sexta-feira, 17 de outubro de 2025

a propósito da proibição da burka

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(…) proíbem o véu
ignoram a fome
a solidão
o frio das ruas vazias (…)







O Parlamento português aprovou hoje, por proposta da extrema-direita, uma lei que proíbe o uso da burka em espaços públicos. A decisão, envolta em retórica de segurança e libertação da mulher, revela sobretudo um sintoma inquietante: a facilidade com que se legisla sobre o que quase não existe. 

Em Portugal, raramente se vê uma mulher coberta por esse traje, mas, em contrapartida, cresce visivelmente o número de pessoas mergulhadas na pobreza, na exclusão e na precariedade, vítimas de políticas que não se ocupam da dignidade real da vida.

Mais do que discutir panos e véus, seria urgente debater as condições que empurram milhares de famílias para a carência, os jovens para a emigração e os idosos para a solidão. 

A obsessão com símbolos e vestuários serve, tantas vezes, para disfarçar o vazio de políticas estruturais. É mais fácil legislar sobre corpos alheios do que enfrentar as desigualdades e as injustiças que corroem a sociedade.

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Há ainda um paradoxo que importa sublinhar, enquanto se condena, em nome da liberdade, a imposição de certas roupas às mulheres muçulmanas, naturaliza-se no Ocidente uma cultura que explora e sexualiza o corpo feminino até à exaustão. Entre o véu e o espelho, entre a ocultação e a exibição, o corpo da mulher continua a ser um campo de batalha simbólico e, raramente é um território de liberdade para as mulheres.

Talvez fosse tempo de deixarmos de decidir pelas mulheres muçulmanas, talvez fosse tempo de as ouvir, com respeito, as mulheres que dizem usar o hijab ou o chador por fé, por identidade, ou simplesmente por escolha. 

A liberdade não se impõe, reconhece-se e garante-se. E é isso, rigorosamente, que esta lei não faz.

António Borges Coelho (1928–2025)

Partiu hoje António Borges Coelho, historiador, escritor e resistente antifascista. Homem de saber vasto e palavra clara, dedicou a vida ao estudo da História de Portugal e à defesa intransigente da liberdade. Prisioneiro político do Estado Novo, nunca separou o trabalho do historiador da consciência do cidadão.

Na sua obra procurou dar voz aos que a história oficial calou. Mestre de várias gerações, Borges Coelho foi exemplo raro de integridade intelectual e de coerência humana, um historiador militante no sentido mais nobre do termo: aquele que serve a verdade, a justiça e a memória.

Com a morte de António Borges Coelho a reserva moral e cívica de Portugal extingue-se um pouco mais.

Até sempre!

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

“Nova Guerra Fria”

do arquivo pessoal
O termo “nova Guerra Fria” circula hoje com uma inquietante naturalidade. Volta a falar-se de blocos, alianças, sanções, ameaças e cercos, como se o século XXI tivesse voltado a tropeçar nos fantasmas do XX. Mas será que vivemos, de facto, um cenário semelhante, ou apenas caminhamos para ele!?

Alguns analistas e académicos das Relações Internacionais consideram que a expressão não se adequa à realidade, pois faltariam as marcas ideológicas que caracterizaram a Guerra Fria. Argumentam que os conflitos latentes atuais se centram noutras dimensões: tecnológica, económica e geopolítica. Eu diria, mesmo não sendo especialista, que tentar despojar esta disputa de uma carga ideológica é um erro.

É certo que a dicotomia capitalismo/comunismo desapareceu, mas a Guerra Fria tinha associada uma competição pela liderança económica, pelo bem-estar social, pela tecnologia e pela influência geopolítica entre dois blocos antagónicos. A nova configuração do poder mundial não repete o passado, é a mutação de um sistema que, após o anunciado e previsível colapso da ordem unipolar estado-unidense, procura desesperadamente recompor-se.

As disputas, ainda que com formas diferentes, continuam a refletir visões distintas da ordem mundial. Trata-se, pois, de um conflito ideológico, mesmo que sem os antagonismos declarados de outrora. Alteraram-se a semântica e as formas tecnológicas do poder, mas não a sua lógica. À primeira vista, pode parecer que não existe uma “nova Guerra Fria”, que não se trata de convencer o mundo de uma ideia, mas de o controlar através de fluxos de energia, de dados, de matérias-primas raras e, naturalmente, de capital. Mas nem tudo é assim tão linear.

O eixo central deste novo confronto é a competição entre os Estados Unidos e a China, o que, por si só, põe em causa o alegado despojamento ideológico das tensões mundiais num campo de batalha que é global. Em torno desta questão gravitam outras potências emergentes e outros interesses: Índia, Rússia, Irão, Turquia, Brasil, mas também países da América Central e do Sul, de África e do Médio e Extremo Oriente, que procuram afirmar margens de autonomia na nova ordem mundial, tendo como horizonte a criação de um mundo multipolar.

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Trata-se, pois, de uma guerra em múltiplos tabuleiros, sem linhas de frente definidas, onde o poder se exerce tanto pela diplomacia e pela tecnologia quanto pela força militar, muitas vezes através de conflitos bélicos por procuração.

A disputa pela primazia tecnológica é a face mais visível desta tensão: semicondutores, inteligência artificial, telecomunicações 5G/6G, biotecnologia, controlo das cadeias produtivas. Quem dominar a tecnologia dominará o século. O domínio económico segue a mesma lógica: sanções, tarifas, bloqueios e a lenta, mas significativa, desdolarização do comércio internacional.

Nas margens, emergem novos blocos, como os BRICS ampliados, que desafiam a supremacia ocidental e ensaiam alternativas de cooperação financeira e política, bem como modelos de desenvolvimento cooperativo.

No plano geopolítico, a Ucrânia e Taiwan surgem como símbolos dessa nova cartografia do confronto. A guerra no leste europeu transformou-se num campo de desgaste prolongado entre o Ocidente e a Rússia, enquanto o Pacífico se militariza em torno da contenção da China. A expansão da OTAN, apresentada como estratégia de segurança, alimenta o medo e o ressentimento, e a diplomacia americana, travestida de defesa da liberdade e da democracia, oculta a persistência da velha lógica imperial: o controlo das rotas, dos recursos e das consciências.

Mas o mais inquietante talvez não esteja nas frentes de guerra, e sim na guerra híbrida que atravessa o quotidiano. O controlo digital, a manipulação da informação, a vigilância algorítmica e a militarização do espaço mediático criam uma atmosfera de suspeita e conformismo. A guerra tornou-se difusa e permanente: não precisa de ser declarada para existir. A sua presença normaliza-se, infiltrando-se nas economias, nas escolas, nas redes sociais. Vivemos num mundo em que a lógica do conflito se tornou infraestrutura da política.

