas, os rostos que retrata, os corpos que o sustentam e a vida que, apesar de tantas cicatrizes, continua a erguer-se, com dignidade, beleza e futuro.



Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 16 de novembro de 2025


sexta-feira, 14 de novembro de 2025

primavera no Outono

foto de Aníbal C. Pires
Na Praia da Vitória, quando a luz é mais suave e a brisa traz o perfume salgado do Atlântico, é tempo de livros, de vozes e de encontros. É tempo de um outono que floresce, é tempo de primavera no outono, é tempo do “Outono Vivo”.

Ao longo das suas vinte edições, este festival da cultura e do livro tem sido mais, muito mais do que uma feira do livro, como por vezes é referenciado, mas é-o também. O “Outono Vivo” é uma celebração da cultura que resiste, uma festa das palavras que unem e alimentam, uma pausa luminosa no ritmo fragmentado do quotidiano. Quem entra no edifício que alberga a Academia da Juventude e das Artes da ilha Terceira sente o murmúrio de um país possível e desejável: leitores curiosos, crianças com o olhar maravilhado, autores disponíveis para conversar, professores, leitores ávidos de novidades, livreiros, editores e voluntários que, juntos, dão corpo a um milagre de continuidade e de renovação a cada ano que passa.

Num tempo em que tantas iniciativas culturais minguam ou desaparecem, ver o “Outono Vivo” chegar à sua vigésima edição é motivo de celebração e de reconhecimento. É celebrar uma política cultural coerente e reconhecer a importância deste evento no contexto da ilha Terceira, mas também dos Açores e do país. E é, também, celebrar, reconhecer e valorizar uma comunidade que acredita que a cultura e a fruição cultural são indissociáveis de qualquer projeto de desenvolvimento digno desse nome.

Se o “Outono Vivo”, só por si não resolve os problemas demográficos, sociais e económicos da cidade e do concelho da Praia da Vitória, e esta será (é) uma verdade insofismável, mas a realização deste evento cultural contribui, por certo, para que se encontrem os caminhos e se construam soluções para que a Praia da Vitória possa revitalizar o seu tecido social e económico.

Estive, uma vez mais, no “Outono Vivo” e ouvi expressões como esta: “vou-me embora com vontade de ficar”; e eu direi que esta confissão: não sendo tudo, é muito. Esta partilha carrega sentimentos de pertença, de saudade e de emoção, o que diz do grande e profundo significado desta realização cultural e da sensação que perpassa em muitos dos visitantes que aqui chegam de outras ilhas, mas também do continente português. E direi, ainda que: a cultura é, sempre foi, uma forma de resistência contra as inevitabilidades anunciadas, mas também de partilha e de construção de pontes para outros futuros.

A feira do livro da Praia da Vitória é, provavelmente, a terceira maior do país, depois de Lisboa e do Porto. Refiro isto, pois nos Açores, tem um imenso peso simbólico. Expressa que, mesmo longe dos grandes centros, é possível erguer um espaço de encontro e de partilha que coloca a cultura no centro da vida pública local, mas também na agenda cultural do país.

foto de Aníbal C. Pires
O “Outono Vivo” é, por isso, um gesto político no melhor sentido da palavra. Num mundo cada vez mais dominado pela lógica do consumo rápido e de entretenimento sem outro propósito que não seja distrair. Reunir centenas, ou mesmo milhares, de pessoas em torno dos livros é afirmar que a cultura é um bem comum, não um luxo. É afirmar que ler continua a ser um ato de liberdade e de resistência, talvez seja mesmo o mais silencioso, o mais profundo e consistente. Como dizia José Marti (século XIX): “ser culto é a única forma de ser livre”. E eu direi que: o conhecimento e a educação são essenciais para o exercício da liberdade individual e coletiva. A educação e o conhecimento libertam o pensamento de preconceitos e dependências, transformando-nos em cidadãos capacitados para tomar decisões autónomas e com uma compreensão profunda da realidade que nos rodeia 


A Câmara Municipal da Praia da Vitória, os trabalhadores da autarquia, a Cooperativa Praia Cultural, as organizações e as personalidades que se envolvem na realização deste evento merecem, por isso, um justo reconhecimento público, por manterem, ao longo de duas décadas, uma aposta séria e persistente na cultura. Porque entendem que o investimento na cultura, na memória e na criação de espaços onde se fundem diferentes iniciativas culturais que atraem e envolvem os cidadãos com diversos gostos e interesses é o que mais dignifica uma comunidade.

