Foto by Aníbal C. Pires (2017) |
Hoje fica o texto da crónica emitida a 25 de Novembro de 2017 que pode ser ouvida aqui
Há publicações com propósito e publicações a propósito. Esta não é uma coisa nem outra. É mesmo uma coincidência, uma feliz coincidência no final da semana em que foi anunciada a lista de finalistas ao Prémio Literário Casino da Póvoa. A Brecha, está lá.
Parabéns ao João Pedro Porto.
A Brecha – um apontamento
Do livro A Brecha de João Pedro Porto disse, num desses comentários imediatistas e de ocasião numa publicação do Facebook, que a leitura do último romance deste jovem escritor açoriano, não é a mais adequada para o Verão.
E mantenho. A Brecha é um daqueles livros que devem ser consumidos no aconchego das noites de Inverno.
É uma leitura densa que necessita de tempo e atenção pela sua complexidade, mas também pela riqueza da escrita que ora se assume em prosa, mas também em poesia e na dramaturgia.
O recurso à mitologia clássica e algumas referências da história nacional compõem uma trama intrincada, onde tudo pode acontecer. Até a morte dos deuses às mãos do Homem.
Ficam alguns fragmentos, no vídeo abaixo, deste livro de João Pedro Porto que aquando da leitura sublinhei e que hoje partilho convosco.
(…) Mais uma prega virada no escuro e será como se durma sem saber se acordo. Mas, e daí, assim o é todo o sono. (…)
(…) Ao pôr-se a jeito de cheiros, o Homem notou um fétido odor que emanava de todas as bocas falantes. Toda aquela gente era de má-língua, não por contrafazerem as sintaxes, mas por darem mau uso à taramela. A coisa era feita de duas maneiras distintas. Ora se falava bem de face a face ora se desnaturava o dito, feito não dito nas costas de quem se abandonava com um pois bem e um aceno. Não teria, o Homem, espinhaço para isso. (…)
(…) A terra terá sido sempre lida com as páginas e as cabeças erigidas a Norte, salvo pelos povos da meia-lua. Desse Norte se disse, por anos, ser o hemisfério superior, que é como quem diz: de superior condição. O Sul será sempre algo selvático, onde se dançam os tangos e se matam os homens por ninharias. A futilidade é mortal, no Sul. Será por isso que lá vamos. Não há banalidade no Sul. Se o mistério tiver esconderijo, esse será sempre austral. Até o órgão mais carnal e o pórtico mais recôncavo de todo o éden moram no lugar sulino do corpo dos homens e das mulheres. (…)
(…) Tudo começou com um som daqueles que são exclusivos do silêncio. De todos os sons de que se faz o silêncio, o mais conhecido é o zunzum. Seguem-se-lhe o tinido e o zumbido. Mas de nenhum desses se faria aquele que ouvi. Era algo mais parecido com o roçar de tecidos espreguiçados a bocejo. Ajudava que o zunido do vento fosse quebrado pelos arcos. Tomei isto como consideração, porque poderia, na realidade, tudo ser obra do vento, que é um ser curioso. Não por ter qualquer interesse, mas por ter nariz. E a tendência abstracta de o enfiar onde não é chamado. Se bem que, para cusco, já lá estava eu. (…)
(…) Nada muda! Continuas o mesmo. Sim, existiam os deuses. Mas de nada serviam. Não eram mais que palavras ditas pelas nossa bocas, obeliscos de prefeitura. Coisa de adoração, coisas de temer. E sem perfeição que se visse. Não eram mais que gentes, também. Feitos por outras gentes. Gentes como nós. (…)
(…) Esse oceano, destinado , destinado a encantar-me a alma com a escuma, começou toda esta demanda enredada em vil fuso e agora aqui narrada como se o passado voltasse a ser algo que não apenas uma coisa deixada para trás. Assim, pois, parti (…)
(…) Adeus ó mundo,
Adeus ó eu, que me vou
na carquilha que vem.
Mais uma prega virada no escuro
E será como se durma;
Nada mais. (…)
Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 23 de Novembro de 2017
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