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Neste contexto, a União Europeia surge como um continente hesitante, despojado de voz própria. Enredada na dependência militar e energética dos Estados Unidos, renunciou à sua autonomia estratégica e à promessa de ser um terceiro caminho entre impérios. A política externa europeia é hoje ditada por Washington, e o preço dessa submissão mede-se em recessão económica, perda de soberania e erosão moral dos valores humanitários do Ocidente.

O Presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, sintetizou de forma brilhante a decadência desses valores ao afirmar sobre o genocídio perpetrado na Palestina:

“Ali também estão sepultados o direito internacional humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo. Em Gaza, a fome é usada como arma de guerra.”

A guerra na Ucrânia revelou a fragilidade da União Europeia, incapaz de pensar fora da lógica atlantista e prisioneira de uma solidariedade que se confunde com obediência aos militaristas da OTAN e aos humores da administração estado-unidense.

Portugal, periférico e pequeno, vive nesta teia de dependências. Sem estratégia própria, segue o rebanho europeu, justificando tudo em nome da pertença ao “mundo livre”. Mas a liberdade que se invoca é cada vez mais retórica: nas decisões fundamentais, energia, segurança, política externa, o país limita-se a repetir o que vem de Bruxelas, e Bruxelas o que vem de Washington. Esquecemos que a neutralidade ativa, o diálogo e a diplomacia multilateral poderiam ser caminhos de relevância e não sinais de fraqueza. Portugal, pela sua história e posição atlântica, poderia ser ponte, e não um mero eco subserviente.

A “nova Guerra Fria” não é apenas uma disputa entre potências: é também um conflito civilizacional. De um lado, um modelo que insiste em manter a hegemonia através da força e do medo; do outro, uma tentativa ainda incerta de reorganizar o mundo de forma multipolar. O perigo é que, entre ambas as visões, o planeta se torne refém de uma competição sem ética nem limites, em que a destruição ambiental, a corrida armamentista e a manipulação tecnológica se reforçam mutuamente.

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Embora a ideia de um mundo policêntrico e cooperante seja mais aliciante, o risco está nos dirigentes políticos que, a Ocidente, insistem em preservar velhos domínios hegemónicos e num caminho cada vez menos seguro para os seus povos, que já pagam o preço das derivas de submissão ao capital. Mas o maior risco, o mais silencioso, é o da normalização da guerra. Quando o medo se torna rotina e o inimigo uma necessidade permanente, o pensamento crítico desaparece. A comunicação social oblitera e manipula a informação, as universidades silenciam-se e a sociedade aceita as decisões como inevitabilidades. A guerra deixa de ser exceção para se tornar condição estrutural de funcionamento das economias e dos Estados, e a paz passa a ser utopia. O desafio, portanto, não é escolher um lado, mas recusar a lógica bipolar que reduz o mundo a um tabuleiro. A humanidade precisa de reencontrar a medida política do equilíbrio, o espaço da diplomacia e a coragem de imaginar outro futuro. Enquanto as potências competem pela supremacia, o planeta aquece, as desigualdades agravam-se e a esperança esvai-se entre relatórios e cimeiras.

A “nova Guerra Fria” é o espelho de uma humanidade perdida na ilusão da supremacia de uns sobre outros, em projetos de dominação ancorados na uniformização do pensamento, dos costumes e das narrativas que tentam reescrever a história. E talvez o maior perigo não esteja nas armas, mas na indiferença. Indiferença, essa forma silenciosa de consentimento que permite que tudo se repita.

 Ponta Delgada, 14 de outubro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 15 de outubro de 2025

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

erosão dos valores

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Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.




(...) Mas o mais inquietante talvez não esteja nas frentes de guerra, e sim na guerra híbrida que atravessa o quotidiano. O controlo digital, a manipulação da informação, a vigilância algorítmica e a militarização do espaço mediático criam uma atmosfera de suspeita e conformismo. A guerra tornou-se difusa e permanente: não precisa de ser declarada para existir. A sua presença normaliza-se, infiltrando-se nas economias, nas escolas, nas redes sociais. Vivemos num mundo em que a lógica do conflito se tornou infraestrutura da política.

Neste contexto, a União Europeia surge como um continente hesitante, despojado de voz própria. Enredada na dependência militar e energética dos Estados Unidos, renunciou à sua autonomia estratégica e à promessa de ser um terceiro caminho entre impérios. A política externa europeia é hoje ditada por Washington, e o preço dessa submissão mede-se em recessão económica, perda de soberania e erosão moral dos valores humanitários do Ocidente.

O Presidente Lula, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, sintetizou de forma brilhante a decadência desses valores ao afirmar sobre o genocídio perpetrado na Palestina:

“Ali também estão sepultados o direito internacional humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo. Em Gaza, a fome é usada como arma de guerra.” (...)




quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Fernando Paulouro Neves (1947-2025)

Fernando Paulouro Neves, homem de palavra inteira e consciência socialmente comprometida. Jornalista de alma funda, moldou-se no rigor da linguagem e na fidelidade às causas que dão sentido à vida pública. No Jornal do Fundão foi mais do que um cronista do seu tempo, foi um intérprete atento das gentes e dos gestos, das pequenas grandezas que fazem a dignidade de uma terra.

Um dia depois de apresentar o seu último livro, como se tivesse cumprido um ciclo, partiu sem avisar, deixando nas páginas e na memória o rasto de uma lucidez comprometida com a liberdade, com a cultura e com a justiça. A sua escrita, limpa e justa, é testemunho de um país interior que não se resigna ao silêncio.

O Fernando foi um homem que não separou a vida da palavra, nem a palavra da responsabilidade de (re)pensar o mundo. 

Recordá-lo é afirmar a persistência de uma ética rara. Uma ética tão necessária nos tempos que correm, mas tão ausente dos palcos mediáticos.

Fica o exemplo, discreto e firme, de quem soube assumir a vida como um ofício de cidadania.

Até sempre, Fernando!

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 07 de outubro de 2025


domingo, 5 de outubro de 2025

Dia Mundial do Professor

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Ser professor é mais do que ensinar. Ser professor é partilhar o conhecimento e cultivar a curiosidade e a vontade de aprender, é promover o gosto pela descoberta e da reflexão, é abrir caminho para o pensamento crítico.

A docência é um ofício que molda o futuro sem esperar glória, que se alimenta dos princípios que sustentam a educação e a cultura como poderes transformadores e libertadores.