Mas, também, porque o fazem com abertura, convidando autores de diferentes geografias literárias, promovendo o diálogo entre gerações e dando espaço às vozes locais, às escolas, às associações e aos leitores anónimos que fazem deste festival uma casa partilhada. 

Quem participa no Outono Vivo sabe que aqui o livro volta a ter corpo e respiração. As palavras deixam de ser produtos e tornam-se pontes. A cultura deixa de ser adorno e volta a ser substância e resistência.

E, entre conversas, leituras e lançamentos, o que se revela é uma outra geografia: a de uma cidade que se reconhece como parte de um arquipélago cultural, pequeno em tamanho, mas imenso na conceção, produção, promoção e fruição de bens culturais.

Talvez o mais belo no “Outono Vivo” seja a sua dimensão silenciosa: a de semear. Semear o gosto pela leitura nas crianças que ali descobrem o seu primeiro livro. Semear o respeito pela palavra nas conversas que aproximam autores e leitores. Semear o sentido de comunidade num tempo em que tudo parece fragmentar-se.

O futuro da cultura não depende apenas das megas produções, nem de instituições centralizadas que tudo querem dominar, mas de gestos como este: contínuos, enraizados, pacientes. O futuro da cultura depende da capacidade de inovar e manter viva a chama de cada edição, mesmo quando os tempos não são favoráveis.

foto de Aníbal C. Pires
O “Outono Vivo” é como uma sementeira do tempo outonal. E a cada ano nasce e renova-se, prova que é possível criar e manter um lugar para a partilha e para a cultura num território periférico, e lembra-nos que a periferia é também um ponto de vista, talvez um lugar de onde melhor se vê o mundo, ainda que: 

(…) o céu e o mar/num concerto de silêncios/confundem-se no horizonte/não há linha/só uma promessa de infinito (…); 

Ou talvez por isso, pela promessa de infinito, que melhor se vislumbra e entende o mundo policêntrico a partir das periferias.

Num tempo em que o ruído mediático ameaça a reflexão e o imediato sufoca o essencial, o “Outono Vivo” devolve-nos a palavra e uma réstia de esperança num mundo diferente e melhor.

foto de Júlia Dinis

E, com ela, essa forma discreta de esperança que consiste em saber que um livro, apenas um, pode constituir-se como o instrumento e suporte para uma vida plena e de libertação.

Talvez seja isso que o “Outono Vivo” nos ensina, ano após ano: que a primavera pode acontecer em qualquer estação, desde que haja quem plante. Que o renascimento não vem apenas da natureza, mas da vontade das comunidades que persistem em criar, pensar, agir e partilhar.

Na Praia da Vitória, a cultura tem raízes fundas e floresce no tempo certo, o tempo do encontro e da partilha. O que aqui se constrói é mais do que um evento cultural: é uma pedagogia da esperança, um exercício de cidadania e de pertença. Porque a cultura, quando vivida coletivamente, é a forma mais luminosa da liberdade. Não menos importante é o acolhimento afetuoso com que a organização brinda os seus convidados, para alguns pode ser de somenos importância, para mim que sou um homem dos afetos é, também, uma das virtualidades deste evento cultural. 

Tudo renasce na primavera, mesmo que esta aconteça no outono. E, talvez por isso, quando as portas do “Outono Vivo” se fecham, o que fica é esse rumor de primavera, discreto, persistente, que nos recorda que nenhum outono é definitivo enquanto houver livros, leitores e a vontade indómita de fazer acontecer. 