Neste dia em que o mundo celebra os professores, importa lembrar que o reconhecimento simbólico só é pleno quando acompanhado da valorização concreta. As lutas travadas pelas organizações sindicais docentes, em defesa de um estatuto profissional digno, de condições de trabalho justas e de uma escola pública de qualidade, são parte essencial dessa dignidade. Defender os professores é defender o direito ao saber e à igualdade de oportunidades.

Num tempo em que a ignorância é muitas vezes travestida de opinião e a cultura desvalorizada, o professor permanece como guardião da lucidez e da esperança. É nele que se renova a confiança de que educar continua a ser um dos mais belos e exigentes atos de resistência.

 Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 5 de outubro de 2025

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

A falácia da transição verde

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A crise climática deixou de ser uma previsão sombria para se tornar numa evidência quotidiana, mesmo considerando a existência de alguns fundamentalismos entre os chamados militantes climáticos, também eles uma falácia pois, o seu posicionamento e ação refere-se, tão-somente, aos efeitos e nunca às causas. 

As temperaturas médias globais sobem, os períodos de estio alargam-se, os incêndios tornam-se mais devastadores, neste caso importa juntar outras variáveis, as chuvas são torrenciais e a subida das águas oceânicas um facto comprovado. Já não falamos de um futuro distante, mas de uma realidade que molda o presente e condiciona o futuro imediato. É neste cenário que se ergue a narrativa da chamada transição verde, apresentada como panaceia capaz de reconciliar desenvolvimento económico e a sustentabilidade ambiental. Mas, por detrás da retórica otimista e das metas da neutralidade carbónica, esconde-se uma falácia que importa denunciar e desconstruir.

A lógica dominante da transição energética, tal como é desenhada pelo Norte Global, não rompe com o paradigma que nos trouxe até aqui. Pelo contrário, reproduz as mesmas assimetrias, os mesmos vícios de exploração e a mesma crença cega no crescimento ilimitado, que decorre da agenda neoliberal. 

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Substitui-se a dependência dos combustíveis fósseis pela dependência de recursos minerais críticos (lítio, cobalto, níquel, terras raras), cuja extração intensiva ameaça ecossistemas frágeis e as comunidades humanas que os habitam. Aquilo que se proclama como energia limpa esconde uma pegada ecológica e social profunda, projetada sobre territórios do Sul Global, de África à América do Sul, passando também por regiões periféricas da Europa, um impacto ambiental e social que nos devia fazer refletir sobre os discursos e práticas dos decisores políticos. 

Basta observar o que acontece em países como a República Democrática do Congo, onde o cobalto alimenta a indústria das baterias elétricas, mas à custa de trabalho infantil, destruição ambiental e violência armada. Ou olhar para o triângulo do lítio (Argentina, Bolívia e Chile), onde a exploração do lítio destrói aquíferos, ameaçando modos de vida ancestrais. Mas também, em Portugal se ensaiam projetos de mineração em nome da modernidade verde, e é legítimo questionar se não se trata de mais uma repetição do velho padrão da extração predatória, devastando territórios para satisfazer necessidades externas, deixando atrás de si cicatrizes irreversíveis.

A promessa de uma economia descarbonizada assenta, assim, num equívoco, ou seja, pretende resolver um problema criado pelo excesso de consumo e pela aceleração produtiva através de uma solução que mantém intactos os mesmos pilares. É o que poderíamos chamar de maquilhagem verde, pintar de sustentável aquilo que permanece estruturalmente insustentável. A indústria automóvel, por exemplo, não questiona o modelo de mobilidade assente no transporte individual, mas apenas substitui motores de combustão por baterias de lítio. As grandes multinacionais energéticas não abandonam a lógica monopolista, apenas diversificam o portefólio para instalar parques solares e eólicos de escala gigantesca, muitas vezes implantados em territórios já sobrecarregados de injustiças sociais.

A esta cosmética junta-se um segundo mecanismo de engano: a transferência da responsabilidade para o indivíduo. O cidadão comum é chamado a reciclar, a trocar lâmpadas, a comprar carros elétricos, a moderar o seu consumo, como se o destino do planeta dependesse, em última instância, da soma de pequenos gestos domésticos. Esta pedagogia moral, tão ao gosto da cartilha neoliberal, desloca o centro do problema e da solução para a esfera individual, enquanto absolve governos, grandes corporações e sistemas económicos da mudança estrutural que se impõe.

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É claro que os comportamentos individuais têm relevância, mas a crise climática não se resolve no carrinho das compras nem na escolha entre um automóvel a diesel ou elétrico. A escala do problema é sistémica e resulta de um modelo produtivo extrativista, de cadeias globais de abastecimento energívoras, de uma lógica de crescimento que ignora os limites. Enquanto se responsabiliza o indivíduo, mantém-se intocado o paradigma que o obriga a viver em cidades desenhadas para o automóvel, a consumir bens de obsolescência programada, a depender de energia centralizada controlada por oligopólios.

Desconstruir este mito é essencial. Não se trata de um conjunto de decisões individuais, mas de uma mudança coletiva, cultural e política. A transição só será efetiva se questionar os alicerces do modelo de produção e consumo, redistribuir responsabilidades e enfrentar os poderes que lucram com a crise. Transferir a culpa para o indivíduo é cómodo para os grandes atores económicos, mas é apenas mais uma panaceia. O planeta não se salvará com consumidores mais conscientes, isso é apenas um pequeno contributo, mas com sociedades mais justas e Estados capazes de regular, limitar e transformar.

O problema não é a tecnologia em si, mas o enquadramento económico e político que a instrumentaliza. Quando a transição é pensada como mais uma oportunidade de negócio, em vez de mudança civilizacional, cai-se inevitavelmente na falácia. A lógica é a mesma de sempre: expandir mercados, abrir novas fronteiras de acumulação, transformar a crise ambiental em mercadoria. Assim, a transição verde não se afirma como rutura, mas como a continuidade de um modelo de crescimento económico caduco.

O caminho passa por reconhecer os limites. Limites do planeta, limites da exploração, limites de um modelo económico que não pode continuar a crescer infinitamente num espaço finito. A verdadeira rutura não é energética, mas cultural e política. Implica reduzir o metabolismo económico global, repensar padrões de produção e consumo, reorganizar as cadeias produtivas, fortalecer a proximidade e diminuir a dependência de fluxos materiais gigantescos.

É claro que tais mudanças não são neutras nem indolores. Significam tocar em interesses instalados, questionar privilégios, alterar hábitos quotidianos. Mas é ilusório acreditar que a crise climática se resolverá com soluções rápidas e indolores, embaladas em slogans publicitários. A neutralidade carbónica de 2050 não pode ser apenas um horizonte retórico. A neutralidade carbónica só terá sucesso com a concretização de profundas transformações nos modelos sociais, económicos e políticos de desenvolvimento, ou seja, exige uma rutura que vai muito para além da mera substituição de fontes de energia.

A União Europeia, e em particular Portugal, têm aqui uma oportunidade para se posicionarem de forma distinta. Em vez de ceder ao canto de sereia da mineração desenfreada em nome da modernidade verde, poderiam apostar em modelos descentralizados, na eficiência energética de pequena escala, na mobilidade coletiva e partilhada, na revitalização da agricultura sustentável e de proximidade. Poderiam, sobretudo, assumir uma política de sobriedade energética, em vez de perpetuar o dogma do consumo desenfreado.

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No fundo, o desafio que enfrentamos não é o de trocar petróleo por minerais críticos, mas o de redefinir a relação entre humanidade e natureza, entre economia e ecologia, entre presente e futuro, entre o bem-estar e a justiça social. A crise climática não será resolvida com soluções cosméticas, mas com coragem política e transformações que só a mobilização coletiva pode conseguir. 

A transição verde será falaciosa enquanto se limitar a colorir de sustentável o velho e insustentável paradigma de crescimento. Só será verdadeira quando aceitarmos que o planeta tem limites, e que a vida só floresce quando se respeitam os seus ritmos e equilíbrios. A crise climática não pode reduzir-se a mais uma oportunidade de negócio e à indução de novos padrões de consumo ancorados nos velhos princípios predatórios dos recursos naturais, ainda que maquilhados de verde. 

 Ponta Delgada, 29 de setembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 1 de outubro de 2025

Heba Zagout - a abrir outubro

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(…) calaram as tuas mãos
não apagaram a tua arte
nas tuas telas respira a Palestina
das oliveiras
dos rostos
das crianças
da memória (…)

Aníbal C. Pires





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Heba Zagout pintava com as cores da terra e do exílio, como quem bordava na tela a memória coletiva de um povo. Cada traço era resistência, cada figura uma afirmação de existência contra o apagamento. Na sua arte cabiam as oliveiras, as mulheres, as casas teimosamente reerguidas sob as ruínas.

No dia 13 de outubro de 2023, as bombas genocidas da ocupação sionista calaram-lhe as mãos, mas não o seu legado. As suas telas sobrevivem como gritos silenciosos, como faróis no meio das trevas, lembrando que a Palestina não é só dor, mas também beleza e vida perseverante.

A sua morte não é apenas ausência é, sobretudo, presença transformada em luz. Heba permanece no gesto de cada criança que desenha o céu sobre Gaza, na voz de cada mulher que resiste, no sopro de cada artista que ousa criar sob o jugo colonial sionista e dos seus cúmplices. 


terça-feira, 30 de setembro de 2025

ambiguidades

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Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) A promessa de uma economia descarbonizada assenta, assim, num equívoco, ou seja, pretende resolver um problema criado pelo excesso de consumo e pela aceleração produtiva através de uma solução que mantém intactos os mesmos pilares. É o que poderíamos chamar de maquilhagem verde, pintar de sustentável aquilo que permanece estruturalmente insustentável. A indústria automóvel, por exemplo, não questiona o modelo de mobilidade assente no transporte individual, mas apenas substitui motores de combustão por baterias de lítio. As grandes multinacionais energéticas não abandonam a lógica monopolista, apenas diversificam o portefólio para instalar parques solares e eólicos de escala gigantesca, muitas vezes implantados em territórios já sobrecarregados de injustiças sociais.

A esta cosmética junta-se um segundo mecanismo de engano: a transferência da responsabilidade para o indivíduo. O cidadão comum é chamado a reciclar, a trocar lâmpadas, a comprar carros elétricos, a moderar o seu consumo, como se o destino do planeta dependesse, em última instância, da soma de pequenos gestos domésticos. Esta pedagogia moral, tão ao gosto da cartilha neoliberal, desloca o centro do problema e da solução para a esfera individual, enquanto absolve governos, grandes corporações e sistemas económicos da mudança estrutural que se impõe. (...)


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

#somostodosSATA

A SATA, conjunto de empresas do grupo, é um ativo estratégico regional que os sucessivos governos da Região, em particular desde 2008, têm vindo a utilizar para satisfazer necessidades e interesses nem sempre compreensíveis, mas legítimos pois o Governo regional é o representante do acionista (povo açoriano).

Mas a legitimidade não deveria dispensar o Governo regional de pagar pelos serviços prestados que solicita, ou se preferirem, impõe à SATA. E não me refiro aos serviços que decorrem das obrigações de serviço público a que as empresas do grupo estão obrigadas, mas a todos os outros que o Governo tem exigido e que, numa perspetiva puramente empresarial, qualquer administração não teria incluído no seu plano de negócios.

Não vou enumerar os serviços que decorrem/decorreram de solicitações, julgo não ser necessário pois, é assunto do domínio público, mas vou lembrar que até 2012 o Grupo SATA apresentava resultados líquidos positivos, mormente, a SATA Internacional/Azores Airlines.

Se os sucessivos Conselhos de Administração cometeram erros, sem dúvida. Se aos erros das administrações pode ser imputada a total responsabilidade pela situação financeira do Grupo, NÃO!

A responsabilidade é dos diversos protagonistas políticos, ou seja, dos governos. Foram as opções e as “exigências” políticas que contribuíram para o descalabro financeiro que se vive atualmente, e como tal, não é sobre os trabalhadores que deve cair o ónus da responsabilidade como de forma, politicamente cobarde, o atual governo regional tem vindo a fazer.

Mas se assacar responsabilidades aos trabalhadores é uma cobardia política, a desvalorização deste ativo feita por alguns membros do atual governo, numa fase em que decorre um processo de privatização, é um crime económico e político.

Hoje os trabalhadores da SATA saíram à rua sob a consigna #somostodosSATA para manifestar o seu desagrado pela forma como têm sido tratados, mas também em defesa do Grupo SATA enquanto ativo estratégico regional que, na minha opinião, se deve manter integralmente no domínio público pois, o serviço que presta aos Açores e ao Povo Açoriano não é passível de alienação. 

 A SATA não é apenas uma empresa, é parte da soberania e da autonomia açoriana. Privatizá-la será um erro histórico.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de setembro de 2025


economia circular ou o círculo imperfeito

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Chamam-lhe economia circular, como se a palavra encerrasse um feitiço antigo: o ciclo sem fim, o retorno eterno, a promessa de que nada se perde. Um círculo perfeito onde o consumo se purifica e os excessos se redimem pela reciclagem, pela reparação, pela reutilização.