Ponta Delgada, 11 de novembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 12 de novembro de 2025

celebrar a cultura


Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Ao longo das suas vinte edições, este festival da cultura e do livro tem sido mais, muito mais do que uma feira do livro, como por vezes é referenciado, mas é-o também. O “Outono Vivo” é uma celebração da cultura que resiste, uma festa das palavras que unem e alimentam, uma pausa luminosa no ritmo fragmentado do quotidiano. Quem entra no edifício que alberga a Academia da Juventude e das Artes da ilha Terceira sente o murmúrio de um país possível e desejável: leitores curiosos, crianças com o olhar maravilhado, autores disponíveis para conversar, professores, leitores ávidos de novidades, livreiros, editores e voluntários que, juntos, dão corpo a um milagre de continuidade e de renovação a cada ano que passa.

Num tempo em que tantas iniciativas culturais minguam ou desaparecem, ver o “Outono Vivo” chegar à sua vigésima edição é motivo de celebração e de reconhecimento. É celebrar uma política cultural coerente e reconhecer a importância deste evento no contexto da ilha Terceira, mas também dos Açores e do país. E é, também, celebrar, reconhecer e valorizar uma comunidade que acredita que a cultura e a fruição cultural são indissociáveis de qualquer projeto de desenvolvimento digno desse nome.

Se o “Outono Vivo”, só por si não resolve os problemas demográficos, sociais e económicos da cidade e do concelho da Praia da Vitória, e esta será (é) uma verdade insofismável, mas a realização deste evento cultural contribui, por certo, para que se encontrem os caminhos e se construam soluções para que a Praia da Vitória possa revitalizar o seu tecido social e económico. (...)


quarta-feira, 5 de novembro de 2025

entrevista ao Diário Insular - 4 de novembro de 2025


Aqui fica publicado o texto da entrevista que me foi feita, pela jornalista Helena Fagundes, para o Diário Insular.

Esta conversa com a jornalista Helena Fagundes aconteceu na sequência da apresentação, na XX edição do Outono Vivo, do meu livro "Entre Pausas - crónicas do Diário Insular (2022-2024)



1. Como foram nascendo, Entre Pausas, estas crónicas?

Estas e outras crónicas nascem ao ritmo da vida e do tempo, das inquietações, mas também pausas que o quotidiano nos impõe. 

Este livro reúne as crónicas publicadas no Diário Insular entre janeiro de 2022 e dezembro de 2024, a ordem é cronológica e inclui todos os textos publicados no intervalo de tempo referido, o que significa que não houve uma seleção, apenas uma revisão.

Os textos ora publicados foram surgindo, à semelhança de outros, de um olhar sobre o que nos cerca: o país, a região, o mundo, mas também o que nos habita, as dúvidas, as contradições, a memória. “Entre Pausas” é, por isso, um título que se explica por si, é no intervalo entre um acontecimento e outro, entre a notícia, o esquecimento, o nevoeiro informacional e as narrativas oficiais cujo propósito é a manipulação e o domínio, que procuro compreender o que realmente perdura e se aproxima mais da realidade. Estas crónicas foram escritas para o Diário Insular, o que lhes confere uma dimensão de diálogo com quem, nos Açores, lê e vive os temas que nelas se abordam.

Este livro nasce do retorno às páginas da comunicação social escrita, após um interregno de dezembro de 2019 a janeiro de 2022, e que se vai manter por mais algum tempo, não sei quanto. Será pelo tempo que o tempo me conceder de discernimento e vontade de continuar a partilhar opinião e promover a reflexão.

As crónicas reunidas no livro “Entre Pausas”, são um olhar, o meu olhar, sobre alguns dos acontecimentos que marcaram esse período, deixando sempre espaço para os leitores poderem aprofundar a reflexão sobre os assuntos abordados, mas não me coibindo de expressar a minha opinião. A proposta de leitura deste livro é, assim, como um convite para os leitores percorram estes anos de análise e pensamento crítico, num registo que considero atento, intemporal e tematicamente diverso.



2. Como assistiu ao evoluir da região, e do país, nestes anos?

Com muita preocupação, mas sem perder a esperança de que este ciclo de retrocessos tenha o seu fim em data próxima.

As alterações que se verificaram nos últimos anos intensificaram a concretização de agendas políticas, sociais e económicas que produzem a exclusão social e a pobreza, aliás bem visível ao alcance do nosso olhar. Diria que a revolução científica e técnica que se destinaria a melhorar as condições de trabalho e o bem-estar das populações, afastou-se do que seria esperado e serve, apenas, para concentrar a riqueza e aumentar as desigualdades sociais, culturais e económicas.