Mas a realidade não é tão redonda. Há sempre perdas, há sempre sobras, há sempre cicatrizes escondidas. Na fundição de metais raros, no lixo tóxico das tecnologias verdes, nos corpos invisíveis que trabalham nas minas e nos aterros. O círculo, afinal, tem algumas arestas, e fere.

A narrativa da circularidade é um dos mitos convenientes. É um consolo para continuar a produzir e a consumir sem pôr em causa o essencial: a lógica do crescimento sem limites. Reciclar tornou-se indulgência, selo de consciência tranquila, mas que pouco altera a voracidade do sistema.

Há, contudo, na chamada economia circular algumas sementes de verdade. Prolongar a mais vida aos objetos, ou transformá-los é uma boa prática e abre algumas clareiras no modelo dominante se ousarmos ver a circularidade não como um ritual de purificação, mas sim como uma prática de contenção no consumo.

A economia circular nasceu como promessa de contenção: menos consumo, mais reparação, reutilização e partilha. Mas depressa o capital a transformou em negócio. O que antes era gesto comunitário, remendar, trocar, reaproveitar, tornou-se num serviço pago, certificado e rentável. Desta forma o círculo não se fecha, pois, ao invés em vez de pôr em causa o excesso, abre-se um novo mercado, onde até a reciclagem se vende como mercadoria. O risco é por demais evidente, a circularidade deixa de ser alternativa ao modelo de crescimento e converte-se na sua nova face, polida, verde e lucrativa.

A economia circular não é, por si só, a salvação pode, porém, ajudar-nos a desenhar um caminho menos devastador. Para caminhar para a utopia anunciada com a economia circular é necessário quebrar alguns mitos, desde logo, que a transição para modelos de desenvolvimento sustentáveis não é apenas tecnológica ou de consciencialização individual, a transição terá de ser coletiva e, como tal, civilizacional.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 29 de setembro de 2025


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Assata Shakur (1947-2025): símbolo de luta pela liberdade

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“Ninguém no mundo, ninguém na história, conseguiu a sua liberdade apelando para o senso moral das pessoas que o oprimiam.”

Assata Shakur





Assata Shakur partiu, mas a sua voz permanece, acesa como uma chama que o tempo não apaga. Nascida JoAnne Deborah Byron, reinventou-se para escrever a sua própria história e, nesse gesto de autodefinição, afirmou a urgência de um povo que recusava ser apenas objeto da história dos outros. Foi militante dos Panteras Negras e da Black Liberation Army, perseguida por um Estado que a quis transformar em inimiga pública, símbolo do “terrorismo interno”. Para muitos, no entanto, Assata sempre foi, e, continuará a ser um símbolo de resistência, dignidade e coragem.


A sua autobiografia é mais do que testemunho e a sua vida foi um manifesto de luta contra a discriminação, contra a injustiça social e contra a exclusão.

Sobre o sistema prisional estado-unidense disse: “A prisão é um microcosmo do mundo fora dela. O mesmo racismo, a mesma injustiça, a mesma exploração existe, só que ampliada.” 

Assata Shakur denunciava assim o que muitos optam por ignorar e obliterar: as grades não estão apenas nas prisões, mas espalham-se pelo tecido social, feito de desigualdade, exclusão e violência estrutural.

Condenada num julgamento marcado pela parcialidade e pela perseguição política, fugiu em 1979 e encontrou em Cuba o refúgio e a solidariedade que os Estados Unidos lhe negaram. Ali viveu até hoje, foi um exílio forçado, mas também a liberdade reencontrada, entre diáspora e resistência.

A sua voz dialoga com outras mulheres da luta negra, como Angela Davis, companheira de tempo e de causas. Ambas denunciaram o racismo estrutural, a violência das prisões e a falsa neutralidade da justiça americana. Se Davis fez do espaço académico e do ativismo público a sua trincheira, Assata ergueu-se na clandestinidade e no exílio. São duas faces da mesma insubmissão.

Assata acreditava na revolução como processo vital, não como instante: “A revolução não é um acontecimento único. É um processo contínuo de libertação.” E lembrava que a liberdade precisa primeiro ser imaginada: “O povo que não consegue imaginar liberdade, não conseguirá lutar por ela.”

Hoje, perante a sua morte em Havana, o que permanece é esse convite radical à esperança. A sua vida, vivida entre perseguição, feridas e exílio, mostra-nos que resistir é também afirmar a beleza de existir com dignidade. Entre o peso da injustiça e a leveza dos sonhos, Assata Shakur ensinou que a luta não é apenas contra algo, mas sobretudo por algo. É uma luta por um mundo habitado pela justiça, pela memória e pela ternura insubmissa.

Assata partiu, mas deixou-nos um horizonte. E os horizontes, como sabemos, não se alcançam, perseguem-se. Os horizontes servem para caminhar em direção às utopias.


quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Erosão democrática

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As democracias contemporâneas, representativas e liberais, vivem um paradoxo. Proclamam-se sólidas, escudadas em eleições regulares e no funcionamento das instituições, na liberdade de imprensa e na separação de poderes, porém, por detrás da aparência formal, os seus pilares afundam-se nos alicerces. O edifício democrático, mais do que abalado por golpes externos, está sujeito a um crescente desgaste, até há pouco tempo pouco visível, que corrói as suas estruturas a partir de dentro do próprio sistema.

Seria importante clarificar o conceito de democracia, mas vou focar-me, apenas, nos modelos que vigoram na maioria dos países ditos democráticos, ou seja, nos modelos de democracia representativa e liberal e, em particular nos Estados Unidos da América (EUA) e na União Europeia (UE). 

Existem diferenças na arquitetura dos diferentes estados que integram estes dois espaços. Monarquias e repúblicas, regimes presidencialistas e semipresidencialistas, leis eleitorais assentes no voto universal e em votos colegiais, uma maior ou menor separação de poderes, e, se é verdade que estas diferenças, com maior ou menor visibilidade, conferem aos diferentes estados ou federações de estados particularidades que as podem distinguir, todas elas estão ancoradas na representação e, todas elas, têm vindo, diga-se com algum sucesso, a afastar as organizações sociais e laborais da participação nas decisões políticas que conformam a vida dos seus cidadãos, isto é, a participação cidadã tem vindo a ser cerceada, ou então, manipulada por via de organizações e movimentos permeáveis a agendas financiadas pelos mesmos agentes que, com maior ou menor visibilidade, suportam as organizações partidárias que, até agora, detêm o poder nos EUA e na UE.

A erosão democrática manifesta-se sobretudo na captura institucional pelo poder económico e financeiro apátrida. 

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Nos EUA, a influência dos lobbies e do financiamento privado das campanhas eleitorais é a norma, está integrada no sistema e tornou-se estrutural, de onde decorre que quem não dispõe de recursos ou apoios corporativos dificilmente acede (é eleito) a cargos de responsabilidade política. Na UE, a burocracia de Bruxelas funciona cada vez mais como correia de transmissão de interesses empresariais e financeiros, relegando os cidadãos para a condição de figurantes. A famosa porta giratória, que leva políticos a ocupar cargos em grandes empresas logo após deixarem funções públicas, é apenas a face mais visível desse fenómeno. Note-se que nem todos os partidos políticos são permeáveis ao financiamento espúrio que os limita na sua ação e os leva a atraiçoar os seus apoiantes. No caso português o Partido Comunista é o exemplo paradigmático de que nem todos estão à venda.

A liberdade de escolha, tantas vezes invocada, perde consistência quando o leque de opções políticas disponíveis se limita a gerir os mesmos consensos neoliberais. A democracia reduz-se, assim, ao ritual do voto, enquanto as decisões estruturais, como a política económica, a regulação digital, a energia, a segurança e os pilares do Estado Social são condicionadas por centros de poder externos à soberania popular. 

A abstenção crescente nas eleições é um reflexo direto dessa perceção de inutilidade: votar para quê? se tudo fica na mesma. Mas os efeitos da erosão democrática e do descontentamento dos cidadãos, a par de uma cultura de estupidificação, abre portas largas ao discurso populista para o qual há uma grande permeabilidade que veio a ser construída nas últimas décadas.

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A erosão silenciosa das liberdades através da manipulação algorítmica da informação nas redes sociais, da concentração mediática e do enfraquecimento do jornalismo independente reduzem a pluralidade do debate público. Ao mesmo tempo, em nome da segurança ou da estabilidade, multiplicam-se mecanismos de vigilância e formas mais ou menos subtis de censura. A democracia é apenas uma formalidade que se cumpre nos atos eleitorais pois, a sua prática tem vindo a ser fragilizada pela apropriação do poder político pelos oligopólios.

Em Portugal não é diferente. O país vive amarrado a uma dependência estrutural de Bruxelas e de Washington, onde se definem políticas económicas, financeiras, energéticas e militares que os órgãos de poder nacionais acolhem acriticamente. O espaço público está cada vez mais condicionado por interesses económicos concentrados, visíveis na comunicação social e no financiamento partidário, com a já referida exceção. O resultado é uma cidadania desmobilizada e fragilizada resumida aos atos eleitorais, ao mero consumo passivo de discursos prontos-a-servir e ao regurgitar de opiniões, sem base que as fundamente, nas chamadas redes sociais.

A erosão democrática não aconteceu nos últimos anos, é um processo gradual que tem vindo a ser construído ao longo de décadas, diria que a partir de 1947, e que se acentuou a partir da implosão da União Soviética. Deixo apenas um exemplo de uma conhecida iniciativa, que perdurou alguns anos (1966 a 1979), da manipulação e do condicionamento do pensamento: o Congress for Cultural Freedom. Outros exemplos existem e mantêm-se assumindo variadas formas, mas tendo sempre os mesmos objetivos de domínio e imposição de um modelo único de pensamento e de padronização dos hábitos de consumo.

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Se queremos salvar a democracia, dando-lhe a sua verdadeira significância (Governo do Povo), da sua lenta agonia, é urgente devolver-lhe substância e não deixar no limbo da impunidade os responsáveis pela degradação das instituições democráticas.

Não basta, portanto, denunciar a influência dos oligopólios ou a manipulação algorítmica. Há que reconhecer que a fragilização democrática tem sido acompanhada por um processo deliberado de estupidificação social. Reduzidos a consumidores de slogans e de entretenimento, os cidadãos foram progressivamente afastados do exercício crítico da política e, assim, tornaram-se terreno fértil para discursos simplistas e messiânicos. O populismo não surge do nada, o populismo alimenta-se do vazio deixado por quem deveria ter defendido a justiça social e a participação cidadã.

E sim! Estou a referir-me à responsabilidade histórica dos partidos socialistas e sociais-democratas europeus que, ao abandonarem a matriz social que os legitimava, se transformaram em gestores dóceis do consenso neoliberal, mas também aos partidos comunistas que enveredaram pela via do eurocomunismo, seja lá o que isso for, e se afundaram eleitoralmente, mas também na perda da influência social e sindical que tinham. O descontentamento popular, que deveria encontrar resposta em alternativas de esquerda consequentes, com a exceção já referida do PCP, é hoje manipulado por forças que usam as mesmas técnicas de marketing político e de comunicação emocional dos populistas de direita e extrema-direita.

Se em relação aos Estados Unidos existe um amplo consenso sobre a imbecilidade que carateriza o seu atual presidente, é bom que olhemos com o mesmo olhar crítico para os dirigentes da EU, como por exemplo Kaja Kallas e Ursula von der Leyen, e de alguns dirigentes dos seus Estados, Macron, Merz e  Stubb, de entre outros, para nos consciencializarmos de que tudo isto não acontece por acaso e a mediocridade que promove o caos estado-unidense e a decadência das instituições da UE têm a mesma origem, ou seja, resultam do esvaziamento da democracia e da ilusão de liberdade, como se alguém que não tem onde viver ou pão para colocar na mesa, fosse livre.

A democracia só poderá sobreviver se recuperar o seu conteúdo social e popular, se deixar de ser mera formalidade institucional para voltar a ser projeto coletivo. Caso contrário continuaremos a caminhar alegremente para o abismo.

Ponta Delgada, 16 de setembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 17 de setembro de 2025

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

do caos e da decadência

do arquivo pessoal



Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.





(...) Se em relação aos Estados Unidos existe um amplo consenso sobre a imbecilidade que carateriza o seu atual presidente, é bom que olhemos com o mesmo olhar crítico para os dirigentes da EU, como por exemplo Kaja Kallas e Ursula von der Leyen, e de alguns dirigentes dos seus Estados, Macron, Merz e  Stubb, de entre outros, para nos consciencializarmos de que tudo isto não acontece por acaso e a mediocridade que promove o caos estado-unidense e a decadência das instituições da UE têm a mesma origem, ou seja, resultam do esvaziamento da democracia e da ilusão de liberdade, como se alguém que não tem onde viver ou pão para colocar na mesa, fosse livre.