Os retrocessos civilizacionais que se verificaram e que estão na origem da degradação das condições de vida e trabalho, não sendo o único motivo, contribuíram para que os populismos de matriz neofascista fossem ganhando, também nos Açores, expressão e apoio eleitoral. A normalização destas forças políticas promovida pela comunicação social, mas também pelos partidos que, nas lutas de poder, se têm servido do seu apoio tácito contribuíram, igualmente, para a ascensão de organizações políticas que promovem um ideário que não se conforma aos princípios do Estado de Direito.

A degradação dos serviços públicos, opção e projeto político de quem nos governa e não uma qualquer inevitabilidade ou fatalidade, é preocupante, como preocupante é a onda privatizadora de empresas públicas. Os governos mais parecem uma central de vendas, por sinal pouco eficazes a promover e a valorizar o produto que querem transacionar, o que transforma estes processos em crimes políticos e económicos.

Mas se quem exerce o poder executivo na Região demonstra a cada dia a sua inépcia, não será menos verdade que a oposição, corporizada no PS, é um verdadeiro deserto de ideias e de projetos políticos, não diria alternativos, mas ao menos mobilizadores para garantir alternância. O que separa o PSD do PS é apenas o D que um tem no acrónimo e o outro não.

A esperança reside no ganho de alguma consciência crítica que se vai afirmando num tempo de muito desencanto e ruído informacional potenciado pelas redes sociais.


3. Há um verdadeiro debate sobre liberdade de expressão e os limites a partir dos quais a democracia começa a ficar em risco. Onde se situa nesta discussão?

A liberdade de expressão é um pilar essencial da democracia, mas não pode ser confundida com o direito à ofensa ou à manipulação. Defendo a liberdade de expressão, luto pelo direito à liberdade de expressão. Mas não podemos confundir liberdade de expressão com opinião avulsa, sem sustentação em dados e descontextualizada. A expressão da opinião tem de ter uma base informada, de conhecimento e de ética. Tem de ter consciência do seu impacto. O risco, hoje, é a banalização do discurso de ódio: o excesso de ruído, a mentira fabricada pela difusão de notícias falsas (fake news), o rancor que se disfarça de opinião. A democracia começa a ficar em risco quando o espaço público é tomado por quem confunde liberdade com impunidade. Defender a liberdade é, também, defender a verdade, o debate sério e o respeito pelo outro, diferente mas de igual dignidade.



4. Que assuntos deviam estar nos jornais e nos artigos de opinião, mas teimam em ser esquecidos, sobretudo nos Açores?

Talvez aqueles que não fazem manchetes apelativas, mas definem o futuro: o despovoamento de algumas das nossas ilhas, mas também de algumas das nossas cidades, o envelhecimento da população, a pobreza envergonhada que cresce nos interstícios da estatística. Falta-nos falar mais de quem trabalha, e das condições em que trabalha, da precariedade e dos baixos rendimentos que contribuem para que se empobreça a trabalhar, de quem parte e de quem fica, mas também de quem nos procura para aqui viver, trabalhar e contribuir para a sustentabilidade das finanças públicas e da segurança social. Falta discutir a sustentabilidade e a coesão social, territorial, cultural e económica, ou seja, a sustentabilidade real, não a dos discursos e circunstância, mas a das pessoas e das comunidades. E falta, sobretudo, tempo. Tempo para ouvir, para compreender, para escrever com profundidade num espaço mediático recheado pelo imediatismo, que sendo uma caraterística da simplificação é sempre redutor, superficial e parcelar, o que a prazo se pode tornar nefasto.