A democracia só poderá sobreviver se recuperar o seu conteúdo social e popular, se deixar de ser mera formalidade institucional para voltar a ser projeto coletivo. Caso contrário continuaremos a caminhar alegremente para o abismo. (...)


domingo, 14 de setembro de 2025

Casa-Mãe, de Paula Cabral

Acabei de ler, de uma só vez, Casa-Mãe, de Paula Cabral, integrado numa coleção sob a responsabilidade editorial de Vamberto Freitas e publicado pela Letras Lavadas.

Não costumo escrever sobre tudo o que leio, mas neste caso senti necessidade de deixar um breve registo. À medida que avançava na leitura, fui formulando ideias e impressões que merecem ser partilhadas, não como crítica literária, mas apenas como a experiência de um leitor atento.

Paula Cabral conduz-nos numa viagem intimista pelas memórias e afetos que nutre pelos lugares e pelas pessoas da sua vida, sem nunca deixar de olhar, com espírito crítico, para o que a rodeia: a rua onde vive, a cidade que habita, os Açores, Portugal e o mundo. Partilha connosco sentires, inquietações e também incómodos pessoais e profissionais. É professora, e isso deixa marcas no olhar que nos oferece.


Ao longo do livro, surgem temas que atravessam a vida coletiva e individual: a emigração que afetou tantas famílias açorianas, a religiosidade, a centralidade da família, a freguesia de Pico da Pedra, mas também a condição das mulheres, alicerce familiar e, sobretudo, sujeitos de transformação social.

Casa-Mãe é, assim, um testemunho que se enraíza no íntimo e ao mesmo tempo se abre ao universal. A leitura foi prazerosa e fico grato pela partilha.

Obrigado, Paula.


Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 14 de setembro de 2025


sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Privatizar o Handling da SATA. Para quê?

Num tempo em que a externalização de serviços está a ser fortemente questionada. O Governo Regional opta por comunicar que, a prazo, alguns serviços da SATA serão externalizados. 

A anunciada intenção do Governo Regional de separar os serviços de Handling da SATA, com vista à sua privatização, não é apenas um erro estratégico, é uma porta aberta à entrega de um setor essencial da aviação açoriana a interesses privados. 

O Handling não é um serviço acessório, mas parte integrante da operação aérea, separar significa desarticular a companhia e criar dependências artificiais. O paradoxo é evidente: privatizados os serviços, a SATA terá de os comprar a terceiros para apoiar a operação aérea, pagando pelo que hoje assegura dentro de portas.

As consequências não se ficam pela lógica financeira. Perde-se capacidade de controlo, enfraquece-se a coesão do Grupo SATA, fragiliza-se a defesa da mobilidade dos açorianos e dos interesses estratégicos da Região. O risco é claro: empresas privadas, movidas pela lógica do lucro imediato, não terão o mesmo compromisso com a continuidade territorial, com o emprego estável e qualificado, nem com a salvaguarda do interesse público. Esta separação não fortalece a SATA, antes abre caminho à sua fragilização e dependência, deixando no ar a pergunta essencial: a quem serve, afinal, esta opção política?

Aceito visões diferentes e com vantagens para os interesses da Região.

A questão financeira, sendo importante, não tem o significado nem a dimensão que alguns lhe conferem pois, para além das receitas próprias, insuficientes para encargos que não resultam apenas os da operação aérea, o Grupo SATA contribui para a Segurança Social, para a receita pública, através do IRS dos seus trabalhadores, mas também e, quiçá, sobretudo para que alguns setores da economia regional possam ter atividade lucrativa.

Aníbal C. Pires, 5 de setembro de 2025


5. 6 e 7 de setembro - FESTA DO AVANTE!

A Festa do Avante é muito mais do que um evento político e cultural. A FESTA é um espaço único de solidariedade, encontro e reencontro, onde se cruzam gerações, sotaques e percursos de vida. É o lugar onde a amizade se constrói no convívio simples, no trabalho voluntário, na partilha de ideais e de esperanças, sempre com os olhos postos num futuro mais justo e humano.

Entre palcos e debates, exposições e sabores do mundo, ergue-se um território de liberdade onde a luta se faz através da arte, da cultura e do diálogo. Aqui celebra-se a diversidade e o espírito coletivo, num ambiente de fraternidade que resiste ao tempo e se renova a cada edição.

Não é por acaso que, com toda a propriedade, se diz e bem, : "Não há Festa como esta".

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Memória e esquecimento

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A memória coletiva, devia ser, mas não é, um arquivo neutro onde se guardam factos e datas. É, pelo contrário, um campo de batalha permanente, onde o que se recorda e o que se esquece resulta de escolhas políticas, culturais e económicas. O passado não é uma paisagem imutável. O tempo pretérito é continuamente reescrito a partir das opções do poder e do pensamento dominante que a cada momento histórico se impõe no senso comum e que melhor serve os seus interesses. E é por isso que a disputa entre memória e esquecimento nunca é inocente e que atualmente se transformou numa luta que urge travar para que o revisionismo não se imponha à verdade histórica.

Conhecer é um ato de libertação que arma os cidadãos, tornando-os menos vulneráveis à moldagem da opinião pública e ao revisionismo histórico. Por outro lado, é essencial perceber quais os interesses e as finalidades de quem decide sobre a reescrita da história.

Oito décadas depois da manhã de 6 de agosto de 1945, Hiroshima continua a ser o símbolo maior da capacidade autodestrutiva da humanidade. No espaço de segundos, uma cidade inteira foi reduzida a cinzas, e dezenas de milhares de vidas desapareceram numa nuvem de fogo e silêncio. O desfecho do conflito estava desenhado, mas os EUA não se abstiveram de cometer a barbaridade que três dias depois repetiram sobre a cidade de Nagasaki.

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No entanto, a narrativa dominante tende a enquadrar estes acontecimentos como inevitáveis, quase naturais, parte de um desfecho histórico que teria poupado vidas ao acelerar o fim da guerra e, raramente, o mainstream refere quem foram os autores dos bombardeamentos. A justificação oficial, a ocidente, repete-se como uma espécie de mantra, abafando perguntas incómodas: Era mesmo necessário? Quais foram os cálculos estratégicos e geopolíticos que estiveram por trás da decisão? E por que motivo a memória de Hiroshima e Nagasaki raramente se cruza com a lembrança dos bombardeamentos convencionais, igualmente devastadores e, quiçá evitáveis, que arrasaram cidades como Dresden ou Tóquio?

Ao simplificar o acontecimento, a memória oficial apaga a responsabilidade política e moral. E este apagamento não é irrelevante: Sem memória crítica, a humanidade arrisca-se a normalizar a guerra, a vulgarizar a violência e premiar os autores desse ato desumano.