5. Por onde caminha hoje, política e socialmente, a Região?

Não quero parecer derrotista, até por ser um otimista, mas direi que os caminhos que estamos a percorrer não agoiram nada de bom. Nenhum dos seculares problemas estruturais está, em definitivo, resolvido e podemos acrescentar alguns que decorrem da má governação regional, como seja, uma questão há qual os cidadãos, legitimamente, preocupados com garantir que dia após dia há pão na mesa para os seus filhos, pouco ou nada preocupa, mas que nos devia inquietar a todos e, estou a referir-me ao desequilíbrio das contas públicas e ao eventual colapso financeiro da Região com a subsequente necessidade de uma intervenção financeira externa, com tudo o que isso acarreta de perda de autonomia. Autonomia já fortemente cerceada pela União Europeia, há muito que não é Lisboa. O centro decisório deslocou-se para Leste e ficou ainda mais distante e, quanto a isto não há novas tecnologias que nos valham.

Continuamos a ser uma região com uma elevada taxa de pobreza, com uma elevada iliteracia funcional, com elevada precariedade laboral e baixos rendimentos do trabalho, abandono e insucesso escolar elevado, com grandes assimetrias no desenvolvimento.

A economia regional continua a insistir na monocultura, agora o Turismo, o que nos torna dependentes e muito permeáveis a contextos externos que não podemos controlar. Todos nos lembramos do período de confinamento em 2020 e dos tempos que se lhe seguiram.

Diria que este Governo regional, reconhecendo-lhe legitimidade democrática, é uma manta de retalhos e de capelinhas, o que o transforma, não por isso, mas também por isso, no pior governo da história da Autonomia Constitucional. Sem grande esforço podemos encontrar nos governos do PSD, presididos por Mota Amaral, aspetos positivos na governação, o mesmo se verifica com os governos do PS, quer de Carlos César, quer de Vasco Cordeiro, o mesmo não se apura com os governos de José Manuel Bolieiro. Sim, eu sei. As tarifas aéreas reduzidas nas viagens interilhas, sim é verdade, mas há custa do transporte marítimo sazonal que, não sendo a melhor solução, permitia uma mobilidade que o transporte aéreo só por si não assegura numa região arquipelágica como é a nossa.

A política regional vive um tempo de incerteza sobre a qual pendem alguns perigos, poder-se-á dizer que, em parte, é um reflexo do que se passa no país e na União Europeia, mas a dispersão partidária que suporta o atual Governo regional e a crescente desconfiança dos cidadãos são alguns dos sintomas de algo mais profundo, como seja, a crise de representação e de sentido coletivo. A coesão, principal desígnio autonómico, não está garantida e precisa de de ser cuidada, alimentada pela justiça social, pela educação e por políticas que coloquem as pessoas, e não os interesses privados (políticos e empresariais), no centro das decisões.


Esta entrevista foi também publicada em inglês, numa tradução de Diniz Borges, na revista "Filamentos" e que pode ser acedida aqui


sábado, 1 de novembro de 2025

Rafeef Ziadah - a abrir novembro

Há mulheres cuja voz nasce da ferida e floresce na resistência, na luta e na esperança. Rafeef Ziadah é uma delas. Filha da Palestina, carrega na respiração a poeira das casas destruídas e o perfume das oliveiras que teimam em renascer. Fala com a força de quem aprendeu que cada palavra pode ser um muro contra o esquecimento e contra a barbárie genocida, um abrigo para um povo exilado na sua própria terra.

Quando diz “Ensinamos a vida, senhor”, é a vida inteira que se levanta, as mães que choram, semeiam e lutam, as crianças que brincam entre ruínas, os homens que sonham com o regresso. A sua voz não suplica: afirma. Faz da dor matéria de beleza, do amor à terra uma forma de dignidade e de luta.

Em Rafeef Ziadah, a poesia é fronteira, travessia e luta. É ferida e bálsamo. A sua palavra tem a limpidez da água e o peso da memória. E enquanto houver uma mulher palestiniana a dizer o nome da sua terra com esta clareza, a Palestina continuará viva, não apenas no mapa, mas no coração de quem escuta - viva no coração da humanidade.

“Ensinamos a vida, senhor — ensinamos a vida, mesmo depois de nos terem roubado o último céu.”

Rafeef Ziadah


quarta-feira, 29 de outubro de 2025

periferias

foto de Aníbal C. Pires
Portugal é, sempre foi, uma fronteira. Uma fronteira entre o Atlântico e a Europa, entre o passado que o molda e o futuro que lhe prometem, entre o que produz e o que consome, entre o que sonha e o que lhe é permitido sonhar. A sua condição periférica, tantas vezes mascarada de europeísmo triunfante, tornou-se uma forma de dependência consentida, ou se preferirmos, uma espécie de modernidade tutelada pelos tecnocratas que pululam nos gabinetes das instâncias da União Europeia e onde, para satisfação de alguns, um ou outro português vai rotativamente assumindo cargos políticos e vergam a coluna aos interesses privados que dominam em Bruxelas e Washington.

A adesão ao projeto europeu foi celebrada, com pompa e circunstância, como o ingresso num clube de civilização e progresso, mas o que se consolidou foi uma modernização dependente. As decisões estratégicas, energia, indústria, agricultura, pescas e transportes, foram sendo transferidas para fora das fronteiras nacionais, e com elas a possibilidade de decidir o próprio destino. 

A soberania, palavra quase profana no vocabulário político contemporâneo, cedeu lugar à gestão de fundos, programas e indicadores que sustentam a ficção do desenvolvimento. Portugal deixou de produzir o essencial e passou a consumir o acessório, deixou de planear o futuro e passou a executor de programas europeus, com as finalidades desenhadas em centros de decisão longínquos da realidade nacional, seja ela a continental ou a insular.

Mas a periferia não é apenas geopolítica. Dentro do país há outro mapa, invisível e persistente, que desenha as fronteiras da exclusão, seja pelo litoral saturado e o interior desertificado, seja pela capital que concentra e centraliza, seja pelos territórios esquecidos. Bruxelas decide, Lisboa também, mas cada vez menos, o resto do território continental, em particular o interior e os arquipélagos atlânticos, aguardam de mão estendida pelas sobras.

foto de Aníbal C. Pires

A centralização, herança de um Estado que nunca soube acolher plenamente a sua diversidade, continua a reproduzir desigualdades e a produzir pobres e excluídos. Nos Açores, a condição ultraperiférica, produz efeitos ainda mais nefastos agravados por uma governação titubeante entre a satisfação de projetos políticos pessoais e a perpetuação no poder, pelo poder, mas, sobretudo, ineficaz e negligente na defesa deste território distante, disperso e, por este povo sofrido, e onde resistem alguns cidadãos que continuam a acreditar que a ultraperiferia não é uma fatalidade e que o desenvolvimento e a coesão social, económica e territorial não são uma miragem.

A condição periférica, seja do continente ou das regiões insulares, não é, como já foi referido uma fatalidade, talvez seja nessa condição de margem e à margem, que resida a possibilidade de um novo centro. A periferia, quando se reconhece e se assume, pode tornar-se lugar de criação e consciência. A distância permite ver o que o centro não vê, da escassez nasce a imaginação, da exclusão, a força de propor outros caminhos. É das margens que, por vezes, se redesenham futuros diferentes, assim saibamos recuperar a soberania e a autonomia para decidir por nós, no continente, nos Açores e na Madeira, assim nos saibamos libertar da tutela de governos agenciados ao consenso neoliberal (cortes na Educação e Saúde, venda de empresas públicas eficientes, perdas de direitos sociais, etc.), e, por no seu lugar um governo patriota capaz de romper com a uniformidade do modelo de desenvolvimento imposto por  agendas externas, num país tão diverso como o nosso. 

A aparente, ou real aceitação, deste consenso, que tem como resultado mais visível a votação maioritária em partidos agenciados ao neoliberalismo, tenham as siglas que tiverem, não resulta da livre discussão de ideias e dos debates públicos, mas advém de uma sólida unidade entre diversos setores do grande capital, das corporações mediáticas e das grandes empresas que dominam o mercado da tecnologia e inovação, como sejam a Apple, o Google, a Amazon, a Microsoft e a Meta.

Portugal precisa de reaprender a estar nas margens sem se resignar à periferia. Não se trata de reivindicar o centro, mas de o questionar. Um país que sempre viveu entre mundos, entre continentes, entre línguas, entre memórias, pode reencontrar aí a chave da sua soberania e autonomia. A verdadeira modernidade não é seguir o modelo dominante, mas criar a partir da diferença e, sobretudo, encontrar os caminhos da libertação do consenso neoliberal que, estando ainda bem implantado, começa a dar sinais de esgotamento.