Também o colonialismo europeu é um território de memórias conflituosas e uma história, nem sempre bem contada, ou melhor, descrita pelos olhos dos colonizadores como uma missão civilizadora alicerçada na supremacia dos povos europeus e concretizada pela força das armas, mas que para os povos colonizados foi uma experiência de exploração, violência, racismo e epistemicídio. Situação que mesmo após os processos de descolonização se perpetuou sob a égide e as diferentes faces do neocolonialismo, do qual nem todos os povos colonizados se libertaram. O certo é que, nas últimas décadas, a tendência dominante continua a ser a do esquecimento seletivo e do branqueamento.

Em Portugal, por exemplo, o império é muitas vezes reduzido a episódios de exotismo e à branda nostalgia do imaginário colonial africano. Não se fala tanto da escravatura, dos massacres ou da guerra colonial que, até à revolução de Abril, vitimou milhares de jovens nas frentes de combate em África. A narrativa da lusofonia procura suavizar os traços mais duros dessa história e, há ainda quem tente justificar o colonialismo português com as teses do chamado luso-tropicalismo

Esquecer e adaptar os factos, neste caso, é também uma forma de perpetuar uma versão unilateral da história. A memória não deve ser uma galeria de glórias, mas um espaço de responsabilização. Para que não subsistam dúvidas estas palavras não se destinam aos milhares e milhares de jovens portugueses que foram forçados a combater numa guerra que não era sua e na qual muitos milhares foram mortos.

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Outras memórias têm sido moldadas pelo presente, mas a história não mente. A OTAN fundada, como bloco militar defensivo, em 1949 integrou a ditadura portuguesa como um dos membros fundadores o que só se compreende face aos objetivos políticos desta organização que, como se sabe, tinha como principal finalidade o combate à expansão da influência soviética e uma suposta ameaça crescente de bolchevização do mundo.

Sendo assim e após a implosão da União Soviética, 26 de dezembro de 1991, e da anterior dissolução do bloco militar designado por Pacto de Varsóvia, em julho do mesmo ano, a OTAN deixou de fazer qualquer sentido como bloco militar.

As intervenções da OTAN na Jugoslávia, 1994 e 1999, no Afeganistão, em 2001 a 2021, no Iraque em 2004, na Líbia, em 2011, entre outros episódios de intervenção indireta, mas todos eles, veja-se, após a dissolução do Pacto de Varsóvia e da implosão da União Soviética. A partir do bombardeamento da Jugoslávia, a OTAN deixou cair o seu estatuto de bloco militar defensivo e assumiu-se como uma organização ofensiva ao serviço de interesses imperiais.

O que o mainstream transmite para a memória coletiva é uma narrativa de defesa da liberdade e da democracia, mas os seus objetivos e, particularmente, os efeitos reais das intervenções da OTAN foram devastadores para os países onde houve intervenção militar desta dita organização militar defensiva.

A memória oficial da OTAN é moldada pelo presente: enfatiza-se a ameaça externa, oculta-se o custo humano das guerras. E é neste jogo de esquecimento seletivo que se legitima a continuação da aliança, mesmo quando os resultados das suas ações são, no mínimo, discutíveis, bem assim como a sua existência.

Em Portugal, o caso da ditadura salazarista mostra bem como a memória é vulnerável à erosão do tempo e que, crescente representação institucional de forças populistas tem vindo a acelerar. No espaço de uma geração, a guerra colonial, a censura, a repressão política, a prisão, a tortura e o assassinato de opositores e a miséria que forçou centenas de milhares à emigração, foram sendo obliterados. Hoje, não é raro ouvir quem recorde a ditadura fascista como um tempo de ordem e tranquilidade e a difusão da ideia de que: antigamente é que era bom.

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Este branqueamento da história não é inocente, distorce a realidade e, por conseguinte, fragiliza a democracia. Quando às novas gerações lhes é sonegado o direito à informação e formação sobre a história da ditadura, a memória é apagada e abre-se o caminho para revisionismos perigosos. Portugal oscila, perigosamente, entre a nostalgia do império e a integração europeia, entre a memória da guerra colonial e o esquecimento das suas consequências sociais, entre a celebração popular do 25 de Abril e o risco de a reduzir a uma data protocolar, ou substituir a data fundacional da democracia portuguesa por um outro dia 25.

A disputa entre memória e esquecimento não é apenas um fenómeno natural da passagem do tempo: é também uma construção social deliberada. Os poderes instituídos têm interesse em moldar a memória coletiva. Reescrevem a história para legitimar o presente, ocultam responsabilidades, exaltam vitórias e reduzem derrotas a notas de rodapé.

Os instrumentos dessa manipulação são claros. O ensino, quando reduzido a programas mínimos e acríticos, transforma-se em veículo de amnésia organizada. A comunicação social, dominada por lógicas empresariais e agendas políticas, seleciona o que deve ser lembrado e o que deve ser apagado, reduzindo a complexidade a narrativas simplistas. E as redes sociais, com a sua velocidade e fragmentação, amplificam falsidades e revisionismos, transformando a mentira repetida em verdade partilhada.

O perigo não está apenas no esquecimento, mas na substituição da memória pela ficção conveniente. Quem controla a memória molda o futuro. É por isso que recordar não é um exercício nostálgico: é um ato político. Defender a memória crítica é defender a democracia contra a erosão lenta do revisionismo, é proteger a verdade contra a anestesia da mentira e é, sobretudo, escolher não entregar o futuro às mãos de quem se alimenta do esquecimento e do revisionismo histórico.

Ponta Delgada, 2 de setembro de 2025 

Aníbal C. Pires, In Diário Insular, 3 de setembro de 2025

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

instrumentos de manipulação

Aníbal C. Pires - do arquivo pessoal

Excerto de texto para publicação no Diário Insular e, como é habitual, também aqui no blogue momentos.




(...) Os instrumentos dessa manipulação são claros. O ensino, quando reduzido a programas mínimos e acríticos, transforma-se em veículo de amnésia organizada. A comunicação social, dominada por lógicas empresariais e agendas políticas, seleciona o que deve ser lembrado e o que deve ser apagado, reduzindo a complexidade a narrativas simplistas. E as redes sociais, com a sua velocidade e fragmentação, amplificam falsidades e revisionismos, transformando a mentira repetida em verdade partilhada.

O perigo não está apenas no esquecimento, mas na substituição da memória pela ficção conveniente. Quem controla a memória molda o futuro. É por isso que recordar não é um exercício nostálgico: é um ato político. Defender a memória crítica é defender a democracia contra a erosão lenta do revisionismo, é proteger a verdade contra a anestesia da mentira e é, sobretudo, escolher não entregar o futuro às mãos de quem se alimenta do esquecimento e do revisionismo histórico. (...)