Enquanto medir o seu sucesso pela aceitação dos outros seja pelo cumprimento dos Planos de Estabilidade e Crescimento, ou outros instrumentos que cerceiam a soberania, Portugal será apenas o que o centro permitir: uma periferia dócil, útil e descartável. Mas se entender que da margem se pode construir um mundo mais justo, mais atento às suas raízes e à sua escala humana, então talvez reencontre o sentido perdido entre tratados e promessas por cumprir. A periferia não é fatalidade, é consciência.

foto de Aníbal C. Pires
Consciência do lugar que ocupamos no mundo e da forma como o mundo nos ocupa. É o exercício de ver o centro com a distância necessária para o compreender, sem cobiça nem subserviência. É das margens que se percebe melhor o desenho do poder, os seus silêncios, as suas promessas e os seus enganos. E talvez Portugal precise, mais do que nunca, de reencontrar essa lucidez periférica que o fez voltar-se para o mar. E não, não há aqui nenhum saudosismo pelo passado colonial, nem qualquer estratégia neocolonial, bem pelo contrário, aquilo a que me refiro é à cooperação e estabelecimento de relações multilaterais com um mundo policêntrico e abandonar uma relação unidirecional com a União Europeia que nos espartilha.

Hoje navegar já não é conquistar os mares, é resistir à corrente. É recusar a lógica que transforma cidadãos em consumidores, comunidades em mercados e países em plataformas logísticas. É defender a dignidade do trabalho, a terra que alimenta, o mar que sustenta, a cultura que nos distingue e nos liga.

Portugal não precisa de competir com o centro, precisa de reencontrar o seu ritmo, o seu compasso humano, a sua escala justa, nem pequena demais para se humilhar, nem grande demais para se perder.

Nas regiões insulares atlânticas e no interior, nas aldeias que resistem e nas escolas que ainda ensinam a pensar, há sementes dessa consciência. Não é uma nostalgia rural nem um nacionalismo redutor e reacionário, é a compreensão de que o futuro não pode ser importado, tem de ser cultivado. O país que souber olhar para si, com a serenidade de quem conhece os seus limites e a coragem de quem recusa o servilismo, poderá transformar a sua margem em farol.

Talvez seja essa a nova centralidade portuguesa, talvez seja essa a nova centralidade madeirense e açoriana, a de um povo que, mesmo periférico, nunca perdeu o sentido da travessia. A de um país que não precisa de pedir licença para existir.

Porque a verdadeira soberania não se decreta, constrói-se, todos os dias, na forma como pensamos, produzimos e sonhamos.

E se um dia voltarmos a ser capazes de sonhar com a mesma audácia com que outrora partimos, talvez a periferia deixe de ser uma marca negativa e volte a ser o lugar onde o mundo se reinventa.

Ponta Delgada, 28 de outubro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 29 de outubro de 2025

terça-feira, 28 de outubro de 2025

na rota do consenso neoliberal

do arquivo pessoal


Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.






(...) A soberania, palavra quase profana no vocabulário político contemporâneo, cedeu lugar à gestão de fundos, programas e indicadores que sustentam a ficção do desenvolvimento. Portugal deixou de produzir o essencial e passou a consumir o acessório, deixou de planear o futuro e passou a executor de programas europeus, com as finalidades desenhadas em centros de decisão longínquos da realidade nacional, seja ela a continental ou a insular.

Mas a periferia não é apenas geopolítica. Dentro do país há outro mapa, invisível e persistente, que desenha as fronteiras da exclusão, seja pelo litoral saturado e o interior desertificado, seja pela capital que concentra e centraliza, seja pelos territórios esquecidos. Bruxelas decide, Lisboa também, mas cada vez menos, o resto do território continental, em particular o interior e os arquipélagos atlânticos, aguardam de mão estendida pelas sobras.

A centralização, herança de um Estado que nunca soube acolher plenamente a sua diversidade, continua a reproduzir desigualdades e a produzir pobres e excluídos. Nos Açores, a condição ultraperiférica, produz efeitos ainda mais nefastos agravados por uma governação titubeante entre a satisfação de projetos políticos pessoais e a perpetuação no poder, pelo poder, mas, sobretudo, ineficaz e negligente na defesa deste território distante, disperso e, por este povo sofrido, e onde resistem alguns cidadãos que continuam a acreditar que a ultraperiferia não é uma fatalidade e que o desenvolvimento e a coesão social, económica e territorial não são uma miragem. (...)


sábado, 25 de outubro de 2025

Laborinho Lúcio (1941-2025)

imagem retirada da internet
Com pesar recebi a notícia do falecimento do Dr. Álvaro Laborinho Lúcio. Tive a oportunidade de o conhecer durante o período em que exerceu funções como Ministro da República para os Açores, enquanto eu desempenhava as de Coordenador da Organização da Região Autónoma dos Açores do PCP. Desde então, a nossa relação pautou-se sempre por grande cordialidade e respeito mútuo.

Mesmo depois de termos deixado as funções que nos aproximaram, cruzámo-nos em várias ocasiões, nos Açores e em Lisboa. Nessas breves conversas, que nunca foram apenas de circunstância, partilhávamos preocupações e reflexões sobre temas que ambos considerávamos essenciais para a vida pública e para o país.

Recordo o Dr. Laborinho Lúcio como um homem de diálogo, com sentido de Estado e profundo respeito pelos outros.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

a propósito da proibição da burka

imagem retirada da internet
(…) proíbem o véu
ignoram a fome
a solidão
o frio das ruas vazias (…)







O Parlamento português aprovou hoje, por proposta da extrema-direita, uma lei que proíbe o uso da burka em espaços públicos. A decisão, envolta em retórica de segurança e libertação da mulher, revela sobretudo um sintoma inquietante: a facilidade com que se legisla sobre o que quase não existe. 

Em Portugal, raramente se vê uma mulher coberta por esse traje, mas, em contrapartida, cresce visivelmente o número de pessoas mergulhadas na pobreza, na exclusão e na precariedade, vítimas de políticas que não se ocupam da dignidade real da vida.

Mais do que discutir panos e véus, seria urgente debater as condições que empurram milhares de famílias para a carência, os jovens para a emigração e os idosos para a solidão. 

A obsessão com símbolos e vestuários serve, tantas vezes, para disfarçar o vazio de políticas estruturais. É mais fácil legislar sobre corpos alheios do que enfrentar as desigualdades e as injustiças que corroem a sociedade.

imagem retirada da internet
Há ainda um paradoxo que importa sublinhar, enquanto se condena, em nome da liberdade, a imposição de certas roupas às mulheres muçulmanas, naturaliza-se no Ocidente uma cultura que explora e sexualiza o corpo feminino até à exaustão. Entre o véu e o espelho, entre a ocultação e a exibição, o corpo da mulher continua a ser um campo de batalha simbólico e, raramente é um território de liberdade para as mulheres.

Talvez fosse tempo de deixarmos de decidir pelas mulheres muçulmanas, talvez fosse tempo de as ouvir, com respeito, as mulheres que dizem usar o hijab ou o chador por fé, por identidade, ou simplesmente por escolha. 

A liberdade não se impõe, reconhece-se e garante-se. E é isso, rigorosamente, que esta lei não faz.

António Borges Coelho (1928–2025)

Partiu hoje António Borges Coelho, historiador, escritor e resistente antifascista. Homem de saber vasto e palavra clara, dedicou a vida ao estudo da História de Portugal e à defesa intransigente da liberdade. Prisioneiro político do Estado Novo, nunca separou o trabalho do historiador da consciência do cidadão.

Na sua obra procurou dar voz aos que a história oficial calou. Mestre de várias gerações, Borges Coelho foi exemplo raro de integridade intelectual e de coerência humana, um historiador militante no sentido mais nobre do termo: aquele que serve a verdade, a justiça e a memória.

Com a morte de António Borges Coelho a reserva moral e cívica de Portugal extingue-se um pouco mais.

Até sempre!